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7 DA TRANSPOSIÇÃO DO CONHECIMENTO LINGUÍSTICO-ENUNCIATIVO

7.1 AS LINGUÍSTICAS NO BRASIL: A ENTRADA DA PERSPECTIVA

Em um interessante texto sobre o papel da linguística no ensino de línguas, presente na revista Diadorim, Luiz Antonio Marcuschi (2016)93 reflete sobre a correlacão entre o desenvolvimento da pesquisa linguística no nosso país e sua aplicação ao ensino. O linguista procura mostrar como as concepções de língua são fundamentais para direcionar práticas de ensino. Além disso, pontua alguns aspectos da linguística e seu potencial, com destaque para o modo como comparece nos Parâmetros Curriculares Nacionais/Língua Portuguesa (PCNLP).

O autor aponta uma preocupação que está na base da inquietação que fez surgir esta tese, quando diz o seguinte: “Preocupa-me como o saber escolar, na sua relação com o saber científico, foi se constituindo ao longo do tempo” (MARCUSCHI, 2016, p. 13). Ao passear pelo início do século XX, mostra os desenvolvimentos da linguística até a chegada ao nosso século. Nesse passeio, chamou-nos atenção a variedade de concepções de língua: língua como fator de identidade, língua como sistema de regras, língua como fenômeno social, língua como forma de ação, língua como atividade e texto como evento, língua como interatividade e seu papel nas trocas comunicativas, língua como capacidade inata da espécie humana e língua em relação aos usos falados e escritos. Ainda que o autor não mencione diretamente a perspectiva enunciativa benvenistiana, cita a preocupação com a língua em uso e menciona a presença de uma antropologia linguística, que, de certo modo, faz parte do axioma central da abordagem benvenistiana: “o homem na língua/linguagem”.

O fato de Marcuschi não mencionar diretamente em seu texto – escrito em 2000 – a teoria enunciativa benvenistiana talvez esteja relacionado à reflexão de Flores (2017) sobre a

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recepção de Benveniste no Brasil, que trata da tardia disciplinarização do campo enunciativo e do movimento de publicização do campo enunciativo benvenistiano no Brasil nos últimos anos. Na segunda parte do livro Saussure e Benveniste no Brasil: quatro aulas na École Normale Supérieure, o autor apresenta um diagnóstico que dialoga com o que apresentamos no capítulo 3.

Inicialmente, Flores (2017) apresenta uma linha do tempo comparando as publicações da obra benvenistiana na França e no Brasil. O autor chama a atenção para o grande período de tempo entre a publicação dos dois volumes dos Problemas de Lingüística Geral, primeiramente na França, e depois no Brasil. Além disso, evidencia a quase sincronicidade entre a publicação francesa e a brasileira das Últimas aulas no Collège de France. Isso pode indicar, segundo Flores (2017, p. 55), uma questão importante: Benveniste não teve inicialmente grande repercussão na linguística brasileira. “Sua recepção foi parcial e fragmentada. Somente nos últimos anos o Brasil começa a se interessar, com maior profundidade, pela obra do autor”. A explicação para esse fato pode estar na recepção do pensamento de Benveniste no Brasil.

Olhando para o passado, observamos que as primeiras referências ao campo enunciativo datam da década de 1980. Para Flores (2017), Benveniste apareceu no campo epistemológico da linguística brasileira em função de uma temática específica, a enunciação, e as poucas referências à teorização da enunciação benvenistiana sempre apareciam ligadas a outros campos de estudos da linguagem, como a análise do discurso (AD), a linguística textual (LT) e a pragmática.

Especificamente em relação à AD, o reconhecimento conferido à contribuição de Benveniste se limitou à inclusão do sujeito nos estudos da linguagem. Porém, segundo Flores (2017), havia um desconforto dos analistas do discurso com o campo da enunciação, devido ao entendimento de que Benveviste apresentava uma concepção egocêntrica da subjetividade. O autor afirma que tal concepção era totalmente incompatível com a perspectiva discursiva a qual critica de maneira veemente a noção de sujeito centrado e homogêneo da tradição filosófica, e acrescenta que “a teoria de Benveniste é avaliada em um quadro epistemológico estranho a sua própria configuração epistemológica, o que conduz a uma interpretação, no mínimo, inadequada”. (FLORES, 2017, p. 61).

No fim dos anos 1970 e início da década de 1980, surge a linguística textual e a valorização da língua em contextos de uso naturais e reais, privilegiando a atividade linguística com textos produzidos em situações cotidianas. Flores (2017) lembra que Benveniste também é lido pelos estudiosos da área do texto ao se referirem aos estudos dos

pronomes e verbos, porém estes, novamente, fazem uma leitura restrita do campo da enunciação, com a apresentação de apenas alguns termos e noções fragmentadas.

Outra linha teórica que abordou Benveniste em seus estudos foi a pragmática. Flores (2017) cita Marcelo Dascal, que, em 1978, ao incluir um texto de Benveniste em um de seus livros, enfatiza ser uma preocupação explícita de Benveniste a definição dos limites entre a semântica e a pragmática. Para Flores (2017), há um exagero em apresentar o texto benvenistiano “A natureza dos pronomes” como exemplar dessa discussão.

Isso posto, Flores (2017) conclui que, até meados da década de 1990, a recepção da linguística de Benveniste foi parcial e fragmentada. Além disso, a Teoria da Enunciação foi mal compreendida, sendo mediada por outras disciplinas dos estudos da linguagem, nas quais foi objeto de críticas.

Porém, especialmente após os anos 2000, esse cenário se modifica. Hoje em dia, Benveniste é abordado em um contexto teórico completamente diferente, e a pesquisa bibliográfica nos livros e artigos apresentada no capítulo 4 desta tese confirma a redescoberta de Benveniste no Brasil. “Essa redescoberta culmina com uma série de publicações, traduções e eventos em que Benveniste está no centro” (FLORES, 2017, p. 69). Como a publicação de Marcuschi é de 2016, mas produzida em 2000, torna-se compreensível a ausência de pontuação sobre a enunciação benvenistiana em seu texto, visto Benveniste comparecer e influenciar distintas teorias de texto, de discurso e relacionadas à língua em uso mesmo sem o campo enunciativo estar constituído no país. Isso mostra a importância da pesquisa e da publicização do conhecimento científico como modo de chegar ao professor de Escola Básica e aos elaboradores de provas de ingresso no Ensino Superior.

As análises das provas dos vestibulares de língua portuguesa da UFGRS e do Enem, realizadas no capítulo 6, confirmaram esse movimento de redescoberta dos estudos benvenistianos no Brasil. Percebemos que a reflexão sobre os aspectos enunciativos iniciou de modo discreto nos anos 1980, muito ligada à linguística textual; aumentou a partir da década de 1990, juntamente com a abordagem de diversas correntes linguísticas (principalmente no Enem de 1998); e, de um modo geral, foi se avolumando gradativamente nas provas de 2008 e 2009, culminando no vestibular de 2018, no qual os indícios da transposição das noções de intersubjetividade, referência e forma e sentido se tornam mais evidentes e imbricados.

Como pode se dar o trânsito do conhecimento linguístico científico para uma possível transposição no ensino-aprendizagem de língua portuguesa? Se as provas de ingresso no Ensino Superior realizam essa transposição, por que, então, o professor da Escola Básica encontra dificuldades quanto a esse aspecto? Passemos a essa reflexão na seção seguinte.

7.2 AS LINGUÍSTICAS NO BRASIL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: O