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5 TRAJETOS DE SENTIDOS E AS MARGENS DO DISCURSO:

5.2 AS MONTAGENS DISCURSIVAS DA REVISTA

A premissa da sociedade de consumo “compro, logo existo” não parece ser, em primeira análise, o que direciona a busca por uma vida mais simples, pois esse estilo de vida prega o consumo consciente, que abarcaria as necessidades essenciais das pessoas e levaria a uma filosofia ecológica. Tampouco podemos dizer que esse estilo de vida estimula as experiências indiretas do mundo, em função de marcas do efêmero e da velocidade – características que Bretas (2006) confere à cultura contemporânea. No entanto, como já apresentamos, existe um tensionamento na relação entre simplicidade e consumo, no qual o que parece uma contradição se transforma numa relação de mútua interferência: a revista propõe uma vida simples, que preconiza uma redução do consumo, mas, de outra forma, a maneira que a sociedade oferece para ter uma vida mais simples é através do consumo como forma de construção de identidades.

Portanto, no “ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise” (ORLANDI, 2007a, p. 67), entendemos que a Vida Simples apresenta a reflexividade, questionando e autoconfrontando88 o pensamento sobre o qual se pensa, mas de forma tensionada: há uma tensão permanente entre o consumo consciente e o consumo “hegemônico”. Por trás de um aparente consenso sobre a incitação a um consumo simples, há uma complexificação e negociação de dizeres, que se ancoram numa filiação de sentidos de um estilo de vida que prega mudanças de consumo pessoal, mas silencia visões políticas do consumo. Trata-se da importância de andar de bicicleta, mas não de um sistema público alternativo de transporte. Fornece-se espaço para produtos naturais, mas não para discutir uma legislação que regule o uso de agrotóxicos e de conservantes. Enfoca-se plantações orgânicas mas não segurança alimentar contra adubos. Tal relação é importante para pensarmos nos sentidos interditados em relação ao consumo sustentável na mídia hoje.

Assim, incita-se o consumo sustentável, mas sem radicalismos ou militância, o que nos fez afirmar que o movimento da simplicidade voluntária é mais rígido e crítico do que

88 Segundo Beck (1997), o conceito de modernização reflexiva não implica reflexão, mas (antes),

160 os discursos midiáticos que apresentam essa forma de vida. Tal discurso ecoa no que enfoca Matheson (2008) e que é reflexo de muitos outros discursos jornalísticos tratando da sustentabilidade: “consumir tudo é ecoprejudicial (produção, embalagem, transporte, tudo tem seu custo), mas isso não significa que vou usar meu jeans de marca do ano passado pelas próximas oito estações. Por favor” (p. 133).

Considerações do relatório da PNUMA (MASERA, 2001) ajudam nesse entendimento, quando enfocam que a mensagem do consumo verde nos países desenvolvidos não é consumir menos, mas consumir melhor, não resultando em nenhuma mudança significativa de comportamento de consumo, além da preocupação ocasional com as consequências ambientais e de saúde relacionadas às decisões de compra. Segundo o relatório, os consumidores podem estar dispostos a seguir passos simples que beneficiem o meio ambiente, mas não pretendem fazer mudanças significativas nos hábitos de compra; no entanto, o consumo sustentável precisa de tais posturas eficazes.

O movimento não foi além do mercado para abordar os impactos socioeconômicos e ambientais do ciclo de vida de produtos, ou com sua mudança política ou institucional associada, um fato confirmado em uma pesquisa conduzida pela Associação de Consumidores do Reino Unido, que conclui: "as possibilidades para ações diretas são vistas como mais presentes em ações de compra do que em ações políticas..." (MASERA, 2001, p. 22, grifos do autor).

Ou seja, a aclamação pública à preocupação com o meio-ambiente não se traduz necessariamente em mudanças sustentáveis no comportamento do consumidor. “Estamos predispostos a criticar”, diz Bauman (2008b), “mas nossa crítica é, por assim dizer, „sem dentes‟, incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas de „política vida‟” (p. 129).

A partir das “montagens discursivas” (PÊCHEUX, 2008, p. 57) da revista, não é exagero afirmar que atualmente a mídia trata de forma diluída do poder contestatório do movimento da Simplicidade Voluntária na medida em que se torna chique e moderno usar os símbolos distintos da lógica sustentável: roupas customizadas, móveis exclusivos, comidas orgânicas, alimentação frugal, tecidos alternativos, design vintage. Consideradas as diferenças, é o que Layrargues (2002) avaliou a respeito do movimento hippie dos anos 1960, entendendo que teve seu ideário absorvido e contaminado pela ideologia hegemônica, e devolvido à sociedade como mais um produto mercadológico da moda. Para o pesquisador, o poder contestatório do movimento se esvaiu na medida em que pessoas

161 incorporavam ingenuamente os símbolos expostos pelo modismo, sem a intenção de explorar os limites da liberdade para além do que era interdito pelas convenções sociais.

Para de fato haver uma politização do consumo seria necessário o pensamento em longo prazo e a possibilidade de fazer projeções futuras, as quais, como sugere Bauman (2008b), levam ao engajamento de todo pensamento transformador. É preciso, então, certo controle do presente para que se possa conceber um projeto que leve em conta o futuro. No entanto, tal dimensão do futuro, segundo Portilho (2010, p. 14), não é tida pelos ricos, pois estão “obnubilados pelo imediatismo de seus ganhos”, nem pelos pobres que estão “presos pela lógica da sobrevivência imediata”. Além disso, outra questão que se coloca é que, no mundo de hoje, a certeza é algo que a maioria dos sujeitos não possui. A própria individualização significa, para Beck (1997), a desintegração das certezas da sociedade industrial, assim como a compulsão para encontrar e inventar novas certezas para si e para os outros que não a possuem. Para Bauman (2008b, p. 72-73), a esmagadora sensação de “perder o controle do presente” leva a um definhamento da vontade política, a uma descrença de que algo considerável possa ser feito coletivamente ou que a ação solidária possa proporcionar uma mudança radical no estado das relações humanas.

Como analisa Giddens (2010), é difícil enfrentar as ameaças climáticas porque elas dão a impressão de serem meio irreais – e, enquanto isso, há uma vida por viver, com todos os seus prazeres e pressões: “[...] há um abismo entre as preocupações conhecidas da vida cotidiana e um futuro abstrato, embora apocalíptico, de caos climático” (p. 19). Assim, o autor chama de “paradoxo de Giddens” o fato de, por os perigos do aquecimento global não serem palpáveis, imediatos ou visíveis, as pessoas continuarem sentadas, sem fazer nada a respeito.

[...] Na maior parte do tempo e para a maioria dos cidadãos, a mudança climática é um problema que fica num canto da mente, mesmo que seja fonte de preocupação. E assim permanecerá, a menos que suas consequências se tornem visíveis e imediatas. Até lá, não tenderá a funcionar nenhuma estratégia que se concentre exclusivamente em provocar medo e angústia, ou que não só se baseie em instruir as pessoas a reduzirem isto ou aquilo, mas também espere que elas monitorem continuamente esse processo (GIDDENS, 2010, p. 137).

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