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As mulheres, o Serviço Social e a discursividade globalizadora

6 AS MULHERES E A DISCURSIVIDADE GLOBALIZADA : DESAFIOS DO

6.2 As mulheres, o Serviço Social e a discursividade globalizadora

As mulheres assim como os assistentes sociais encontram-se diante de uma situação paradoxal: como concretizar sua “identidade projeto” num contexto que lhes é tão adverso e, mediante o obscurecimento das ações e das ideologias, que serviram como base para a autoconstrução de suas identidades. Têm de enfrentar o desafio de transformar as práticas discursivas em prática social, em condições histórico-sociais adversas.

Segundo Castells, o feminismo construiu uma “identidade de projeto” quando “abandona as trincheiras de resistência da identidade e dos direitos da mulher” para fazer frente ao patriarcalismo, à família patriarcal e, assim, a toda a estrutura de produção, reprodução, sexualidade e personalidade sobre a qual as sociedades historicamente se estabeleceram. Afirma ainda que “uma linha transversal atravessa toda a sociedade, enfatizando os interesses e valores femininos” (2006, p. 24, p. 221).

Hoje o capital traz de volta o discurso da vulnerabilidade social, utiliza-se do interdiscurso ao se referir a indivíduos perigosos e indivíduos em situação de risco - foco de atenção das ONGS e das organizações de voluntários. As famílias, principalmente as dos segmentos mais empobrecidos, são re-valorizadas como causa dos problemas individuais e do abandono de inúmeros brasileiros; delas, mais uma vez, cobra-se que os protejam e a elas cada vez mais se desprotege, discurso que devolve às mulheres, a função de cuidadoras.

Os cortes nos investimentos e dotações orçamentárias, destinadas às políticas e serviços sociais públicos, somados ao fechamento de postos de trabalho,

deixam grande parcela de famílias brasileiras entregues a sua própria sorte, ou seja, incapazes de proteger seus membros por que desprotegidas e, desta forma, as mulheres voltam a ser requisitadas no desempenho das funções voluntárias,

solidárias e cidadãs de cuidar, uma forma de disfarçar a redução e o sucateamento

dos serviços e políticas sociais públicos. O processo discursivo que acompanha este retorno da exaltação das mulheres como cuidadoras, de um lado, utiliza a memória discursiva de períodos anteriores, e de outro, oculta a não acessibilidade, pelo fechamento de postos de trabalho, de parcelas da população economicamente ativa.

Assiste-se a uma maior utilização dos fatores de ordem natural tais como sexo e etnia, para aliviar as tensões geradas pelo atual estágio do modo de produção capitalista. Estes fatores operam no sentido de desviar da estrutura de classes a nossa atenção e de propiciar o ocultamento das razões do desemprego estrutural. Um exemplo é o aumento das taxas de emprego feminino, tão enunciado nos discursos do capital que oculta os verdadeiros fatores deste aumento tais como: os empregos industriais onde a mão de obra masculina era majoritária diminuíram, em função da reestruturação produtiva; o aumento de vagas no mercado se localiza no setor de serviços, na terceirização e no trabalho temporário, onde a mão de obra feminina sempre esteve mais concentrada e onde a precarização das condições de trabalho e salário, é mais intensa. Os índices de desemprego, periodicamente divulgados como em elevação (em média de 15%), são medidos pela procura, o que faz com que parcelas da população economicamente ativa, que desistiram de procurar emprego ou estão exercendo atividades na informalidade, não integrem estes índices.

O grande tópico da mídia discursiva globalizada brasileira hoje é a violência urbana e doméstica; na primeira reforça a insegurança, o medo e provoca o aprisionamento domiciliar da população e, ainda, dá condições de maior lucratividade ao capital (que constrói mais instituições prisionais, produz mais armas e mais aparelhos de vigilância e segurança eletrônicos), a expansão da indústria do crime; na segunda, a mulher é apresentada como vítima de um inimigo próximo, seu companheiro, seu marido, estimulada a denunciá-lo e condenada, ou a prisão em casas de acolhida, ou a permanecer presa ao seu violentador. Numa sociedade em que milhares de homens e de mulheres vivenciam o desemprego, o sucateamento das políticas sociais e o difícil acesso aos direitos, ou seja, onde a violência originária da estrutura social é enorme, a centralidade do enfoque midiático dado à

violência doméstica16, dissimula/oculta a violência estrutural e atribui ao homem, nas

relações entre os sexos, o papel de grande vilão contemporâneo. Disto decorre o perigo do retorno das oposições entre homens fortes e mulheres frágeis, tão combatidas pelo feminismo.

A formação discursiva do capital, na sua reestruturação neoliberal globalizante, exerce forte influência no trabalho dos profissionais executores das políticas sociais, em que é comum o desenvolvimento de programas de “geração de renda”, com o objetivo de “qualificar” segmentos pobres para que obtenham, por conta própria, a sua subsistência. Estes programas, em muitos casos, visam à transmissão de conhecimentos e habilidades artesanais direcionadas às mulheres pobres que, se não forem acompanhados de estudos de mercado e de viabilidade de comercialização, certamente serão mais uma falácia, gerarão mais frustrações e permanecerão como programas pobres destinados aos pobres.

Ora, se a simples venda de alguns objetos artesanais, possibilitasse a autonomia econômica dos segmentos empobrecidos, a questão social seria de fácil resolução, mas, politicamente pensando, mesmo os profissionais envolvidos nesse tipo de programas têm conhecimento de que isto não soluciona e, portanto, reproduzem a alienação e o assujeitamento através destas práticas.

O assujeitamento destes profissionais à formação discursiva do capital faz com que sua ação não se dirija à assessoria e ao fortalecimento das organizações populares como canais de reivindicação de uma política de trabalho/emprego e se dê na atenuação dos conflitos capital/trabalho, no reforço à interpelação ideológica dos sujeitos com que trabalham. Sem crítica, não vêem a globalização neoliberal e a sua correlata reestruturação produtiva como as causas da agudização da questão social em nosso País.

O discurso neoliberal utiliza-se do interdiscurso e renova a idéia de atribuir “ao princípio de causação individual” àqueles que sofrem os problemas sociais “negando a relação existente entre o funcionamento global da sociedade e a presença dos chamados males sociais” (ALAYÕN: 1995, p. 16).

A institucionalização das demandas dos movimentos sociais e do feminismo, assim como dos canais de participação democrática, em moldes neoliberais

16 Seria ingenuidade dizer que a violência doméstica é um problema menor, que não é relevante e que não deve

ser objeto das políticas de proteção à suas vítimas e de atendimento especializado aos seus agentes, não se pode reduzi-la assim como não se pode super dimensioná-la, como o faz a grande mídia na atualidade.

recoloca as velhas práticas assistenciais e filantrópicas como mecanismos de controle social e de desmobilização das forças democráticas, e reordena as políticas sociais, na direção da afirmação que faz Martinelli, “na verdade, lamentavelmente, as políticas públicas se transformaram, neste país, em política pobre para o pobre” (1998, p. 144).

Desta forma, também o discurso e as conquistas do feminismo são alvo da ação neoliberal e são, em parte, cooptados pelo Estado via conselhos, fóruns, delegacias, secretarias cujas ações são pontuais, fragmentadas e tópicas.

A formação discursiva do capital institui o medo e a insegurança que se materializam na apatia e tomam o lugar das reivindicações e das lutas. Assim, interpela ideologicamente as forças que se contrapõem ao capital e dissemina a ideologia do “salve-se quem puder”, de que a luta a ser empreendida é a da mera sobrevivência. A formação discursiva é terrorista e coercitiva; oculta as contradições, os antagonismos e a exploração do capital com o recurso da mídia de tal forma que torna difusos, idealistas e utópicos os discursos de uma ordem societária mais justa e igualitária.

Mas, como lembra Harvey, precisamos considerar se “essas mudanças assinalam o nascimento de um novo regime de acumulação capaz de conter as contradições do capitalismo durante a próxima geração, ou se marcam uma série de reparos temporários” (1996, p. 177).

O feminismo hoje é mais um movimento de consciência social do que de militância. Como movimento ou revolução cultural, o feminismo não pode mais ser negado, suas marcas são visíveis, profundas e irreversíveis. Um balanço das suas conquistas aponta para o fato de ter realizado um verdadeiro escrutínio da vida social, desocultado e detectado contradições, fragilidades e verdades ocultadas pelas ciências, pelo senso comum, pelas religiões, pelas instituições de ensino, pela política, pela economia e nas relações entre as classes.

Instituiu as mulheres como sujeitos políticos e, junto aos demais movimentos sociais, revelou que a igualdade passa pela desestruturação da ordem social de classes, que ao hierarquizar as diferenças, transforma-as em desigualdades. Reivindicou o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

Hoje, a discussão da questão feminina e sua repercussão estão em todos os espaços sociais, desde o interior da família até os espaços políticos mais amplos. Para entender como se deu essa disseminação social de questões que, poucas décadas atrás, preocupavam apenas parcelas minoritárias da elite intelectual, devemos compreender que uma das sementes mais importantes foi a organização das mulheres brasileiras em torno dos problemas específicos da sua condição... (1992, p. 13).

A receptividade das idéias feministas não se deve apenas à mudança na consciência de gênero e à dissolução das barreiras simbólicas e culturais empreendidas pelas mulheres brasileiras, mas, também, à própria falência dos modos masculinos de organizar e gerir a vida social, num mundo marcado pela violência e por uma profunda crise nas formas de sociabilidade.

Hobsbawm considera que, no terceiro quarto do Século XX, houve “uma profunda, súbita e dramática transformação das convenções de comportamento social” e que “as mulheres foram cruciais nessa revolução cultural”. Mudaram, segundo o autor, tanto as expectativas das mulheres em relação a si próprias como as expectativas da sociedade em relação aos papéis que deverão desempenhar (1995, p. 313). Para AD, mudou a posição das mulheres em relação à formação discursiva do capital, elas romperam com a posição de sujeito-efeito, assumem a posição de sujeitos políticos e históricos, lutam pela autonomia, igualdade, democracia e pelo acesso aos direitos, ou seja, identificam-se com a formação discursiva do trabalho.

Desta forma, mudou a identidade social das mulheres assim como a família, as relações interpessoais e as relações sociais, mediante o forte movimento social que antecedeu aos anos 90. As mudanças foram tão profundas que alteraram as relações entre gerações, entre homens e mulheres e entre as classes sociais. Os valores impostos pela formação discursiva do capital como hierarquia, ordem, disciplina foram fundamentalmente abalados. Os operários, as mulheres, os estudantes assumiram o direito de serem sujeitos, em conformidade com a formação discursiva do trabalho.

A transformação operada caracterizou o que Hobsbawm (1995) chamou de

revolução cultural, uma transformação nos assuntos humanos que ameaça a

estrutura de dominação capitalista e que Castells refere-se como, “a mais importante

A participação das mulheres nesta transformação foi decisiva como demonstram as análises precedentes. A identidade das mulheres nas sociedades ocidentais foi reconstruída e hoje se enquadra, segundo afirma Castells, numa “identidade de projeto”, ou seja, “a essência do feminismo como praticado e relatado, é a (re)definição da identidade da mulher”(op.cit. p. 211).

A estas transformações, o capital contra-ataca, buscando a sua ocultação e a elas sobrepõe os seus interesses. Vive-se o risco de perdê-las se a apatia e o silêncio nos mantiverem individualistas e competitivos, ao invés de organizados e solidários. A defesa dos direitos e dos avanços conquistados é, para as mulheres, para os assistentes sociais e para o trabalho social, um grande desafio.

O Serviço Social avançou, mas, como lembra Silva

...precisamos fazer muito mais e, sobretudo, disseminar a força desse avanço entre um número maior de colegas profissionais no cotidiano de sua prática profissional, mediante a qual está em contato direto com os setores populares com quem deve manter aliança e, sobretudo, o compromisso de trabalhar em articulação com estes para a construção de uma nova sociedade (2005)17.

O cotidiano de trabalho do assistente social, seja na dimensão interventiva, seja na dimensão intelectual, tem limitações e condicionamentos, mas tem também possibilidades de transformação. Com afirma Iamamoto, “as possibilidades estão

dadas na realidade, mas não são automaticamente transformadas em alternativas profissionais” (2001, p. 21).

O projeto profissional, como pode ser visto na sua discursividade, exige que, além de sujeitos cognitivos e pensantes, sejamos sujeitos de ação prática, política e competente na luta e na defesa da vida e de uma nova ordem social. Situa-nos na posição de sujeitos da formação discursiva do trabalho e desafia-nos a avançar nessa posição por meio de ações profissionais que fortaleçam essa identidade.