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CAPÍTULO I Das “peles em processo”: tecendo a escrita

1.5. As “peles em processo”

Segundo Jorge Larrosa Bondía (2002), a vida moderna nos coloca em contato com uma série de situações que nos impedem a experiência. A saber: excesso de informação, de opinião, de trabalho e falta de tempo. Para o autor, o sujeito informado está longe de viver a experiência de maneira aprofundada. “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou que toca.” (BONDÍA, 2002, p. 21). Enquanto pensador e provocador do ator/performer no lugar das “peles em processo”, busco propor em sala, uma experiência, que neste sentido se difere do experimento, como bem explicita Bondía (2002, p. 29):

[…] Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade […] Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.

Para preparar o terreno da terceira pele para as vivências das “peles em processo”, tem-se a pretensão de que os objetos e elementos escolhidos para a provocação possam ativar a fantasia dos atores/performers, para que estes deem asas às suas criações e sintam na (primeira) pele a materialização de suas potências enquanto criadores sensíveis, capazes de se surpreender com as novidades que venham a nascer durante as experiências.

Evoco aqui uma imagem referente ao tema “leveza”, exemplificada por Italo Calvino (1990), em seu livro Seis propostas para o próximo milênio: assim como Perseu se desloca num salto leve para olhar a imagem da Medusa através do reflexo de seu escudo e, desse modo, abatê-la, também o artista/pesquisador pode e deve ter a liberdade de deslocar-se nos espaços quantas vezes julgar necessário, a fim de capturar e observar seu objeto de estudo por ângulos variados para melhor apreendê-lo. Desse modo, ele evitará os engessamentos, fugindo ao peso desnecessário ou à petrificação das normas.

Vivemos numa época de aceleração constante, em que o pensamento e o entendimento das coisas caminham de modo fragmentado. Como realizar uma criação (escrita) que contenha relevância em meio a um universo tão veloz? É possível repensarmos o tempo nas pesquisas em artes cênicas, os andamentos das ações e seus desenrolares para a construção de algo mais dinâmico, sem perder a poesia artística? A lógica do processo requer do artista/pesquisador que ele mergulhe no universo do objeto e o observe com muita atenção, mas o tempo passa tão depressa que parece não sobrar tempo suficiente para o exercício de um olhar mais cuidadoso. “Apressa-te lentamente”, diz a máxima em latim. Atravessamentos por temas distintos, ritmos velozes, sequências, cortes, interrupções no cotidiano. A história não é linear e tudo segue acontecendo simultaneamente. Como criar sem reproduzir os modelos mecanizados já existentes e sem causar o empobrecimento da linguagem? Como encontrar a justa medida da escrita num tempo ligeiro que nos escapa constantemente?

“Há um verso de Dante no ‘Purgatório’ (XVII, 25) que diz: “Poi piovve dentro a l’alta fantasia” (Chove dentro da alta fantasia). [...] o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove. (CALVINO, 1990, p. 97)”. Nesta imagem de Dante evocada por Calvino parece materializar-se a ideia do uso das imagens como disparos para a criação artística, algo recorrente para os criadores na cena contemporânea.

Envoltos no dilúvio de imagens com que somos obrigados a conviver diariamente, esbarramos a todo instante nos dejetos que a mídia produz e faz-se necessário um árduo esforço para selecionar imageticamente os suportes relevantes que continuarão a alimentar nossa criatividade. A escrita tornada carne e corpo guia a imaginação e, decorrente da visibilidade, surge uma explosão de teatralidade no bojo da criação.

O ato de pesquisar estaria mesmo imbuído da questão do inacabamento, do detalhe que sempre escapa ou que não alcançamos em plenitude para que se dê a

continuidade, a busca? Seria todo o porvir, aquilo que é o cerne, o núcleo primordial da natureza das coisas?

Calvino, com sua proposta de “visibilidade”, provoca um contágio potente para a criação dos mais diversos universos imagéticos e uma gama infinda de “teatralidades”. Os estímulos de “imagens” provocadoras e narrativas que saltam das páginas levam-nos a crer em seres inexistentes, a habitar cidades invisíveis e a caminhar sobre as árvores para vislumbrar o mundo, vivenciando-o por outros ângulos de visão. E assim também se dão processualmente os desdobramentos visuais das “peles” e suas múltiplas camadas: um tecido em movimento desenha uma ideia, desperta musicalidade; uma textura ao ser tocada traz uma lembrança, aciona um afeto; cores que remetem a lugares, sentimentos, espaços, mudam a atmosfera da sala de ensaio. Outra vez crianças, sonhamos e recriamos tudo a nossa volta. Ficção e realidade se misturam. Atores, músicos, encenadores: autores de uma obra compartilhada “em processo”.

As ações artísticas renovadoras das últimas décadas têm provocado mudanças significativas na maneira como produzimos e consumimos arte. A cena contemporânea repleta de hibridismo, alimenta-se com os recursos da arte da performance, do cinema, da arquitetura, das artes plásticas, da dança, da música. E neste campo contaminado ou “território movediço” surge uma nova cena repleta de performatividade que, consequentemente, parece requerer outro perfil de ator criador, uma vez que a criação não precisa necessariamente partir de um texto dramático propriamente dito.

A perspectiva ligada à arte da performance é mais produtiva para o estudo da teatralidade, pois, seguindo seus pressupostos, pode-se dizer que diversos traços performativos permeiam a linguagem do teatro contemporâneo. É o que defende a teórica alemã Érika Fischer-Lichte, ao considerar a performance uma extensão natural do campo do teatro, e não um novo paradigma, como quer Schechner. A ensaísta trabalha com exemplos extraídos exclusivamente do que se pode considerar a prática artística do teatro e da performance contemporâneos. Seguindo a linha europeia de abordagem do tema, focaliza suas análises no trabalho de encenadores e performers como Frank Castorf, Einar Schleef, Romeu Castelucci, Marina Abramovich e Schlingensief, por exemplo. Por outro lado, concorda com ele quando afirma que a performance e o teatro contemporâneo são processos e não obras acabadas (FERNANDES, 2011, p. 17).

Para dialogar com esse turbilhão que é a cena contemporânea, parece ser necessário apostar na corporeidade do ator/performer. A utilização do corpo como canal de comunicação e expressão do indivíduo e do coletivo, ao interagir no jogo com os objetos

cênicos propostos, deve explorar seus significados e variações a fim de recriar os espaços existentes e renovar o olhar para as ações cotidianas. Espera-se que o atuante, ao ser alimentado e contaminado com esses estímulos, sinta-se livre para agir e criar em diversas circunstâncias.

[...] o uso consciente dos conceitos de teatralidade, teatralização e reteatralização do teatro deve-se a Meyerhold, que os entende e os pratica como estratégias de distanciamento do familiar pelo emprego de recursos do próprio teatro, de modo a chamar a atenção para seu caráter de jogo e artifício. Procedimentos de atuação como a biomecânica e técnicas de encenação como o construtivismo visavam exatamente a enfatizar a teatralidade que, para Meyerhold, supõe a inevitabilidade da forma, como observa Jacó Guinsburg. A nova poética teatral do artista inicia a transição do dramático e literário para o cênico e performativo. (FERNANDES, 2011, p. 15).

Ao observar as colocações acima, podemos entender o espaço do ensaio como esse lugar em que o performativo e as teatralidades se instauram. A intenção é criar através das peles um ambiente capaz de propiciar ao ator/performer um convite ao jogo performativo, que possa levá-lo para além dos elementos como signos.

É evidente que tanto para a hermenêutica quanto para a semiótica, tudo que é perceptível em cena pode ser definido e interpretado como signo. No entanto, no caso da performance, a materialidade das ações e a corporeidade dos atores dominam os atributos semióticos. O evento envolve performers e espectadores em atmosfera compartilhada e espaço comum que os enreda, contamina e contém, gerando uma experiência que ultrapassa o simbólico. O resultado é uma afetação física imediata que, para a ensaísta [Érika Fischer-Lichte], causa uma “infecção emocional” no espectador (FERNANDES, 2011, p. 17). No presente contexto, no lugar do espectador estaria o ator/performer, imerso em um espaço não comum ou cotidiano – espaço recriado e transformado pelas “peles em processo”. Essa “infecção emocional” seria o estado de entrega ao jogo experimental dos processos, em que se vivem as experiências.

Para o melhor entendimento, o que foi explicitado aqui no capítulo I será exemplificado nos capítulos subsequentes, que trazem vivências e experiências nos processos que serviram como campos de estudo para esta pesquisa.


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