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Capítulo 2 – CONSTRUINDO MODOS DE OLHAR E DE

2.2 As Observações e os relatos

Para um acompanhamento mais sistematizado do que ocorria e decorrente do delineamento do objeto de estudo fui registrando em meu caderno de campo, na medida do possível, tudo aquilo que observei no desenvolver das atividades educativas que ali aconteciam, como a relação dessas mulheres com o seu objeto de conhecimento (saberes escolares) e as interações que se davam no tecido das relações sociais que ali se apresentavam ora pelas suas falas, ora pelos seus gestos e até mesmo pelos seus silêncios.

Após o registro no caderno de campo, e objetivando construir um material que pudesse oferecer elementos mais concretos para o estudo que me propunha, optei por começar digitando, em um arquivo específico, todo material escrito no caderno. Em seguida, fui acrescentando informações advindas de um intenso trabalho de memorização, o que deu origem aos relatos da pesquisadora. Pela operação da memorização, foi possível resgatar e relatar fatos, acontecimentos, falas que, por alguma razão, não foi possível registrar no momento de seu acontecimento. Ao longo do ano de 2004, participei de 18 encontros com esse grupo de mulheres e foram produzidos 18 relatos que farão parte do material de análise.

Michel de Certeau (2002) afirma que o relato se constitui em uma prática que faz parte das táticas cotidianas. Ele é um ato culturalmente criador que descreve lugares, estabelece e cria espaços, diferencia mapas (como modelos) de percursos (como caminhos que se constroem), torna possível a percepção de demarcações fronteiriças e acontecimentos. Todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço. É aí que tem a ver com as táticas cotidianas, faz parte delas, desde o abecedário da indicação espacial (dobre à direita, vire à esquerda), até o noticiário de cada dia, ao jornal televisionado, aos contos lendários e às histórias contadas (lembranças e romances de países estrangeiros).

Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um “suplemento” aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes e enquanto os pés a executam (CERTEAU, 2002, p.200).

O relato, pensado como atividade narrativa, é fragmentado e disseminado, atua nas fronteiras, nas relações com o estrangeiro, sempre efetuando operações de demarcação.

Enquanto operação de demarcação, o relato aparece como ponto de partida, são fragmentos tirados de histórias anteriores que fornecem informações bastante relevantes à análise do espaço em que se dá o acontecimento. Importante, aqui, remeter à diferenciação que o autor faz entre espaço e lugar sendo que o lugar é a

ordem segundo a qual se distribuem elementos na relação de coexistência; excluída a possibilidade de duas coisas ocuparem um mesmo lugar, uma configuração

instantânea, implica uma indicação de estabilidade, enquanto que o espaço

É um cruzamento de móveis, é de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos, é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. O espaço estaria para o lugar como a palavra quando é falada, isto é, é percebida, na ambigüidade de uma efetuação, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformações devidas a proximidades sucessivas. Em suma, o espaço é o lugar praticado. (p. 201-

202).

Assim pensado, o relato possibilita esse praticar. Nesse sentido, o relato autoriza o estabelecimento, cria um espaço e serve de base para as ações. Eis aí o

primeiro papel do relato. Abre um teatro de legitimidade a ações efetivas. Cria um campo que autoriza práticas sociais arriscadas e contingentes. (p. 210-211). E

mais:

os relatos são animados por uma contradição que neles representa a

relação entre a fronteira e a ponte, isto é, entre um espaço (legítimo) e sua exterioridade (estranha). ... Deste modo, introduz-se uma contradição dinâmica entre cada delimitação e sua mobilidade. O relato não se cansa de colocar fronteiras. Multiplica-as mas em termos de interação entre personagens e movimentos. ... Os limites são traçados pelos pontos de encontro entre as apropriações progressivas e os deslocamentos sucessivos dos actantes. ... A junção e a disjunção são aí indissociáveis.

(Este seria um segundo papel.) Dos corpos em contato, qual deles possui

a fronteira que os distingue? (p.212-213)

Ancorada nesses apontamentos de Certeau, entendo que o relato adquire dimensões bastante significativas para o desenvolvimento deste estudo uma vez que

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação.Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida tirá-lo dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1985, p. 205

Nos relatos, por mim construídos, constam as atividades como foram realizadas durante os encontros das aulas, o local da observação, a hora do início e do término da mesma. Constam as atividades que foram planejadas e que muitas vezes não chegaram a ser realizadas conforme o planejamento devido à dinâmica da sala de aula, pois, muitas vezes, foi preciso mudar o planejamento por causa das dúvidas, das sugestões de atividades, enfim, das necessidades reais e momentâneas trazidas pelas educandas. E constam eventos ocorridos, com uma atenção especial às falas, na medida do possível foi feita a transcrição de falas ocorridas durante os encontros.

Optei por organizar esse material de tal forma que me possibilitasse localizar no tempo e no espaço o momento de um dado acontecimento ou até mesmo de uma simples fala; assim, organizei-os em uma seqüência numérica e devidamente datados.

Desses relatos construídos, um dos desdobramentos pensados foi construir, também uma forma artesanal de comunicação, o que vou chamar de mosaico pessoal, que consiste no recorte e colagem das falas dos sujeitos e tudo aquilo que lhes dizem respeito, de forma que possibilitasse conhecer um pouco mais suas idiossincrasias, pelo aglutinamento dos recortes.

Para além de ser a possibilidade material para o objeto em estudo, portanto, a importância dos relatos se verifica nessas dimensões apontadas, nos relatos que fui construindo ao complementar os elementos das observações com anotações

posteriores puxadas pela memória; nos relatos que foram construídos ao recortar e colar trechos de falas das mulheres e sobre as mulheres e organizados em mosaicos, o que permitiu uma aproximação do foco do olhar para cada uma das mulheres; e, em uma outra dimensão, não se pode esquecer o profundo significado que a fala, que o narrar fatos e acontecimentos de sua trajetória pessoal, escolar, de vida, ou no grupo, produz no modo de referir-se a si mesma como sujeito. Considerando que o narrador:

[...] pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida. [...] O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a macha de sua vida. [...] O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (BENJAMIN, 1985, p. 221)

Entendemos ser essa uma dimensão fundamental para uma aproximação da noção de sujeito que elegemos como objeto de estudo. Podemos falar que é a linguagem na sua relação com o pensamento - de si mesma. No entrelaçamento dessas dimensões do relato, enquanto material empírico de análise e enquanto objeto que se constrói e se reconstrói o tempo todo, podem estar mais alguns indícios para o estudo que proponho.

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