• Nenhum resultado encontrado

5. TRANSBORDAMENTOS PARA POLÍTICA EXTERNA

5.2 As Iniciativas Baseadas na Fé

Durante a administração Bush, os conservadores religiosos tiveram grande influência nas políticas públicas dos Estados Unidos. Destaca-se o Office of Faith Based and Community Initiatives criado em janeiro de 200151 e considerado por muitos a recompensa pelo apoio quase irrestrito dos evangélicos nas eleições de 2000, verdadeiro patrocínio estatal para a direita cristã. Este escritório, criado no âmbito da Casa Branca, se projetou ainda sobre cinco núcleos nos ministérios da Saúde e Serviços Humanitários, Habitação e Desenvolvimento Urbano, Educação, Trabalho e Justiça.

Criou-se, assim, um mecanismo institucional que permitiu a projeção de organizações religiosas através de planos de política pública voltados aos serviços de bem-estar social. A gestão Bush diminuiu as barreiras regulatórias e aproximou a sociedade civil religiosa do governo federal, facilitando o acesso a fundos públicos de contribuintes. Além das reformas legislativas, os esforços do Escritório para Iniciativas Baseadas na Fé consistiram na ampliação do acesso a informação e no treinamento técnico para capacitar as organizações religiosas para pleitear os financiamentos.

51 Apenas nove dias após sua posse como 43º presidente dos Estados Unidos, Gerge W. Bush executou uma ordem

Após alguns anos construindo know how em casa, as organizações religiosas, de maioria cristã, passam a atuar no exterior, através da vinculação entre o Faith Based Iniciatives e o canal oficial de ajuda externa, a USAID (U.S. Agency for International Development). Segundo uma autoridade da USAID, a motivação de Bush para a iniciativa foi altamente pessoal, baseada na experiência enquanto governador do Texas, onde programas de reabilitação carcerária cristãos foram mais bem sucedidos que os programas oficiais estaduais. (MARSDEN, 2008, p.125)

Assim, a criação do Center for Faith-Based and Community Initiatives (CFBCI) na USAID visava criar um level playing field, aumentando as possibilidades dos grupos religiosos na disputa por programas da agência. A simbiose entre governo e comunidades religiosas não começou com o governo Bush. Na verdade, desde 1800 fundos federais são transferidos a igrejas para construção de escolas, asilos, orfanatos e hospitais. Durante a administração Clinton, por exemplo, a Charitable Choice Initiative foi oficializada em 1995 como um patchwork de regras para incentivar as parcerias entre as igrejas e o Estado, no âmbito das reformas sociais e da previdência. (DIONE Jr. e ROGER, 2008)

A particularidade do governo Bush se deveu, portanto, ao esforço institucional por ampliar o envolvimento das organizações religiosas e ao aumento orçamentário por elas manejado. Os gastos com as iniciativas baseadas na fé somaram US$ 1,1 bilhão em 2003. Em 2005, o valor dobra para US$ 2,15 bilhões52. (PEREIRA, 2009, p. 218)

Durante a administração Obama, o escritório sediando na Casa Branca sofreu uma reforma e assumiu o título de Office of Faith Based and Neighbourhood Partnerships, também com escopo doméstico e internacional (através da USAID). Atualmente, ele conta com doze satélites em outras agências governamentais e um Conselho Consultivo, que compreende 25 membros religiosos – protestantes tradicionais, evangélicos liberais e conservadores, católicos, judeus, mulçumanos e hindus. Somente dois membros do Conselho, que supostamente incluiria as parcerias Faith-based e também Neighbourhood, se autoproclamam “seculares”. (PEW FORUM, 2009b) Para os quatro anos do governo Obama, o escritório deveria atender a seis forças-tarefa:

 recuperação econômica e combate à pobreza  diálogo inter-religioso e cooperação

 paternidade e famílias saudáveis  reforma do Faith Based Office,

52

Estas quantias absolutas destinadas às Iniciativas Baseadas na Fé representaram para 2003 e 2005, respectivamente, 8,1% e 10,9% do orçamento de várias agências americanas como habitação e desenvolvimento urbano, saúde, serviços humanitários, etc.

 meio-ambiente e mudanças climáticas  pobreza mundial, saúde e desenvolvimento.

Desta forma, a gestão democrata dá sinais de continuidade ao trabalho iniciado por George W. Bush, realimentando os questionamentos derivados do adensamento dos canais de financiamento para iniciativas de caridade junto à população americana. Dentre eles, a constitucionalidade do Escritório na Casa Branca, que confrontaria os princípios da Primeira

Emenda, a priorização institucional das organizações religiosas em detrimento das “seculares” e a

indissociabilidade de seu caráter missionário (apelo de conversão) quando da entrega de serviços sociais básicos, sobretudo no exterior. Para Lee Marsden, dólares provenientes de impostos foram usados para viabilizar o proselitismo internacional de igrejas evangélicas, durante a entrega de serviços de ajuda externa, uma das iniciativas americanas de utilizar o soft power. (MARSDEN, 2009, p.8)

A USAID administra aproximadamente US$10 bilhões anuais em programas de ajuda externa em 84 países em desenvolvimento, dos quais metade tem maioria mulçumana. Paradoxalmente, a maioria das organizações islâmicas falha na solicitação dos fundos para Iniciativas Baseadas na Fé. Do montante destinado aos projetos, 98% são manejados por organizações cristãs. Da mesma forma, organizações seculares, como a Planned Parenthood, que provê serviços de saúde e educação sexual, têm projetos negados pela USAID por defenderem o aborto como uma opção para planejamento familiar e saúde reprodutiva. (MARSDEN, 2008, p.125) Muitas organizações da direita cristã, como a Operation Blessing e a Samaritan’s Purse (de Franklin Graham) receberam dezenas de milhões de dólares e, através dos projetos da USAID, puderam aumentar sua presença missionária pelo globo. (MARSDEN, 2008, p.72) Enquanto isso, os parceiros tradicionais sofreram cortes de recursos. A organização CARE, que promove ajuda externa em conjunto com o governo americano desde a Segunda Guerra Mundial, teve orçamento reduzido de US$138 milhões em 2001 para US$98 em 2005. A predileção pelas organizações religiosas é tácita e diluída nos gabinetes em Washington, sobretudo através de membros da direita cristã ocupando cadeiras importantes na USAID. (MARSDEN, 2008, p.125)

Andrew Natsios, vice-presidente da World Vision53, foi diretor da USAID entre 2001-05. Outros nomes conhecidos da política cristã foram indicados para cargos na USAID: Anne Peterson para área da saúde, Benjamim Horman para conselho consultivo, Karen Hughes para diplomacia

53

A World Vision é a maior organização de ajuda humanitária da direita cristã. Em 2006, agregou um orçamento de US$ 100 milhões e 18 mil voluntários distribuindo alimentos e atendimento de emergência na Etiópia, Mauritânia, Moçambique, Uganda, Indonésia, Haiti, Honduras e Afeganistão.

pública e Terri Hasdorff para diretoria do CFBCI. Todos eles têm histórico à frente de organizações cristãs que provêm serviços sociais nos Estados Unidos e no exterior.

Desde sua criação, em dezembro de 2002, o CFBCI realizou encontros com organizações religiosas pelos Estados Unidos, formalizando parecerias e incentivando a transferência de know how. Nos anos Bush, a luta por corações e mentes na oposição ao terror incentivou a injeção de incríveis montantes para ajuda externa americana. De 2002 a 2004, o orçamento da USAID dobrou de US$7 bilhões para US$14 bilhões. As ilustrações são abundantes: em 2005 a Partners for Christian Development recebeu US$700 mil da USAID para atuar no Quênia. Em 2006, a

Samatitan’s Purse recebeu da USAID US$31 milhões, incluindo US$ 830 mil para construção do

Evangelical Medical Center em Lubango, Angola. (MARSDEN, 2008, p.126-127)

Bush advogou repetidas vezes pela necessidade de liberar fundos para as instituições de caridade religiosa, justificando que as organizações privadas e civis não atenderam as demandas da população americana. Estima-se que 57% das congregações religiosas norte-americanas estejam engajadas em algum serviço social, geralmente com desenvolvimento comunitário e projetos locais para atender necessidades imediatas como comida, roupa e abrigo. (PEREIRA, 2008, p.218)

Apesar de alegadamente não-proselitas, as instituições acabam invariavelmente vinculando sua formação religiosa aos serviços prestados e, consequentemente, à própria imagem que se faz dos EUA. Isso porque em muitos países, e principalmente os mais pobres e periféricos, a ajuda externa em forma de assistência social é o primeiro contato das populações locais com os norte- americanos. Há relatos de que mensagens religiosas estejam associadas ao auxílio humanitário, como as caixas de mantimentos da Convenção Batista do Sul, que trazia grafado, em árabe, o versículo 1:17 de João – “Porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por

Jesus Cristo”. (PEREIRA, 2009, p.227)

Na África subsaariana, condicionamentos para financiamentos e instalações médicas são importantes fronts para a evangelização e ostentação do poder de Cristo. “Juntamente com assistência médica, os pacientes são sujeitados a versos bíblicos, mostras de “filmes de Jesus” e proselitismo dos médicos e seu staff.” (MARSDEN, 2008, p.128-129) Muitas organizações só contratam cristãos e incentivam seus empregados a converter aqueles que recebem ajuda.

A mobilização dentro do aparato estatal é ainda complementada com dezenas de milhares de voluntários que excursionam pelo mundo para “salvar almas”. São jovens americanos instruídos por seus mentores religiosos a entrar em faculdades, começar negócios e trabalhar nas áreas da saúde e educação em países africanos. Fundamentalistas como Franklin Graham e Pat Robertson não escondem sua visão do islã e colocam países mulçumanos como alvos de conversão.

O apoio popular às iniciativas baseadas na fé se manteve positivo ao longo do tempo. Como mostra o quadro abaixo, o pico de aprovação ocorreu na aprovação do Escritório em 2001. O apoio republicano caiu de 81% para 63% durante o mandato de Bush filho (2001-2008) e o apoio democrata se manteve estável em torno dos 70% no mesmo período. (PEW FORUM, 2008d) O ceticismo está principalmente no perfil de alguns grupos religiosos, principalmente a mesquitas islâmicas, à frente de projetos sociais.

FIGURA 13 - A POPULARIDADE DAS FAITH-BASED INITIATIVES

Fonte: PEW FORUM, 2008d.

A direita cristã não esteve presente somente como agente de soft power, a moldar programas de ajuda externa norte-americana, mas instalou-se no seio do aparelho militar, o Pentágono. Segundo Marsden, as campanhas de evangelização são ostensivas e muitos “renascidos

cristãos” ocuparam importantes posições militares durante o governo Bush filho. (2009, p. 10-13)

Em 2006, um vídeo produzido pela organização evangélica conservadora Christian Embassy mostra oficiais de alta patente, em uniforme militar, exaltando sua religiosidade. Uma série de escândalos e investigações nas Academias do Exército, Marinha e Forças Armadas revelou uma cultura militar abertamente religiosa e um ambiente que encoraja a evangelização dos novatos.

Investigações a partir de denúncias do Instituto Militar da Virgínia, da Academia da Força Aérea, Academia Naval em Annapolis e West Point, entre 2004 e 2009 revelam grande pressão sobre os cadetes e aspirantes da marinha para que se convertam ao cristianismo evangélico. A Fundação Militar Liberdade Religiosa recebeu mais de quinhentas reclamações de preconceito religioso por mês. (MEAD, 2009, p. 12)

A influência da direita cristã também se estendeu aos campos de batalha do Afeganistão e do Iraque. Ao longo dos anos 2000, os evangélicos conservadores tomaram quase sessenta por cento dos postos de capelania militar. Na cidade de Najaf, um capelão americano ofereceu aos

soldados a possibilidade de nadar na piscina em troca de sua conversão e batismo. Mesmo em serviço, os soldados recebem mídias com os cultos em suas igrejas nos EUA, e nos alojamentos eles atendem a atividades religiosas, realizam reuniões para ler a Bíblia e rezar.

Estes eventos, que permeiam muitas atividades externas norte-americanas, nos mostram a recente influência de grupos religiosos organizados, dos quais destacamos a direita cristã, que misturam imperativos teológicos e doutrinários com projetos políticos, moldando a construção do interesse americano.