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As Práticas Sociais De Negação Da Alteridade: A Assimilação E A Exclusão

3 EU E O MUNDO: UMA TROCA DE OLHARES

3.1 Mas Afinal, Quem É O Outro?

3.1.4 As Práticas Sociais De Negação Da Alteridade: A Assimilação E A Exclusão

Não só através da figura do bandido, mas uma série de passagens, nas entrevistas, traduzem o sentimento de inadequação e desencaixe da sociedade que tem a ver com estar posicionado em certos locais, típicos da figura do Outro. A experiência discriminação

relacionada à pobreza, ao pertencimento a espaços periféricos e à negritude, relatadas em várias passagens no capítulo anterior, reforça como essas posições são marcadas pela condição de alteridade. Por uma diferença que é sempre negativa:

Você vai chegar em espaços que não é espaços onde geralmente você vai encontrar pessoas negras, você vê uma reação estranha das pessoas, de olhar diferente, de meio que... que é isso, quem é esse, o que é que tá fazendo aqui? (João)

Hall (1997) coloca que a representação trabalha em dois níveis ao mesmo tempo: um nível consciente e aberto e outro mais profundo e suprimido, inconsciente. Talvez isso sirva para explicar o sentimento de surpresa que é frequente e determina quem são aqueles que pertencem a quais lugares, enquanto muito pouco é explicitamente dito, como nesse trecho acima. Parece coincidência, não soa intencional, mas sempre parece dizer respeito aos mesmos perfis. Segundo Hall (1997), seria inapropriado e racista expressar certos sentimentos abertamente, mas a fantasia está presente e é subscrita por muitos. É algo que não se diz, mas está sendo fantasiado, que se infere, mas não se pode mostrar.

Não é difícil imaginar que o fato de algumas dessas representações serem dominantes facilita que elas sejam apropriadas e legitimadas também no âmbito institucional, e assim, levem a práticas discriminatórias. Em uma relação de alteridade, Landowski (2012) destaca duas operações típicas: a assimilação e a exclusão.

A exclusão soa mais explícita: separar, segregar, criar muros, negar o Outro enquanto tal. É como se dissesse: “Volte para o lugar de onde você veio, pois nunca você será igual a nós” (LANDOWSKI, 2012: 42). A este caso, não faltam exemplos na história, que vão desde o apartheid sul-africano, quando se torna política de Estado, até estratégias menos explícitas como a criação de enclaves fortificados nas cidades brasileiras.

A assimilação parece acolhedora e aberta ao que vem de fora, ao não rejeitar o outro; entretanto, Landowski salienta que ela jamais aceita a sua diferença tal como é. Ela parte de uma tentativa de ajudar o “Outro” a livrar-se daquilo que faz com que ele não se integre, tornando-se similar ao “Mesmo”. Segundo esta lógica, para ser aceito, é como se a norma hegemônica dissesse: “torne-se igual ao que nós somos e você terá lugar entre nós”.

- Eu nunca parei de fazer o que eu faço, nunca parei de fazer o que eu gosto, nunca parei de vestir o que eu gosto, do jeito que eu me sinto confortável, do jeito que eu me sinto bem, sabe?

- E na hora de conseguir um emprego, tu acha que a aparência faz alguma diferença? - Ah vei, aí já é diferente... Apesar de eu ser mais... “lasque-se”.... No meu emprego eu já me visto de um jeito mais aceitável, camisa polo social, calça jeans, um tênis menos tendência assim, um tênis mais... sabe? (Chico)

Também não é difícil perceber que até para ser “aceito” no âmbito educacional e no mercado de trabalho, vários tipos de assimilações à norma hegemônica são cobrados. O entrevistado do trecho acima usa um estilo de roupas, em suas palavras, mais despojado e ligado à cultura rap, o que frequentemente faz com que o confundam com um ladrão. Embora afirme que é vestido desta forma que se sente bem e não vai deixar de fazê-lo, ao final, admite que para não ser discriminado no ambiente de trabalho, procura se vestir de uma forma que seria socialmente aceitável.

- E na hora de conseguir um emprego, por exemplo, tu acha que a aparência conta de alguma forma?

- Eu acho que a aparência é essencial ultimamente. Se você demonstrar ser mais desleixado, até, por exemplo, no meu caso, quando eu fui fazer uma entrevista de emprego, tive que cortar cabelo, botar uma camisa social, poderia, por exemplo, o corte de cabelo que eu tenho hoje eu não teria coragem de ir pra uma entrevista de emprego. Eu acho que influencia bastante. Infelizmente. (Diego)

A necessidade de cortar o cabelo – que no caso do entrevistado, é crespo – e usar roupa social refletem uma necessidade de camuflar marcas de raça e classe, nos termos do imaginário hegemônico, “parecer civilizado”. Se em outras situações, render-se a essa assimilação parece mais contornável, é na hora de procurar um emprego um de seus momentos mais emblemáticos, pois poucas pessoas têm condições de arriscar.

Hall (1997) dá um exemplo do processo de assimilação ao falar que mesmo após o período da escravidão, os negros podiam entrar no corpo principal da sociedade, mas somente ao custo de adaptar-se à imagem que os brancos tinham deles e de assimilar-se às normas de estilo e conduta brancas.

Para Landowski, a assimilação e a exclusão parecem opostas, mas têm uma afinidade tácita, ao partir do mesmo pressuposto: o da padronização do Mesmo e eliminação do Outro. Segundo ele, o grupo de referência parece não perceber que ele mesmo, a todo instante, por

seu modo de funcionamento, cria distâncias e desigualdades entre os grupos sociais – seja em termos sociais, econômicos, jurídicos, políticos, educativos ou culturais.

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Em linhas gerais, tentei delinear ao longo do capítulo as composições da alteridade que permitam pensar meu objeto de pesquisa. Como foi possível perceber, Outro não é simplesmente aquele que é diferente para qualquer pessoa, ou mesmo para uma maioria, em termos quantitativos. Se este fosse o caso, os negros não seriam considerados o “Outro”, o “exótico”, o “fora do padrão” e tampouco o alvo de desconfiança num país em que a maior parte da população é negra, que é o caso do Brasil. O Outro é uma questão de poder, e de quem tem condições de fazer com que certas definições, dentre aquelas em disputa, se tornem hegemônicas. Como é possível perceber na pluralidade interpretações apresentada entre cada entrevista, as representações do Outro, ainda assim, permitem negociações de sentido; elas não são recebidas passivamente. Mas os efeitos da existência de uma representação hegemônica que é externa a esses entrevistados, ainda assim, não deixam de ser sentidos.

Ao longo do argumento aqui traçado, tem sido possível perceber que existe uma operação simbólica que torna possível conectar os diversos signos de subalternidade aos de perigo. Nesse âmbito, o Outro passa a não se referir apenas a aquela identidade que foge do padrão normativo, mas alguém a quem se deve temer. Se certos tipos sociais são previamente criminalizados na operação de sujeição criminal, estes tipos são justamente aqueles que têm os signos da alteridade43. Assim, subalternidade, alteridade e sujeição criminal são esferas profundamente conectadas. Se as duas primeiras foram delineadas desde os capítulos anteriores até este, é sobre a sujeição criminal que se debruçará o próximo.

43

Cabe aqui um adendo: dentre os critérios para considerar a posição de alteridade, talvez o de gênero seja aquele em que o Outro nem sempre aparece como o sujeito potencialmente perigoso. Segundo a definição de Simone de Beauvoir, a mulher seria construída socialmente como o Outro, por ser definida tendo-se como referencial o Homem. Entretanto, ao transferirmos a questão da alteridade de gênero para o contexto da violência urbana, é a construção social da masculinidade que atrela o homem ao lugar de potencial agressor, e a mulher, à potencial vítima, ou aquela que tem menos possibilidade de ser vista como fisicamente

ameaçadora. Consideremos essas intersecções ao falar da relação entre alteridade e percepção de periculosidade.