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“A falta de consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a administração” (DE. 1985, p. 166).

Como já foi mencionado acima, o desencantamento do mundo é um conceito chave no pensamento de Adorno e Horkheimer. Em vez de compreender sob o termo apenas o movimento intelectual europeu do século XVIII, eles o incluem em um processo que caracteriza toda a civilização ocidental para compreender as origens da superioridade da subjetividade, uma vez que esta buscou destruir o animismo mitológico e as tradições. “Desencantar o mundo é destruir o animismo” (DE. 1985, p. 18).131 O esclarecimento toma o mito como uma visão de mundo, uma ordenação estática e que deve ser superada. O animismo deve ser identificando enquanto história e superação de suas raízes míticas. O desencantamento do mundo procura realizar a passagem do caos à ordem, enquanto movimento de destruição, desencantamento e reordenamento. Para o esclarecimento

O elemento básico do mito sempre foi o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na natureza. O sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito (DE. 1985, p. 19).132

Para Adorno, a subjetividade sempre procurou se impor com certo otimismo para mostrar o caminho da emancipação, mas, foi na modernidade que ela ganhou relevância absoluta. Com o avanço da tecnologia e da ciência, a tensão entre objeto e sujeito se tornou abstrata e a razão se firmou como instrumental, mantendo a autoconservação do sujeito. No momento em que o sujeito se torna racional, fazendo uso de um método científico, ele se conserva numa inércia porque já existe um sistema pré-estabelecido. Estrutura-se um pensamento onde o que interessa é a finalidade, porém, a finalidade é guiada por um método

131 “Die Entzauberung der Welt ist die Ausrottung des Animismus” (DA. Band 3, s. 21).

132 “Als Grund des Mythos hat sie seit je den Anthropomorphismus, die Projektion von Subjektivem auf die Natur aufgefaßt6. Das Übernatürliche, Geister und Dämonen, seien Spiegelbilder der Menschen, die von Natürlichem sich schrecken lassen. Die vielen mythischen Gestalten lassen sich der Aufklärung zufolge alle auf den gleichen Nenner bringen, sie reduzieren sich auf das Subjekt” (DA. Band 3, s. 22-23).

administrado. Ocorre um processo unilateral e, nesse sentido, “o esforço para manter a coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentação de perdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo” (DE. 1985, p. 39). No momento em que se busca compreender todas as relações sociais pela esfera racional dominante bloqueia-se também a possibilidade de identificar e reconhecer uma sociedade livre. O objetivo do ego não são as imagens e nem a felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho dos outros, o capital e a manutenção do status do ego. Para aprimorar a dominação do que é diferente, a primeira tarefa do esclarecimento é descaracterizar o mundo primitivo, ignorando toda a riqueza de elementos aí existentes ao eleger apenas um como sua característica fundamental. Ao fazer isso, cria-se uma ideologia onde a racionalidade impera sobre a natureza interna e externa, ou seja, a racionalidade sempre ocupará o lugar privilegiado à medida que é representada pelo progresso humano por sobre suas raízes míticas e bárbaras.

O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento do poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este os conhece na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação (DE. 1985, p. 21).133

Existe no esclarecimento um caráter sombrio capaz de se manifestar e justificar uma realidade ou um fato social a partir de uma visão absoluta, independente das especificidades. O ideal do esclarecimento, da natureza destituída de qualidades, onde tudo seria mensurável, é a efetivação da mesma racionalidade formal que converte o trabalho e a política em mercadoria. Ou seja, tanto os objetos quanto os sujeitos, por meio da racionalidade formal, são reduzidos a quantificações e aceita-se o estado existente das coisas.

Muito cedo o mito já possuía expressão, e sobre essa foi selando uma racionalidade que salvaguarda a lógica de autoconservação. Em outros termos, podemos enfatizar que o processo de desencantamento do mundo teve como princípio colocar os homens na posição

133 “Der Mythos geht in die Aufklärung über und die Natur in bloße Objektivität. Die Menschen bezahlen die Vermehrung ihrer Macht mit der Entfremdung von dem, worüber sie die Macht ausüben. Die Aufklärung verhält sich zu den Dingen wie der Diktator zu den Menschen. Er kennt sie, insofern er sie manipulieren kann. Der Mann der Wissenschaft kennt die Dinge, insofern er sie machen kann. Dadurch wird ihr An sich Für ihn. In der Verwandlung enthüllt sich das Wesen der Dinge immer als je dasselbe, als Substrat von Herrschaft” (DA. Band 3, s. 25).

de superiores fazendo um entrelaçamento entre razão e dominação. Assim, a liberdade dos sujeitos está profundamente comprometida e os autores da Dialética do Esclarecimento querem na verdade, elucidar o esclarecimento, já que ele implica na subjetividade humana.

No desencantamento do mundo o que importa é a operação eficaz, a certeza, e se antes o medo era gerado pelo desconhecido, agora isso não possui mais espaço, pois num mundo esclarecido, nada pode restar de desconhecido, tudo deve ser igualado, pois não existe espaço para o que é estranho e diferente à razão. Ou seja, “a própria igualdade torna- se um fetiche” (DE. 1985, p. 27)134. Isto significa não buscar e nem reconhecer o heterogêneo, ou caso tenha algum reconhecimento, logo deve ser igualdado ao que já está posto de antemão para não causar angústia. Assim, temos uma eterna repetição homogênea conforme afirmam Adorno e Horkheimer.

O princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito a insossa sabedoria para a qual não há nada de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo já teriam sido jogadas, porque todos os grandes pensamentos já teriam sido pensados, porque as descobertas possíveis poderiam ser projetadas de antemão, e os homens estariam forçados a assegurar a auto conservação pela adaptação – essa insossa sabedoria reproduz tão somente a sabedoria fantástica que ela rejeita: a ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz sem cessar o que já era (DE. 1985, p. 23).135

A racionalidade tem a tarefa de eliminar as forças da natureza porque “de agora em diante o ser se resolve no logos” (DE. 1985, p. 21)136, eliminando basicamente o sentido da verdade e o sentido da própria vida porque existe um processo de instrumentalização subordinado a racionalidade planejada. Percebe-se que a vida no mundo administrado, faz uma renúncia, uma mutilação para se adequar a elementos de autoconservação racional. A gênese deste pensamento puramente racional é encontrada em Bacon, que propõe a

Submissão da natureza à razão por considerar que a superioridade do homem está em sua capacidade de saber e por isto tem o poder de dominar seu mais temeroso oponente: a natureza é nada mais que aquilo que ele não

134 “Nun wird die Gleichheit selber zum Fetisch” (DA. Band 3, s. 33).

135 “Das Prinzip der Immanenz, der Erklärung jeden Geschehens als Wiederholung, das die Aufklärung wider die mythische EinLildungskraft vertritt, ist das des Mythos selber. Die trockene Weisheit, die nichts Neues unter der Sonne gelten läßt, weil die Steine des sinnlosen Spiels ausgespielt, die großen Gedanken alle schon gedacht, die möglichen Entdeckungen vorweg konstruierbar, die Menschen auf Selbsterhaltung durch Anpassung festgelegt seien - diese trockene Weisheit reproduziert bloß die phantastische, die sie verwirft; die Sanktion des Schicksals, das durch Vergeltung unablässig wieder herstellt, was je schon war” (DA. Band 3, s. 28).

compreende. Do medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de desconhecido. (...) O medo é a radicalização da angústia mítica. Levando em conta esta consideração presente na Dialética do Esclarecimento, a imposição baconiana do saber como poder adquire um caráter de dominação visando a auto conservação, a sobrevivência (TIBURI. 1995, p. 49).

O filósofo Bacon enaltece a onipotência do conhecimento e Adorno compreende essa racionalidade. Mas esta racionalidade não condiz com os pressupostos do desencantamento do mundo, pois, se torna um instrumento de uso e nada lhe escapa. Sua pretensão não é mais o esclarecimento, mas a dominação e tudo aquilo que não corresponder aos interesses da racionalidade deve ser liquidado, logo “seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e cada coisa” (DE. 1985, p. 20)137. Não há uma relação saudável entre realidade e razão, o que persiste é a lógica da subjetivação onde tudo é reduzido a um só denominador. A natureza é destituída do seu papel, do seu encanto e o domínio da técnica, do conhecimento científico “deve, incondicionalmente, render frutos” (DUARTE. 1993, p. 32). Neste sentido, a técnica é ainda mais reforçada como a essência na obtenção de conhecimento. O esclarecimento se apossa do desconhecido para que ele se deixe conhecer e se deixe capturar pela unidade, para que ele se adeque ao sistema. Entretanto, este processo coloca em choque a realidade e o conceito.

A dominação na esfera do conceito eleva-se fundamentada na dominação do real. É a substituição da herança mágica, isto é, das antigas representações difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova forma de vida, organizada com base no comando e determinada pelos homens livres. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador (DE. 1985, p. 25)138

A modernidade é expressão desta forma de totalitarismo: dominar tudo e todos. O que não pode ser captado e quantificado pelo saber é reduzido à mera matéria sem valor. O mesmo procedimento também acontece na organização social e política, no qual a pretensão de emancipação tornou-se um modo para conduzir e atrelar as pessoas ao poder absoluto. Aquilo ou aqueles que não podem ser dominados, são excluídos, deixam de ter valor e voz

137 “... ihr Ideal ist das System, aus dem alles und jedes folgt” (DA. Band 3, s. 23).

138 “... die Herrschaft in der Sphäre des Begriffs, erhebt sich auf dem Fundament der Herrschaft in der Wirklichkeit. In der Ablösung des magischen Erbes, der alten diffusen Vorstellungen, durch die begriffliche Einheit drückt sich die durch Befehl gegliederte, von den Freien bestimmte Verfassung des Lebens aus. Das Selbst, das die Ordnung und Unterordnung an der Unterwerfung der Welt lernte, hat bald Wahrheit überhaupt mit dem disponierenden Denken ineinsgesetzt” (DA. Band 3, s. 30).

ativa na sociedade. Para Adorno e Horkheimer a dialética do esclarecimento é uma tentativa de dizer através de uma análise conceitual como foi possível que o processo racional de esclarecimento que buscava garantir a liberdade e a vivência humana pôde se transformar em formas de dominação política, social, econômica e cultural, onde os indivíduos são privados de singularidade e a sociedade é esvaziada de humanidade. Portanto, o desencantamento do mundo distancia realidade e pensamento, objeto e sujeito, perdendo-se a capacidade de reflexão, culminando numa administração geral da vida e da sociedade.

O esclarecimento foi uma transformação ocorrida na subjetividade que esvaziou de substância a própria humanidade. Esse processo tornou os homens mais genéricos e intercambiáveis, enfraquecendo a possiblidade de resistência do sujeito frente à sociedade falsa. O processo do esclarecimento implica em um acesso ao mundo no que ele tem de objetivo, num domínio de identificação, no entanto, renega aquilo que não se submete ao seu critério. Dessa forma, ocorre um esvaziamento das potencialidades reflexivas que poderiam pensar um sujeito emancipado e uma sociedade verdadeiramente humana. No esclarecimento administrado “as ideologias mais recentes são apenas reprises das mais antigas” (DE. 1985, p. 53)139.

As ideologias coercitivas sempre estiveram presentes nas diferentes épocas da humanidade, mas a modernidade as radicalizou e agora temos a negação do próprio indivíduo, isto é, o esclarecimento transforma o pensamento em coisa, número, cálculo. A autorreflexão do indivíduo se torna opaca, frágil frente ao sistema e, dessa forma, eles são controlados, submetidos ao valor de mercado, abrindo passagem para aquilo que Adorno denomina de sociedade administrada. No mundo administrado

O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações entre homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reações e funções convencionais que se esperam dele como algo objetivo. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas (DE. 1985, p. 35).140

139 “... die neuesten Ideologien sind nur Reprisen der ältesten” (DA. Band 3, s. 71)

140 “Nicht bloß mit der Entfremdung der Menschen von den beherrschten Objekten wird für die Herrschaft bezahlt: mit der Versachlichung des Geistes wurden die Beziehungen der Menschen selber verhext, auch die jedes Einzelnen zu sich. Er schrumpft zum Knotenpunkt konventioneller Reaktionen und Funktionsweisen zusammen, die sachlich von ihm erwartet werden. Der Animismus hatte die Sache beseelt, der Industrialismus versachlicht die Seelen” (DA. Band 3, s. 45).

Em um mundo administrado a pessoa não vive emancipadamente porque ela conta apenas como um objeto numérico. E, em um mundo explicado por fórmulas nada de novo pode acontecer ou nascer. A exigência de pensar deixa de ter sentido, pois, a ciência já têm o cálculo e a fórmula pronta. As particularidades e as individualidades são suprimidas e ignoradas em prol do desenvolvimento técnico e racional absoluto. A individualidade perde o seu valor na sociedade, pois o sistema hegemônico torna a consciência frágil. Na verdade, o sistema impede o fluir de uma consciência crítica porque existe uma falsidade do todo social que reifica os indivíduos e que mantém as massas dominadas. Este processo provoca naturalmente uma decadência da existência. O viver autêntico na verdade é um viver controlado, guiado e submisso. Mesmo o eu que parecia irredutível a qualquer outra coisa, no mundo administrado torna-se supérfluo porque foi esvaziado da ideia de humanidade. “O eu integralmente capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, à qual a civilização desde o início procurou escapar (DE. 1985, p. 37)141.