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As (in)seguranças ubíquas

No documento teresacristinadacostaneves (páginas 141-146)

4 O REAL NO LITERÁRIO

4.2. As (in)seguranças ubíquas

O preço da segurança é a eterna chateação.

Millôr Fernandes (2005, p. 92) A sensação de desamparo e intranquilidade que ensombreiam a vida cotidiana na contemporaneidade é o tema para o qual convergem as sete crônicas do segundo conjunto de textos investigados. Elas enfatizam a proliferação, a generalização e a potenciação dos riscos nas rotinas mais ordinárias, bem como a impossibilidade de driblá-los e as dificuldades em administrá-los. Cada uma das composições expande literariamente a expressão ―tenho medo!‖, utilizada por Ulrich Beck (2010, p. 60) como síntese da força motora característica da sociedade de risco (v. Capítulo 2, p. 30).

Os efeitos indesejáveis da autonomia individual derivada da vulgarização dos progressos técnicos servem de inspiração para Luis Fernando Verissimo (2008a, p. 137-138), ao compor ―A tirania do qualquer um‖ (ANEXO F, p. 198). A mesma disponibilidade de recursos que democratiza as mais inofensivas pretensões artísticas ou intelectuais, contraditoriamente, viabiliza e potencializa, em nossos dias, a concretização dos mais desmedidos ímpetos agressivos, conforme pondera o autor em sua escrita espirituosa, no sentido bergsoniano do termo (v. Capítulo 2, p. 60), ou seja, aquela que nos leva a rir de terceiros ou de nós mesmos (BERGSON, 2001, p. 95):

Hoje qualquer um com um computador e um programa adequado pode editar seus próprios livros. Ou seu próprio jornal ou sua própria revista. Qualquer um pode fazer o seu próprio CD em casa. [...] Mas essa nova liberdade tem a sua contrapartida tétrica: assim como qualquer um pode dispensar a indústria literária para publicar seu romancezinho ou a indústria musical para gravar a banda das crianças, qualquer um pode ter nas mãos a capacidade de destruição de um exército sem precisar ter uma nação (VERISSIMO, 2008a, p. 137).

A impressão cômica no texto em terceira pessoa é sutilmente obtida, sobretudo, por meio de um jogo de palavras que traduz uma inadequação – um desvio ou uma falha – que prejudica a ordem. A ela, em conformidade com Bergson (2001, p. 14), o riso se volta como sanção funcional (v. Capítulo 2, p. 59-60). Ao particularizar, com o emprego do artigo definido ―o‖, a expressão indeterminada ―qualquer um‖, o autor cria um efeito paradoxal para evidenciar a notável supremacia do indivíduo contemporâneo – quem quer que ele seja – sobre a coletividade e as instituições. No limite, esta circunstância põe em xeque aquilo mesmo que, no dizer de Bauman (1998, p. 31), nos constituiu como civilização: a confiança nos outros seres humanos, no contexto social e no ambiente material à nossa volta (v. Capítulo 2, p. 19).

A nação e o seu exército são as grandes estruturas tornadas desnecessárias pela sofisticação dos recursos para quem quer se expressar, no caso não com arte, mas com estouros. Coisas como o lançador de mísseis desmontável e portátil, a relativa facilidade em fabricar e transportar projéteis nucleares ou com cargas químicas mortais e, claro, um computador com um programa adequado aumentaram o poder do qualquer um e seus raios de estragos possíveis (VERISSIMO, 2008a, p. 137).

A promoção tecnocientífica da autossuficiência individual volatiliza os perigos, expõe a debilidade das estruturas sociais e acentua nosso senso de vulnerabilidade (BAUMAN, 2008, p. 132), porque põe ao alcance de todas as pessoas um poder arbitrário cuja amplitude destrutiva, desde a introdução de formas civilizadas de vida, sempre requereu a mobilização de estruturas muito mais vastas e complexas. Conforme enuncia a composição de Verissimo, os recursos que autorizam o reino soberano da liberdade individual também consentem a onipresença suprema da ameaça anônima e do medo indiscriminado, ao viabilizarem toda e qualquer manifestação subjetiva, da mais banal à mais letal:

Assim, além do indivíduo que é seu próprio editor e sua própria gravadora e [...] seu próprio arquiteto, contador ou conselheiro astral, temos o indivíduo que é a sua própria força armada pronta para a guerra, ou pelo menos para começar uma. Nunca o qualquer um teve tanto poder. Ele já atuou no

passado, e influiu muito na História, mas não tinha os meios que tem agora. Era o anarquista com sua bomba de pavio, o assassino no meio da multidão com sua pistola, o anônimo cujo martírio ou a liderança espontânea começava uma revolta ou um massacre. Mas a possibilidade de espalhar o grande terror era exclusividade das nações e dos exércitos, das grandes estruturas. Não era para qualquer um. [...] Hoje, o grande terror é ele. Vivemos sob a tirania da sua imprevisibilidade e da sua independência das grandes estruturas: cada um é uma nação de um só, com uma indústria de morte própria. Ele pode ser o passante com um colete de explosivos sob a roupa. Pode ser a moça ao nosso lado no metrô com o antrax na mochila. Pois o maior terror do qualquer um é que ele pode ser qualquer um (VERISSIMO, 2008a, p. 138).

Incapazes de identificar nossos inimigos ou impossibilitados de localizar de onde provêm os perigos, sucumbimos a um comportamento paranóico, tal como o do personagem de ―Linguiças calabresas‖ (ANEXO G, p. 199), também de Verissimo (2008d, p. 99-101). Nesta crônica, o simples gesto de atender a um telefonema desencadeia um labirinto de suspeitas que dá feição hiperbólica a certo delírio de perseguição incorporado à vida na atualidade. No diálogo travado entre ―Dr. Márcio‖ e seu interlocutor, tudo é motivo para desconfiança: a palavra se mostra perigosa, porque pode revelar mais do que aquilo que se pretende dizer; os recursos tecnológicos destinados ao registro da fala são vistos como ameaçadores, porque podem constituir provas incontestáveis de algo que jamais existiu.

– Podem estar gravando. [...] Esta conversa já está pra lá de suspeita. [...] Já entendi! Já entendi tudo. Você é que está gravando este telefonema. Esta conversa toda é para me incriminar. [...] Já vi tudo! Amanhã ela sai no

Jornal Nacional e é óbvio que ―pacote de linguiças calabresas‖ vai parecer

código (VERISSIMO, 2008d, p. 100-101).

O riso, neste caso, decorre do imediato reconhecimento de que se trata de uma paródia das reproduções de conversas telefônicas interceptadas, amplamente difundidas pelo noticiário político ou policial televisivo. Verissimo coloca em cena um personagem que se recusa a revelar a própria identidade, impede a identificação de quem está do outro lado da linha e insiste em recorrer a metáforas para disfarçar o conteúdo do colóquio, temendo obsessivamente escutas secretas:

– Primeiro me diga quem é você. [...] Não use seu nome verdadeiro! [...] Use um pseudônimo. [...] Meu nome é... deixa ver... Balduíno. [...] Invente um também. [...] Não fale assim tão claramente. Use linguagem figurada. [...] Em vez de pacote, diga coisa. Não, ―coisa‖ pode ser mal interpretado. Diga ―encomenda‖ (VERISSIMO, 2008d, p. 100).

O zelo exagerado para dificultar um suposto acesso clandestino a uma mensagem absolutamente corriqueira desenha uma caricatura dos cuidados extremos que nos vemos obrigados a tomar em defesa de nossa intimidade, permanentemente ameaçada de invasão e passível de ser posta sob suspeita. O personagem criado pelo cronista não dispensa artifícios para se defender de riscos imaginários, recusando até mesmo a própria identidade, negando-se a se assumir como quem realmente é: ―Arrá! Vocês não me pegam. Nego tudo. Aliás, nem sou eu falando. Provem que sou eu‖ (VERISSIMO, 2008d, p. 101).

As raias da desconfiança inescapável sob a qual vivemos cotidianamente são novamente exploradas ficcionalmente por Luis Fernando Verissimo (2008b, p. 137-139) em ―Atitude suspeita‖ (ANEXO H, p. 202). Composto de modo dialogal, o texto narra comicamente as agruras a que estamos sujeitos, mesmo quando nos comportamos da maneira mais corriqueira. O cronista engendra uma situação em que um indivíduo comum numa circunstância absolutamente banal torna-se suspeito precisamente por se comportar de modo insuspeito. Esperar e apanhar o ônibus no ponto, como se faz todos os dias na volta para casa, transparece na crônica como procedimento passível de ser tomado como dissimulação digna de averiguação na delegacia policial:

– Ele fingia que estava esperando um ônibus, delegado. Foi o que despertou a nossa suspeita.

– Ah! Aposto que não havia nem uma parada de ônibus por perto. Como é que ele explicou isso?

– Havia uma parada sim, delegado. O que confirmou a nossa suspeita. Ele obviamente escolheu uma parada de ônibus para fingir que esperava o ônibus sem despertar suspeita.

– E o cara-de-pau ainda se declara inocente! Quer dizer que passava ônibus, passava ônibus e ele ali fingindo que o próximo é que era o dele? A gente vê cada uma...

– Não senhor, delegado. No primeiro ônibus que apareceu ele ia subir, mas nós agarramos ele primeiro (VERISSIMO, 2008b, p. 138).

A narrativa de Verissimo impregna de comicidade a atmosfera de aturdimento psíquico descrita por Marshall Berman (1986, p. 22), para quem a sensibilidade moderna capta a realidade como um ambiente adverso, repleto de preocupantes e iminentes perigos (v. Capítulo 2, p. 20). O cômico de feição pirandelliana surge no relato do cronista pela contradição entre o que é narrado e o que seria de se esperar (v. Capítulo 2, p. 63-64), revelando a faceta risível da insegurança contemporânea que reflete o medo das más intenções dos outros (v. Capítulo 2, p. 21) e decorre de nossa incapacidade para promover e manter o companheirismo (BAUMAN, 2007, p. 63).

Na vida real, crescentemente, os ―extremos perigosos da profilaxia‖ mencionados por Baudrillard (1990, p. 112) assumem caráter de terror endêmico de consequências catastróficas (v. Capítulo 2, p. 24), especialmente nos casos de ações policiais preventivas que têm como desenlace funestos equívocos dos quais se tornou paradigmática a história do brasileiro Jean Charles de Menezes, morto por engano pela Scotland Yard num trem do metrô londrino, em 2005, após ser confundido com um suspeito de terrorismo. Já no relato de Verissimo, os efeitos perversos são outros, mais permeáveis ao riso. O generalizado receio quanto à maleficência humana é urdido no texto de forma a conduzir os personagens à precisa situação da qual pretendem escapar (BAUMAN, 2008, p. 124). Os policiais suspeitosos tornam-se alvo da irrefreável suspeita da qual são todos cativos. A reviravolta é alcançada com o emprego de astúcia por parte daquele que, de outra forma, não consegue atestar sua inocência. Por este aspecto, é possível cotejar a crônica com as fábulas medievais caracterizadas por Minois (2003, p. 194) como narrativas que valorizavam proezas ardilosas, tidas na conta de únicas capazes de libertar os indivíduos do poder intransigente exercido pela atrocidade mundana (v. Capítulo 2, p. 46).

– Ora, meu amigo. O senhor pensa que alguém aqui é criança? O senhor estava fingindo que esperava um ônibus, em atitude suspeita, quando suspeitou destes dois agentes da lei ao seu lado. Tentou fugir e...

– Foi isso mesmo. Isso mesmo! Tentei fugir deles. – Ah, uma confissão!

– Porque eles estavam em atitude suspeita, como o delegado acaba de dizer. – O que? Pense bem no que o senhor está dizendo. O senhor acusa estes dois agentes da lei de estarem em atitude suspeita?

– Acuso. Estavam fingindo que esperavam o ônibus e na verdade estavam me vigiando. Suspeitei da atitude deles e tentei fugir!

– Delegado...

– Calem-se! A conversa agora é outra. [...] O cidadão pode ir embora. Está solto. Quanto a vocês...

– Delegado, com todo o respeito, achamos que esta atitude, mandando soltar um suspeito que confessou estar em atitude suspeita, é um pouco...

– Um pouco? Um pouco?

– Suspeita (VERISSIMO, 2008b, p. 138).

O riso suscitado pela artimanha do personagem, que ataca para se defender, legitima a transgressão e faz da fictícia burla individual uma verdadeira troça social, cujo propósito é aviltar para punir uma conduta avessa à socialidade. Como assinalado na teoria do riso de Bergson (2001, p. 14), a comicidade do relato está na ―rigidez mecânica‖, na inflexibilidade e na incapacidade adaptativa que caracteriza o comportamento policial (não só) na ficção. A estratégia discursiva adotada pelo cronista reveste-se do sentido que o pensador francês

confere ao humor (v. Capítulo 2, p. 60), ao descrever certa circunstância fingindo crer que ela expressa aquilo que deveria ser (BERGSON, 2001, p. 95). O riso daí extraído desempenha a função de resposta coletiva a um sintoma, uma ameaça, uma excentricidade que precisa ser afastada ou repreendida para o bem da vida em comum (BERGSON, 2001, p. 14).

Os desajustes entre nossa necessidade de segurança e aquela que nos é institucionalmente oferecida também está em pauta na crônica de Millôr Fernandes (2008a), ―Informações e queixas sobre o tal assalto em via pública e notória‖ (ANEXO I, p. 204). A escrita tem a forma de um formulário preenchido pela vítima de um roubo, que reage com sarcasmo às absurdas condições de insegurança às quais estamos todos submetidos. Neste caso, o riso decorre do cunho contraditório que o cronista imprime ao texto, ao oferecer respostas lucidamente disparatadas às indagações feitas, denunciando, assim, o contrassenso no qual se baseiam os dispositivos de prevenção e combate à criminalidade. É possível vislumbrar na estratégia textual do autor certa alusão ao sentido etimológico de ironia (v. Capítulo 2, p. 37), originalmente compreendida, com base nos ensinamentos socráticos, como o ato de interrogar simulando ignorância (HOUAISS, 2009).

A crônica expõe em termos ficcionais as falhas que deixam nossos sistemas protetores abaixo de nossas expectativas de proteção (v. Capítulo 2, p. 22), conforme apontado por Robert Castel (2005, p. 16). Nossas copiosas fragilidades são debochadamente expostas, até o limite de uma factível diluição de fronteiras entre legalidade e ilegalidade, frustração e violação, sujeição e transgressão, visibilidade e obscuridade:

I. Nome do queixoso.

No documento teresacristinadacostaneves (páginas 141-146)

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