• Nenhum resultado encontrado

As poéticas novecentistas: alcance ontológico

No documento Fernando Pessoa: poeta cético? (páginas 53-57)

Há praticamente uma unanimidade entre os críticos e estudiosos da história da literatura em identificar, como a característica mais marcante do século XX, o dire- cionamento auto-reflexivo, ou seja, o voltar-se da obra para as suas próprias razões intrínsecas, para o seu próprio modo de formar. De fato, não apenas na poesia, mas na arte de modo geral, inicia-se, desde fins do século XIX, um processo de auto-reflexão crescente, centrado na convicção do papel essencialmente fundante e estruturante da linguagem, que se proclama agora como o fundamento mesmo da comunicação humana, configurando-se, além disso, como um fato histórico, comprometido com todo um conjunto de relações que nele se refletem e que ele contribui para modificar. Já com o simbolismo, entendendo-se a linguagem da poesia como expressão dos sentimentos inalcançáveis mediante uma abordagem direta e formas definidas, desenvolvera-se uma poética da sugestão, baseada no uso do símbolo como meio de comunicação do indefi- nido e na utilização da própria composição espacial do texto poético como meio de revelar relações secretas entre as coisas (por isso, os jogos tipográficos diversos, espa- ços brancos em torno das palavras, etc.). A partir daí, as poéticas nascentes desinstru- mentalizam cada vez mais a palavra, tematizam-na como objeto privilegiado da comunicação e fim primeiro da leitura.

Vale observar que esse febril desdobrar-se da arte em atos sucessivos de ra- dical renovação e contestação das linguagens precedentes não fica restrito a aspectos técnico-programáticos, mas implica uma profunda reflexão sobre o significado mesmo da operação artística, o que lhe confere um sentido intrinsecamente revolucionário:

renovar as formas da arte implica renovar as relações humanas em seus mais diversos níveis.

Salientando o alcance ontológico dessas poéticas, observa Gianni Vattimo “... che si tratta di ‘poetiche’ sui generis, che sono piuttosto vere e proprie prese de posizione filosofiche sull’arte.”29 Observe-se que o filósofo se fundamenta aqui no conceito pareysoniano de modo de formar, elemento indispensável para o entendimento de que a ênfase metalinguística, longe de acarretar uma suposta debilitação ontológica da poesia, consolida o seu alcance ontológico. Em arte, o modo de formar, o estilo, é ao mesmo tempo um modo de ver as coisas e de se posicionar diante do mundo. Isto por- que, como bem explica Umberto Eco, retomando Pareyson, o discurso primeiro da arte, o único dotado “... de significado real, ela o faz dispondo suas formas de uma maneira determinada, e não pronunciando, através delas, um conjunto de juízos a respeito de determinado assunto”30. Mais adiante: “O verdadeiro conteúdo da obra torna-se o seu

modo de ver o mundo e de julgá-lo, traduzido em modo de formar, pois é nesse nível

que deverá ser conduzido o discurso sobre as relações entre a arte e o mundo.”31

Desse ponto de vista, a preocupação auto-expressiva e auto-reflexiva das poéticas vanguardistas nascentes — tantas vezes acusadas de serem geradoras de produ-

29 VATTIMO, 1985. p.36. T. da A.: “... que se trata de ‘poéticas’ sui generis, que são, mais frequente- mente, verdadeiras tomadas de posição filosófica sobre a arte.”

30 ECO, 1976. p. 255-6.

31

ECO, 1976. p.258. Cf. outros livros e ensaios, onde Eco desenvolve esses conceitos pareysonianos: A

estrutura ausente; introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectiva, 1971; Obra aberta; forma

e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1976; A definição da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1981; Le sporcizie della forma. Rivista di estetica, fasc. 40-1, p.17-23, 1993.

tos vazios e ornamentais, destinados a uma mera “fruição estética” — sinaliza uma tomada de consciência do alcance fundante, originário, da arte.

Contudo, por excessivo temor de recair no conteudismo (que, de certo mo- do, remete a Hegel e sua definição da arte como manifestação sensível do absoluto), uma certa estética, tendencialmente formalista, acaba por desconhecer o peso determi- nante do apelo cognoscitivo da arte e da poesia.

Mas, que implicações tem esse reconhecimento da essência fundante e inau- gurante da arte para a sua leitura e interpretação?

Antes de mais nada, trata-se de tentar uma leitura que não tome a obra ape- nas como reflexo, documento ou expressão de uma situação já constituída e à qual ela remeteria. Quer dizer, uma leitura que tenha presente que a arte é, antes de tudo, funda- ção de uma linguagem e portanto de um mundo, que não corresponde a regras prefixa- das, mas as institui; que não se insere simplesmente no mundo existente, mas o funda, quer dizer, é, em si mesma, “... una fondazione di realtà”32. Trata-se, enfim, de ver que a obra “... non è solo segno di un mondo già costituito, non è una voce del passato, ma anzitutto è l’apello di un mondo che nasce com lei” 33; “... un appello che non ricuiede solo una esplicitazione, ma una risposta.”34

32 VATTIMO, 1985. p.53. T. A.: “... uma fundação de realidade”.

33

VATTIMO, 1985. p.108. T. A..: “... não é somente signo de um mundo já constituído, não é uma voz do passado, mas antes de tudo é o apelo de um mundo que nasce com ela”.

34 VATTIMO, 1985. p.113. T. da A.: “... um apelo que não requer somente uma explicitação, mas uma resposta.”

O reconhecimento da ontologicidade da poesia, embora implícito já em “Es- tetica; teoria della formatività”, é mais explicitamente realçado em obras posteriores de Luigi Pareyson, como no ensaio “La obra de arte y su público”, publicado no final da década de oitenta.35 Nesse escrito — que discute a problemática da socialidade e histo- ricidade da arte e a permanência da obra ao longo da história — há uma ênfase conside- rável no constituir-se da obra de arte, primordialmente, como uma origem, fundação de uma nova realidade:

“El arte no le sobreviene a la realidad ya existente, sino que funda él una nu- eva realidad; ela arte no refleja un espírito ya formado, sino que nos enseña él una nueva forma de humanidad, el arte no expresa un mundo acabado, sino que descubre él un mundo nuevo; y ello porque el arte se instala en el próprio corazón de la realidad en movimiento y porque la obra de arte es en sí una re- alidad, un espíritu, un mundo: su propia realidad, su propio espírito, su propio mundo. Su poder no consiste en concluir una época; si así fuese, moriría com su época, arrastrado por ese mismo tiempo que quería detener y fijar en la expresión; su poder consiste más bien en abrir el tiempo y en comenzar una época, en el sentido de que ella es en sí un tiempo nuevo y una época nueva. El arte tiene el poder de ‘comenzar’ porque él es un comienzo: es ‘inicial’, aún mas, es — por decirlo de algún modo — ‘iniciático’, non solo porque es ‘original’, sino, más aún, porque es ‘originario’.”36

Resumindo, a arte, conquanto tenha um caráter social, histórico, não se re- duz a mera expressão ou reflexo de sua época, nem se deixa diluir num consumo destru- tivo, antes, é reveladora e fundadora: descobre um novo mundo, abre uma nova época. E se isto acontece, finaliza Pareyson, é porque ela “... se instala en el propio corazón de

35 Este ensaio não consta da edição original (1966), mas apenas da edição espanhola (1988) e da francesa (1992).

36

PAREYSON, 1988. p.57-8. T. da A.: "A arte não sobrevem à realidade já existente, mas funda uma nova realidade; a arte não reflete um espírito já formado, mas nos ensina uma nova forma de humanidade, a arte não expressa um mundo acabado, mas descobre um mundo novo; e isto porque a arte se instala no próprio coração da realidade em movimento e porque a obra de arte é, em si, uma realidade, um espírito, um mundo: sua própria realidade, seu próprio espírito, seu próprio mundo. Seu poder não consiste em concluir uma época; se assim fosse, morreria com sua época, arrastada por esse mesmo tempo que queria deter e fixar na expressão; seu poder consiste mais propriamente em abrir o tempo e em começar uma época, no sentido de que esta é, em si, um tempo novo e uma época nova. A arte tem o poder de ‘come- çar’ porque ela é um começo: é ‘inicial’, ainda mais, é — para dize-lo de algum modo — ‘iniciática’, não só porque é ‘original’, mas, mais ainda, porque é ‘originária’.”

la primera y originaria relación entre el hombre y el ser y entre la persona y la ver- dad.”37

Compartilhando esse ponto de vista e apresentando desenvolvimentos bas- tante instigantes, Gianni Vattimo põe em especial relevo o fato de que a poesia não é simplesmente uma coisa entre coisas, quer dizer, ela não simplesmente se insere entre as coisas existentes no mundo, mas

“... piuttosto lo modifica qualitativamente: non è una cosa fra le altre, ma una luce diversa gettata sulle cose. In questo senso essa ha un carattere di perso- nalità. Non si inserische come elemento nella nostra Weltanschauung, è essa una Weltanschauung con cui si deve entrare in dialogo [...] essa fonda un mondo il quale, lungi dall’essere un puro evento della coscienza del lettore, costituisce un ambito entro cui egli stesso vive e si muove.”38

No documento Fernando Pessoa: poeta cético? (páginas 53-57)

Documentos relacionados