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CAPÍTULO 3: TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA, ADAPTAÇÃO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA: DON QUIJOTE DE LA MANCHA (CERVANTES, 2004) E DONKEY

3.4 AS IMPLICAÇÕES DESCRITAS NAS CATEGORIAS ANTERIORES

ENVOLVENDO A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DE OBRA LITERÁRIA PARA O

CINEMA

A adaptação de obras canônicas, como é o caso de Don Quijote de la Mancha,

costuma suscitar críticas acerca do nível de fidelidade da obra adaptada em relação à

original. Isto ocorre porque os leitores de obras literárias geralmente criam inúmeras

expectativas em relação às adaptações feitas a partir delas. O leitor que conhece a

narrativa original tende a compará-la à narrativa adaptada, buscando encontrar as

semelhanças e diferenças entre uma e outra, e, quando as divergências observadas

são muitas, a obra adaptada pode ser vista como inferior ao seu original.

A situação se torna mais crítica quando uma obra tão conhecida como Don

Quijote de la Mancha é transformada em uma animação, que não é protagonizada

pelo famoso cavaleiro andante, Dom Quixote, mas pelo burro Rucio, que pertence a

Sancho Pança.

Conferir o protagonismo da obra a um animal e, acrescente-se, a um animal

culturalmente considerado inferior, pois os burros têm fama de bobos e são

associados a características medíocres, como a estupidez e a ignorância, é, no

mínimo, uma atitude ousada, pois, além de protagonizar a adaptação fílmica Donkey

Xote, o burro cria uma nova versão da história do cavaleiro andante e apresenta esta

versão aos espectadores como uma verdade incontestável; afinal, como afirma o

próprio Rucio, ele esteve lá, e, consequentemente, vivenciou tudo o que conta, de

modo que, em tese, não há o que questionar sobre a veracidade dos fatos narrados.

Como subnarrador verbal, além de protagonista da narrativa, Rucio se destaca

e ofusca, na adaptação, o cavaleiro andante que se tornou conhecido em todo o

da obra em que se baseia. Entretanto, graças aos estudos contemporâneos sobre a

teoria da adaptação, as visões depreciativas acerca das adaptações podem dar lugar

a um olhar sem preconceitos. Não há razão para que a obra adaptada seja vista como

subordinada à original. Ainda que seja uma segunda obra, a adaptação não deve ser

considerada secundária (HUTCHEON, 2011).

Neste sentido, ainda que se tenha, em Donkey Xote, um subnarrador verbal

que modifica a história de Dom Quixote como bem entende, a obra original continua

intacta. As pessoas ainda podem revisitá-la, sem que ela tenha sofrido qualquer

mudança. Ao contrário do que alguns críticos acadêmicos, jornalistas ou espectadores

comuns possam argumentar em relação ao desserviço que o cinema faz à literatura,

ao adaptar suas obras; o filme não deve ser considerado um parasita, que suga a

literatura, destruindo-a. Quando adaptada, uma obra não deixa de existir para dar

origem a outra(s), mas se reconstrói de modo distinto, se multiplica, e as diversas

versões criadas a partir de um mesmo original podem coexistir juntamente com ele.

O cinema, através de suas diversas matérias de expressão, pode permitir que

diferentes públicos tenham acesso às suas produções, diferentemente da literatura,

que, ao construir suas narrativas através da linguagem verbal, exclui o público não

alfabetizado. Além disso, o filme costuma ser mais acessível que o livro em termos

financeiros, o que faz com que as produções cinematográficas possam alcançar um

público maior que os textos literários. Neste sentido, longe de destruir a literatura, o

cinema pode torná-la mais conhecida, através das adaptações.

Entretanto, assistir a uma adaptação não implica em ter acesso a todas as

características da obra original, pois a obra adaptada não é mero reflexo daquela que

lhe serviu como base, ela traz algo novo, algo que antes dela não existia, portanto,

É necessário observar a adaptação como o produto de uma transformação

que, tendo passado por um processo de interpretação, transposição e atualização,

sofre modificações em sua estrutura original, dando origem a uma nova criação,

autônoma. Portanto, é preciso afastar-se das visões preconceituosas, que comumente

se associam às adaptações, e adotar um discurso menos valorativo e moralista acerca

de obras adaptadas (STAM, 2013).

Em Donkey Xote, o fato de Rucio modificar a narrativa cervantina, alterando

fatos importantes, como quando personifica a dama mais famosa da literatura

hispânica, Dulcineia de Toboso, e dá à história um final feliz, com Dom Quixote vivo,

ao lado de sua musa inspiradora, não diminui a qualidade da adaptação, mas reforça a

sua condição de obra autônoma, que não tem a obrigação de reproduzir totalmente a

obra original; pois, uma vez que é produzida em outra época, para um público

diferente e através de um meio diferente (cinematográfico), a adaptação não pode ser

julgada como se fosse uma reprodução, porque, na realidade, ela é uma recriação e,

como tal, tem liberdade para apresentar inovações.

Sendo uma obra adaptada para um outro meio, de linguagem audiovisual, foi

possível perceber, em Donkey Xote, modificações no modo como se representam as

categorias tempo e espaço no cinema; uma vez que o espectador não mais se guia

por menções do narrador acerca do tempo e do espaço em que as ações ocorrem, ou

por pistas deixadas pelas ações das personagens; no filme, ele pode acompanhar, em

tempo real, a passagem do tempo e a mudança de espaço.

Na animação, através do processo de tradução intersemiótica, o espectador

visualiza diferentes tempos e espaços traduzidos em ícones e índices, além disso,

essas duas categorias (tempo e espaço), no meio cinematográfico, podem ser

visualizadas juntas, em um mesmo fotograma, pois a imagem em movimento, recurso

do meio cinematográfico, revelou a sua inseparabilidade, congregando-as em uma

contar para o mostrar faz com que a obra adaptada seja recebida de uma forma

diferente, uma vez que o espectador não é guiado apenas pela linguagem verbal,

como o leitor, mas dispõe também de imagens em movimento, além de outros

recursos, como sons, que contribuem para a construção de sentidos no que diz

respeito à narrativa.

Donkey Xote é o resultado de um processo criativo, que reconstrói a narrativa

de Don Quijote de la Mancha de modo paródico ao dar visibilidade ao burro, em

detrimento do verdadeiro cavaleiro andante. Ao acompanhar a narrativa através do

ponto de vista de Rucio, o espectador tem acesso a uma versão da história que,

embora apresente características da narrativa original, traz aspectos totalmente novos.

Por isso, é pertinente a analogia que se faz entre a adaptação e o palimpsesto, uma

vez que, como pergaminho que tem seu texto raspado para dar lugar a um novo texto,

o palimpsesto não deixa de preservar vestígios anteriores, resquícios do que foi em

outra época, ao mesmo tempo em que permite que, por cima desses vestígios, outros

textos sejam criados, vindo a lume. Ao considerar a narrativa reconstruída em Donkey

Xote, observa-se que, ainda que apresente suas particularidades, preserva marcas da

narrativa original. Por isso, para Hutcheon (2011), trabalhar com adaptações implica

em considerá-las como produções intrinsecamente palimpsestuosas, constantemente

assombradas pelas obras originais.

Por fim, vale ressaltar que o ponto de vista apresentado por Rucio, em Donkey

Xote, não causa prejuízo à obra original, Don Quijote de la Mancha, mas representa

uma recriação dela, dentre tantas outras que existem. A animação não atua como

parasita da obra literária, corrompendo-a, mas contribui para dar ainda mais

visibilidade à narrativa original, uma vez que pode despertar o interesse pela leitura do