• Nenhum resultado encontrado

3. A E SFERA C OMPOSITIVA NA E LETROACÚSTICA M ISTA

3.4 A eletroacústica em tempo real: questões compositivas

3.4.1. As partituras virtuais de Philippe Manoury

O conceito de partituras virtuais62 surge, para Manoury, a partir de uma

reflexão a respeito do próprio status da escrita/escritura na música eletroacústica

60 Cf. BENNETT, 1990, passim. 61 Cf. MENEZES, 2002b, p. 306.

mista63. Partindo da idéia de escrita em sua acepção tradicional – ou seja, daquela aplicada à notação dos sons instrumentais, de caráter metonímico, dotada de

virtualidade e intrinsecamente ligada ao par escritura/interpretação –, considera o

seguinte:

Na ausência de ferramentas conceituais, restou-me, portanto, administrar a situação presente [...]. No momento em que parti da análise de que estas são as condições da escritura e da interpretação na música tradicional, determinei que elas deveriam constituir, ao meu ver, as bases teóricas da música eletroacústica em tempo real64 (MANOURY, 1998b, p. 72, trad. nossa).

Assim sendo, de acordo com o conceito de partituras virtuais, parte-se da premissa de que existe a “possibilidade de detectar e de analisar os eventos produzidos em tempo real, o que significa, em música, os eventos produzidos pela interpretação [musical]” (Ibidem, p. 73). Desta forma,

as partituras virtuais seguem os mesmos princípios das partituras tradicionais. Não fornecem a totalidade do conteúdo sonoro, mas somente uma parte dele. E é esta parte, codificada na memória da máquina, que permanece invariável, independente do modo como agirá o intérprete. A parte ausente é determinada pelas relações estabelecidas entre o intérprete e a máquina. Esta análise em tempo real dos dados instrumentais, ou vocais, é que definirá os valores reais65 que determinarão

a produção sonora66 (Ibidem, loc. cit., trad. nossa).

Um termo largamente utilizado para esse tipo de procedimento em tempo real é seguidor de partitura, nomenclatura que o próprio Manoury considera inapropriada. Nesse caso, seria mais correto utilizar o termo reconhecimento de partitura67, dado o

modo de funcionamento desse dispositivo: a partitura instrumental é previamente

63 Cf. Capítulo 2, item 2.2.

64 No texto original: En l’absence de ces outils conceptuels, il reste cependant à gérer la situation présente [...]. C’est en partant de l’analyse de ce que sont les conditions de l’écriture e de l’interprétation dans lá musique traditionelle que j’ai determine ce qui devrait constituer, selon moi, les bases théoriques de lá musique électronique em temps réel.

65 A respeito dos valores reais de uma partitura, cf. Capítulo 2, item 2.2.

66 No texto original: [Les] partitions virtuelles sont basée sur la même appréciation que celle que j’ai donée au sujet des partitions traditionelles. Elles ne donnent pas la totalité du contenu sonore, mais une partie seulement. Cette partie, qui est codée dans la mémoire de la machine, démeure invariable, quelle que soit la manière dont l’interprète s’agira. La part [sic] manquante est determinée par les relations qui sont établies entre l’interprète et la machine. C’est l’analyse em temps réel des donées instrumentales, ou vocales, qui définira les valeurs réelles qui serviront à produire le son.

“memorizada” pelo computador, que marca pontos de referência, dispostos de acordo com a sucessão cronológica dos eventos musicais. No momento em que o instrumentista interpreta a partitura, as estruturas a serem acionadas pelo computador – demarcadas antecipadamente – permitem certo nível de falhas por parte do intérprete, pois a máquina trabalha com a disposição geral dos eventos musicais, não apenas com os eventos de forma isolada.68

Assim, torna-se muito mais confortável para o instrumentista a atuação dentro desse prisma, já que não só os princípios fundamentais para o referido processo, descritos há pouco, como também o próprio ambiente de performance gerado, são muito similares ao tradicional. E é neste ponto em específico que se estabelece o outrora mencionado elo entre a eletroacústica mista e o repertório pré-eletroacústico: a partir dele, desvela-se um possível contínuo histórico entre ambos, fator que se constitui como base plausível para o trabalho compositivo com sons em tempo real. Em contrapartida, por mais que as estratégias de composição sejam altamente elaboradas na eletrônica em tempo real, não se pode fugir do fato de que as estruturas eletroacústicas se encontrarem submissas espectralmente, na maior parte das vezes, ao material instrumental. E, diferentemente de Kontakte, uma composição desse tipo não terá sofrido o mesmo processo de elaboração sônica em estúdio. Numa primeira análise, pode-se dizer que é este o aspecto compositivo mais limitante no uso dos sons em tempo real, a despeito de, nesse caso, ser inegável a existência de um ganho interpretativo no que diz respeito à problemática mais imediata apontada na “querela dos tempos” – qual seja: a inflexibilidade temporal a que os sons em tempo diferido submetem os instrumentistas na

performance desse repertório.

Em vista de todas as imbricações aqui expostas, ainda há uma possibilidade compositiva proporcionada pelos programas computacionais – neste caso específico, o programa Max/MSP: mesclar a idéia de partitura virtual com o uso concomitante de estruturas eletroacústicas pré-elaboradas em estúdio.

O modo como funciona esse entrelaçamento de técnicas se dá de maneira bastante simples: mantêm-se os mesmos procedimentos utilizados nas partituras

virtuais, em que a máquina decodifica todo o texto musical a ser executado pelo

instrumentista, atentando para uma série de pontos de referência. Como já mencionado anteriormente, esses pontos formam uma espécie de coleção geral de dados musicais. Somado a isto, o compositor insere estruturas eletroacústicas previamente elaboradas, como ocorreria no caso de uma obra idealizada com sons em tempo diferido. E é aí que reside o diferencial: ao invés de fixar essas estruturas

no tempo, ele “marca”, nessa partitura decodificada no processador da máquina, o

momento exato em que deseja acioná-las.

Sendo assim, considera-se que essa via de trabalho consiste numa possibilidade de o compositor transitar entre dois modos distintos de elaboração eletroacústica. Por meio disso, ele pode lidar não apenas com as transformações em tempo real, mas também com o embate sonoro característico da elaboração em estúdio, que permite o vislumbrar das minúcias da complexidade sonora. Além disso, trabalhar diretamente sobre o próprio som, fator propiciado pela eletroacústica, é uma das experiências mais instigantes que pode ter um compositor. Portanto, essa estratégia de trabalho é enriquecedora, pois contribui para uma elaboração mais profunda do material sonoro, ao mesmo tempo em que não exclui as possibilidades trazidas pelos progressos tecnológicos ao campo da música eletroacústica mista.

No que se refere ao aspecto interpretativo, bem como à escuta de uma obra mista, as implicações proporcionadas pelos diferentes tipos de difusão serão analisadas a seguir.

CAPÍTULO 4: AS ESFERAS DA INTERPRETAÇÃO E DA

Documentos relacionados