• Nenhum resultado encontrado

3. OS SABERES DA FLORESTA – diferentes aspectos da

3.1.2. As mediações com os profissionais da escola

Uma outra dificuldade que pude presenciar diz respeito à falta de oportunidades para a formação adequada dos professores para desempenhar a profissão. Muitos deles não têm habilitação necessária para a construção do trabalho pedagógico e se constituem professores nesse contexto da escola. A existência da Escola Cruzeiro do Céu foi garantida pela dedicação e pelo trabalho desses educadores, que foram aprendendo, nas parcerias do grupo, os limites do ensinar e do aprender nesse contexto. Apesar da precariedade e das ambigüidades que a escola representa na Vila Céu do Mapiá, ela é importante por dois motivos: o

primeiro, por ser a única oportunidade que as crianças têm da aprendizagem sistemática da leitura, da escrita, o sistema de numeração e ainda dos conceitos científicos iniciais sobre a realidade. Por outro lado, também possibilita a reelaboração dos saberes da vida cotidiana na doutrina do Santo Daime, salvaguardando esse universo cultural presente na vida das crianças dessa comunidade.

Foi como professora da UDESC-CEAD83, no curso de Pedagogia modalidade a Distância, onde atuo diretamente com a formação de professores, que não pude ficar de braços cruzados. Foi necessário que eu efetivasse meu compromisso social com os Povos da Floresta e, assim, aceitei o convite para integrar o coletivo dos professores da Escola Cruzeiro do Céu, organizando um curso de formação de educadores, um dos pontos levantados pelo Plano de Desenvolvimento Comunitário - PDC - de extrema necessidade, durante minha permanência na Vila Céu do Mapiá.

O curso de formação dos educadores da Escola Cruzeiro do Céu foi realizado durante quatro sábados seguidos, sempre no período vespertino, na escola, com a participação da maioria dos professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Os temas indicados pelo grupo foram agrupados em quatro blocos. Os encontros consistiram, na primeira parte, na apresentação do tema. A seguir, realizávamos dinâmicas para discussão e aprofundamento das questões, apontando sugestões e os encaminhamentos necessários.

O primeiro sábado em que nos reunimos foi no dia 17 de maio de 2003. Fizemos uma breve apresentação, porque já havíamos nos encontrado anteriormente para o trabalho do PDC. O tema elegido para esse dia foi: Diretrizes para elaboração do Projeto Político Pedagógico - PPP. Organizei minha fala de

83

modo a recuperar o significado etimológico das palavras Projeto Político Pedagógico, mostrar a necessidade de toda a coletividade, todos os seguimentos da comunidade participarem desse processo de elaboração do documento, focalizando o tipo de escola que se quer construir, por ser justamente o PPP uma construção social. Trouxe também o texto da LDB/9684, para que o grupo refletisse o que a legislação coloca sobre o assunto. Ainda, foram indicadas orientações básicas para a elaboração do PPP, contendo os seguintes itens: a missão da escola; os princípios fundantes - valores; as áreas prioritárias de atuação; os fundamentos epistemológicos - concepção de educação; os princípios estratégicos e os fundamentos didático-pedagógicos. Apresentação desse dia foi com base em referências teóricas85 sobre essa temática.

A discussão inicial sobre o Projeto Político Pedagógico da Escola Cruzeiro do Céu teve prosseguimento por meio de uma comissão com todos os segmentos representados. Os primeiros rabiscos dessa elaboração formularam o seguinte pressuposto: O trabalho educativo propõe-se a contribuir decisivamente na formação do aluno, como cidadão consciente e critico do mundo. Almejamos uma formação integral da criança e do jovem mapiense, estruturando bases sólidas para o conhecimento sistematizado, desenvolvendo a compreensão da co-responsabilidade social e ambiental. O trabalho educativo tem como principal objetivo permitir uma inserção saudável da criança e do jovem na sociedade em que vivem, formando-os para a vida em comunhão com a floresta Amazônica, através da busca do conhecimento e no exercício da cidadania. Possibilitar relações entre o saber

84 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei número 9394/96 85

BOUTINET, Jean-Pierre. Antropología do Projeto. Porto Alegre: Artmed, 2002.

VASCONCELOS, Celso S. Planejamento; Projeto de Ensino-Aprendizagem e Projeto Político Pedagógico. São Paulo: Libertad,2000.

VEIGA, Ilma Passos de Oliveira (Org). Projeto Político Pedagógico da Escola: uma construção possível. Campinas. São Paulo. Papirus, 1995.

sistematizado e o saber popular, por meio da valorização da cultura local no espaço das vivências escolares. A ação da equipe pedagógica da Escola Cruzeiro do Céu baseia-se no princípio da construção de valores significativos das experiências escolares por meio do saber das populações tradicionais da floresta86.

Para o segundo sábado do curso, o grupo de professores sugeriu como tema a apresentação dos quatro Pilares da Educação e o perfil do professor do século XXI. Preparei minha fala, para apresentação, com base no relatório de Jacques Delors87 e discutindo propriamente os princípios da educação, que são eles: aprender a conhecer -instrumentos da compreensão; aprender a fazer - para poder agir sobre o meio; aprender a viver juntos - participar e cooperar de todas as atividades e aprender a ser via essencial que integra as precedentes.

Para discutir o perfil dos educadores no século XXI, trouxe para a reflexão a célebre questão de Marx, em uma de suas teses sobre Feuerbach, “(...) que o próprio educador deve ser educado”. (Marx, 1999: 12) Com isso fica a indagação: Quem educará os educadores? E, a partir dessa formulação, apontei algumas aproximações entre o professor informador e o professor formador. Mostrei a necessidade do professor formador ser um profissional comprometido, consciente da importância do seu papel social e que isso implica numa postura investigativa e de constante estudo e pesquisa, ultrapassando o espaço da escola e estendendo a ação para a comunidade. Essa temática foi desenvolvida à luz do pensamento de Edgar Morin, cujo processo de construção do conhecimento exige competência, requer também técnica e arte. (2001-b)

86 Essas primeiras reflexões acerca do Projeto Político Pedagógico foram retiradas do documento chamado “Memorial da Escola Cruzeiro do Céu”. Documento encaminhado à Secretaria de Educação do Amazonas para solicitar a reforma do prédio.

87

DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2001 (p. 89 a p.102).

No terceiro encontro dos professores discutimos o tema: Os saberes e os fazeres da escola; noções sobre currículo e os componentes do currículo. Para tanto, o currículo é o elo entre a teoria e a prática pedagógica, tem por objetivo estruturar o planejamento e as ações dos professores. A escola necessita ser repensada desde a sua função básica na sociedade, que é sistematizar o conhecimento construído historicamente e que passa pela problematização dos currículos, que sustentam a prática pedagógica dos professores. Assim o currículo deve contemplar diversos componentes, presentes no cotidiano dos professores. Destacamos: “Que ensinar? Quando ensinar? Como ensinar? Que...Quando...Como...Avaliar?”. (COPPETE, 2003:51)88

Em nosso último encontro do curso, o tema referia-se aos Novos Paradigmas da Educação e aos Projetos de Trabalho. Focalizei a necessidade de a escola estar comprometida com esse tempo de mudanças e, para isso, os professores devem se empenhar em “(...) ensinar a compreensão humana” (MORIN, 2001-a: 93), que passa pelo reconhecimento da “(...) condição humana”. (MORIN, 2001-a: 47)89

Ainda trouxe para a discussão do grupo de professores da Escola Cruzeiro do Céu, numa perspectiva de prática interdisciplinar, o trabalho escolar redimensionado em Projetos de Trabalho90, voltado para uma visão global do processo educativo. Ao participar de um projeto, o aluno está envolvido em uma experiência educativa, em que o processo de construção do conhecimento está relacionado com a realidade

88 Os autores que ajudaram a encaminhar essa discussão foram:

SILVA, Tomas Tadeu da. (Org.). Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1995.

_______. Documentos de Identidade. Uma introdução às Teorias do Currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Gomes, Pérez e SACRISTAN, Gimeno. O Currículo. Uma reflexão sobre a Prática. Porto Alegre: Artmed, 2000.

89

Para subsidiar essa discussão me pautei em Morin (2001-a), nos capítulos III e IV. 90

A discussão sobre a metodologia de Projetos de Trabalho foi fundamentada em:

HÉRNÁNDEZ, Fernando e VENTURA, Monteserrat. A organização do Currículo por Projetos de Trabalho. O conhecimento é um caleidoscópio. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

vivenciada. O Projeto de Trabalho é resultado da interação entre o professor, os alunos e a comunidade.

O relato exposto anteriormente com relação a minha postura de mediadora no curso de formação dos professores da Escola Cruzeiro do Céu foi no sentido de buscar metodologias didáticas que contribuam para a compreensão de valores humanos e sociais. É necessário construir relações educacionais entre os profissionais e que venham provocar ações de solidariedade, contribuindo para a formação humana das crianças. De um lado, encharcadas pelo cotidiano da doutrina do Santo Daime, imersas nesse ambiente cultural e social que preconiza uma série de valores. De outro, incluídas no espaço da escola que tem por meta a sistematização do conhecimento formal, porém se coloca no compromisso de salvaguardar o saber local. O curso de formação sinalizou para um processo, garantindo a presença social e cultural das crianças, de suas histórias de vida, para fazê-las apropriarem-se de novos conhecimentos sob a luz de práticas pedagógicas eficientes e comprometidas.