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93 Capistrano de Caminhos antigos e povoamento do Brasil Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1989 p 37.

2.1 As Ordenações do reino e a pena de degredo

Entre as penas aplicadas nas ordenações do Reino de Portugal, o degredo estava presente em todos os códigos portugueses. Nas afonsinas, manuelinas e filipinas, encontramos este tipo de sentença aos que não seguiam as determinações impostas nestes documentos. Nas Ordenações afonsinas podemos citar o título 39 do livro V: Do

que defende moeda falsa cintemente, e nom foi della feitor:

Por ley geeral, que no seja nenhu tam ousado, que use moeda falsa, a saber, comprando-a, ou vendendo-a, ou defendendo-a em alguas cousas, que compre, ou pagando per ella algumas dividas, a que seja obrigado. E o que fezer o contrario, se for pessoa, que segundo direito e leis de nosso regno deva ser açoutado, mandamos que o açoutem, e o degradem pera as ilhas pera sempre; e se for pessoa, que nom deva seer açoutada, seja degradada pera sempre pera cepta.212

211 Idem, p. 125-126.

212 Ordenações Afonsinas. Disponível em: http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/, acesso em: 10 de dezembro de 2015. Ceuta era uma cidade com riquezas, sobretudo o trigo, deste modo, incentivando o processo colonizador na região. Durante um período de 40 anos cerca de 455 criminosos foram degredados para Ceuta, a maioria dos exílios ocorreram entre 1450 e 1456: “Ceuta foi conquistada pelos portugueses em 1415 (uma data frequentemente usada para assinalar o início da expansão ultramarina europeia) e fez parte do Império até 1640.” In: COATES, Timothy J. Degredados e Órfãs: Colonização

No código afonsino existiam outras determinações no livro quinto que sentenciavam o desviante com o degredo. Como os que nas Ordenações manuelinas encontramos a pena de degredo como punição para vários delitos, como no caso do título 31 do livro V: Do homem que se veste em trajos de molher, ou molher em trajos

de homem, e dos que trazem mascaras:

Defendemos, que ninhuu homem se vista nem ande em trajos de molher, nem molher em trajos de homem. Nem isso mesmo andem com mascaras, salvo se for pera alguas festas, ou jogos; e quem o contrario de cada huua das distas cousas fizer, se for piam seja açoutado pubricamente, e se for escudeiro, e di pera cima, sera degredado dous annos pera alem, e mais cada huu, a que cada hua das ditas cousas for provado, paguara dous mil reas pera quem o acusar.213

Além deste título encontramos a pena de degredo em outros momentos do código manuelino. No título 72: Dos vaadios, a pena de degredo para além-mar por 1 ano; No título 33: Dos feiticeiros, e das vigilias que se fazem nas Igrejas, o degredo deveria ser perpétuo para a ilha de São Tomé, ou para outras ilhas próximas; No título 48: Como sam defefas as cartas, e dados, o degredo poderia ser, aos de maior condição, de 1 ano para Ceuta. No título.68: Dos que fazem carcere priuado, se fosse de pequena condição, deveria ser açoitado e degredado para Ceuta por 5 anos, se fosse vassalo, ou de semelhante condição, seria degredado por 5 anos para Ceuta, sem a necessidade de açoite, e se fosse cavaleiro, ou fidalgo, poderia ser degredado para o mesmo local dos demais por 4 anos, sem também, sofrer o açoite.

As localidades e a duração do degredo variavam de acordo com o delito cometido. Também eram classificadas estas penas, a partir da gravidade do ato. Inicialmente tínhamos o degredo para fora da localidade ou região em que o sentenciado

213 Ordenações Manuelinas. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/, acesso em 10 de dezembro de 2015.

residia, que poderia ser descrito como “fora da terra” ou “fora do Bispado”; Para um mosteiro, aplicados a membros do clero; Para um local designado, no qual o número de anos poderia variar, ou, em alguns casos, nem ficar prevista a duração; Para um local designado durante toda a vida; Para às galés, que acabava configurando um sistema independente; e, por fim, de Portugal para as suas colônias214.

A estudiosa Maristela Toma, em dissertação de mestrado intitulada - Imagens do

Degredo: História, legislação e Imaginário215, realizou um estudo discutindo o degredo

e as Ordenações filipinas. Sua pesquisa teve como objetivo principal compreender a historicidade do degredo, sobretudo no contexto português. A perspectiva de historicizar o degredo pode ser percebida na tentativa de acompanhar as mudanças, ampliações e importância que este mecanismo foi incorporando no decorrer do avanço dos impérios coloniais:

No caso específico de Portugal, o uso do degredo foi adquirindo novos contornos e a pena foi sofrendo modificações, se estendendo por uma gama cada vez maior de crimes e territórios compulsados como destinos. As sucessivas ampliações da pena de degredo podem ser apreendidas acompanhando-se a legislação.216

A historiadora, mediante a observação do degredo a partir do discurso legal, analisou o funcionamento do judiciário português moderno, para poder refletir sobre a norma que o institui enquanto penalidade. O discurso normativo foi o principal interesse do trabalho, e contou com as Ordenações filipinas enquanto principal documentação consultada:

214 “Tanto nas Ordenações Manuelinas como nas Filipinas, as sentenças de exílio eram classificadas segundo essa ordem, desde a mais leve à ais grave”. In: COATES, Timothy J. Degredados e Órfãs:

Colonização Dirigida pela Coroa no Império Português, 1550-1750. Op. cit. p. 56-57.

215 TOMA, Maristela. Imagens do Degredo: História, legislação e imaginário ( a pena de degredo

nas Ordenações Filipinas). Campinas, Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de

Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2002.

216 TOMA, Maristela. Imagens do Degredo: História, legislação e imaginário ( a pena de degredo

A partir das informações coletadas no Livro V das Ordenações Filipinas confeccionamos um banco de dados contendo cerca de 400 registros que relacionam os crimes e suas respectivas penas previstas na legislação. As informações contidas nesse banco permitiram estabelecer uma hierarquia das penas, especificar as modalidades de degredo praticadas, os destinos e o tempo da pena; além de equacionas os casos de crimes que incorriam em degredo, levando em conta variáveis como: o estatuto social dos criminosos, reincidências e situações de atenuantes/agravantes que determinavam o tipo de pena a ser aplicada.217

Maristela Toma dividiu a sua pesquisa em quatro momentos. Inicialmente fez uma análise reflexiva acerca da construção da memória do degredo, observando a produção historiográfica realizada, que, segundo a mesma, está dividida entre:

de um lado, há os historiadores que demonstram uma visão extremamente negativa da prática[...] a visão da colônia como sendo o reservatório de toda a corja vil de Portugal […] De outro lado, há os historiadores que se preocuparam em relativizar a questão e, apoiados sobretudo na necessidade de se reequacionar o problema das penas previstas no código filipino, se empenharam em por abaixo o mito da colonização por marginais218

As trajetórias de alguns sujeitos que participaram dos momentos iniciais do processo colonizador na América portuguesa como o Barechal de Cananéia, João

Ramalho e Diogo Álvares - o Caramuru, e como estas narrativas marcaram as imagens

acerca do degredo e do degredado na historiografia também são abordadas na primeira parte do estudo.

A discussão sobre a conceituação do degredo também é tratada nesta pesquisa, bem como as modalidades de degredo que foram utilizadas em Portugal desde o período medieval e suas respectivas modificações ocorridas a partir dos processos de conquistas e navegações. Os aspectos jurídicos e simbólicos do degredo são abordados na parte final do trabalho.

No que tange à discussão sobre o degredo nas Ordenações filipinas, Maristela Toma afirmou: “as penas de degredo e de morte, em suas várias fórmulas, são as que

217 Idem, p. 8. 218 Idem, p.17.

aparecem com mais frequência ao longo do livro V. Para além delas, havia também uma série de penas acessórias ou paralelas, que podem ser divididas em penas corporais, pecuniárias e espirituais.”219. Nas Ordenações filipinas o degredo poderia ser destinado ao Brasil, e para 'um dos lugares da África' deixando assim mais flexível o destino do condenado: “por meio desse expediente, a Coroa conferia maior dinamismo ao sistema de degredo e evitava o desperdício de mão de obre ociosa”220.

A importância do degredo, a sua utilização nas Ordenações e como esta punição foi sendo empregada de maneira sistemática nos códigos penais portugueses evidenciam que o degredo não tinha somente a função de punir o infrator, mas servia também como projeto do Estado português a corroborar com o processo de organização da sua dinâmica imperial:

Peça central do aparelho punitivo, há que se considerar o fato de que, embora muitas vezes combinada a expedientes como baraço e pregão público, ou mesmo açoites, a pena de degredo contribuiu para a criação, em Portugal, de um sistema punitivo menos teatral, considerando a economia geral dos castigos peculiar ao antigo regime221.

O historiador Geraldo Pieroni, discutindo o degredo e as Ordenações do reino de Portugal afirmou que existiam 256 delitos no código filipino que eram punidos com o banimento e sobre a aplicação desta pena acrescentou:

Todos os condenados a degredo, qualquer que fosse seu crime, deviam ser enviados para o Brasil, para a África, para a Índia e para o interior de portugal, especialmente para castro Marim. Segundo a gravidade do delito, o degredo podia ser perpétuo ou por um prazo que não ultrapassasse dez anos. Às vezes o degredo devia durar ' até o perdão do príncipe' […] As Ordenações concediam-lhe um prazo de trinta dias antes de partir e, às vezes, esse prazo podia ser prorrogado até por dois meses. O condenado enviado ao Brasil o era por um mínimo de cinco anos e quando o crime não merecia tal punição, o condenado era enviado para a África, para Castro Marim ou para uma região de Portugal.222

219 TOMA, Maristela. Imagens do Degredo: História, legislação e imaginário ( a pena de degredo

nas Ordenações Filipinas). Op.cit. p.108.

220 Idem, p.115. 221 Idem, p. 118.

Com relação aos delitos que poderiam ser punidos com o degredo nas Ordenações filipinas podemos destacar: o título 3 – Dos feiticeiros, a depender das 'abusões' realizadas seriam degredados: “se for escudeiro e daí para cima, seja degredado para África por dois anos; e sendo mulher da mesma qualidade, seja degradada três anos para Castro Marim”223.

No título 8: Dos que abrem as cartas del-rei ou da Rainha, ou de outras

pessoas, se o indivíduo abrisse uma carta real, sendo escudeiro ou outro posto de maior

condição, deveria ser degredado para a África para sempre. Se fosse de menor condição seria, além de degredado, açoitado publicamente. Esta punição era diversificada de acordo com a gravidade do delito cometido. O mesmo título 8 das Ordenações, havia uma outra penalidade, caso a carta fosse de infantes, duques, condes, ou outros prelados. O infrator seria penalizado, com o degredo para África até a dispensa do monarca, e se fosse de menor condição, receberia açoites em público.

Nas Ordenações filipinas havia, inclusive, os últimos títulos são destinados ao degredo e ao degredado. São respectivamente: título 140 - Dos degredos e dos

degredados; título 141 - Em que lugares não entrarão os degredados; título 142 - Por que maneira se tratão os degredados das cadeias do Reino à cadeia de Lisboa; título

143- Dos degredados que não cumprem os degredos. Nestes títulos o código filipino descreve como devia proceder com o condenado ao degredo, desde o momento da sua sentença, passando pelo encaminhamento até a prisão, a espera para ser levado até o seu destino, os funcionários responsáveis pelos trâmites, entre outros aspectos.

Nestas definições, os degredados ao Brasil, por exemplo, não poderiam ser

Brasil Colônia. Op. cit. p. 55-56.

embarcados para este destino por tempo inferior a cinco anos. A localidade e o tempo de permanência dependia do delito cometido, e estas indicações estavam presentes nas Ordenações. Encontramos descritos nas Ordenações os destinos que os sentenciados ao degredo eram enviados: “mandamos que os delinquentes que por suas culpas houverem de ser degredados para lugares certos, em que hajam de cumprir seus degredos, se degredem para o Brasil ou para os lugares de África, ou para Castro Marim ou para as partes da Índia, nos casos em que por nossas ordenações é porto degredo para as ditas partes.”224.

Com relação as mulheres, havia uma restrição. Não eram todos os locais que podiam ser banidas, e esta observação também aparece nas Ordenações filipinas: “e as mulheres não serão condenadas em degredo para África, por caso algum que seja, mas serão degredadas para outras partes, conforme as suas culpas e nossas ordenações”225.

Um aspecto abordado nas Ordenações e que contribuía para a organização dos sentenciados ao degredo era o encaminhamento destes até a cadeia. Os caminheiros que ficavam responsáveis pelo transporte dos condenados até a prisão dos degredados em Lisboa, e portavam também uma carta constando a pena. Num período estabelecido pelo documento, os juízes representantes de cada comarca do território português, deveriam enviar estes presos com a devida identificação física, infração, tempo e duração do degredo:

Querendo dar ordem como os presos que estão condenados nas cadeias do reino possam seguramente ser trazidos de Lisboa e daí levados a cumprir seus degredos, mandamos que os corregedores das comarcas e ouvires, assim dos mestrados, como dos senhores de terras onde os corregedores não entram, mandem de nossa parte aos juízes de lugares de suas comarcas e ouvidorias que cada três meses levem à cadeia de sua correição ou ouvidoria que mais perto estiver do caminhão de lisboa (sendo a tal cadeia forte e segura) todos os degredados que hão de ir presos em ferros; e cada um dos ditos juízes, 224 LARA, Silvia Hunold. (org). Ordenações Filipinas. Livro V. Op. cit. p. 495.

assim de fora como ordinários, levará aos ditos corregedores ou ouvidores certidão dos presos degredados que leva com declaração dos nomes e idades, e sinais que têm, e para que lugar, e por quanto tempo são degredados, e quem deu sentenças”226.

Os juízes que ficavam responsáveis pela execução da pena. Enviavam para a cidade de Lisboa, e desta localidade, encaminhavam para a cadeia dos degredados, a partir da carta de execução227. Além dos juízes e corregedores que participavam deste processo de sentença, e envio dos infratores, devidamente presos com ferros até a cadeia, outros funcionários como o escrivão, o meirinho que auxiliavam no registro das sentenças entre outros aspectos:

e o escrivão dos degredados que residir na cidade de lisboa terá um livro numerado e assinado pelo corregedor que servir de juiz dos degredados, no qual registrará as sentenças de cada um e a carta de guia, e as próprias entregará às partes, se as quiserem, e não as querendo as entregará ao meirinho dos degredados; os quais meirinho e escrivão não levarão delas busca em tempo algum, e levando-a, incorrerão nas penas da ordenação(título 72), dos oficiais que levam mais do conteúdo em seus regimentos, o qual registro será assinado pelo corregedor.228.

O livro dos degredados também fazia parte desta organização documental elaborada para fiscalizar os condenados. Nesta documentação havia uma descrição física229 do sentenciado, local onde deveria cumprir o degredo, delito cometido, e duração da pena230. A partir do momento em que o condenado chegava na cadeia dos degredados, ficava aguardando a chegada de embarcações disponíveis para levá-los até o destino descrito na sentença.

226 LARA, Silvia Hunold. (org). Ordenações Filipinas. Livro V. Op. cit. p. 501 227 Idem, p. 487.

228 Idem, p. 506.

229 Acreditamos que esta descrição seja utilizada para identificação em caso de fuga.

230 “e o preso que pedir alvará de fiança para ir cumprir degredo trará certidão do corregedor, ouvidor ou juiz de fora do lugar onde for preso, em que se declare a idade e sinais de sua pessoa, de maneira que conste pela certidão ser dele o mesmo que é condenado; e com ela se apresentará no lugar para onde for degredado e sem ela o não assentarão no livro dos degredados, nem lhe passarão certidão de como se apresentou nem de como cumpriu o degredo”. In: Idem, p.475.