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As primeiras reflexões sobre o jornalismo no século XVII

Capítulo II – Contexto Jornalístico até ao século XVII

4. As primeiras reflexões sobre o jornalismo no século XVII

O Mundo conheceu desde a Antiguidade Clássica grandes pensadores que emprestaram enormes benefícios à humanidade e contribuíram para o seu desenvolvimento através da sabedoria que souberam pôr em prática. O século que aqui examinamos com mais densidade, o XVII, conheceu famigeradas personalidades dos mais diversos quadrantes: o físico Isaac Newton, o filósofo Wilhelm Leibniz, o matemático René Descartes, o político e filósofo Francis Bacon, o escritor e jornalista Daniel Defoe ou o astrónomo e físico Galileu Galilei. O rol de nomes é extenso e evidencia bem a sapiência que grassava naquela altura.

O século XVII desencadeou um movimento intelectual de magnitude considerável; a Revolução Científica29 atingia o seu apogeu neste século, algo que viria a repercutir-se nas reflexões sobre um fenómeno em ascensão: o jornalismo. A arte de informar estava cada vez mais em voga e o período seiscentista testemunhou os primeiros trabalhos académicos que visavam um estudo mais aprofundado sobre a matéria jornalística.

Entre os pensadores que mais se notabilizaram, comecemos por dar destaque a Christophorus Besoldus, que nos anos 20 do século XVII tentou caracterizar, através do ponto de vista jurídico, o que o jornalismo e as notícias seriam. A obra Thesaurus Practicus, editada em 1629, consubstancia a ideia de jornalismo com o aparecimento do periódico de notícias. Em suma, terá sido este o primeiro grande contributo no sentido de ajudar a compreender a nova realidade que o jornalismo trouxe (Sousa, 2008 c, p. 156).

Um ano mais tarde, foi a vez de Ahasver Fritsch estudar o jornalismo, desta feita numa perspectiva crítica. Através do Discursus de Novellarum Quas Vocant Neue Zeitung Hodierno

Uso et Abusu, este autor alemão pôs em evidência os conteúdos veiculados pelos jornais da

altura, chegando mesmo a desaconselhar a sua leitura. Fritsch consideraria que muitos dos assuntos contidos nas publicações não respeitavam os princípios básicos da veracidade, pelo que censurou os eventuais “efeitos perversos” que emanavam de alguns artigos (Sousa, 2008 c, p. 156).

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A Revolução Científica, em geral, compreende mais de 100 anos entre os séculos XVI e XVII; o seu prólogo data de 1543, aquando de Sobre as revoluções das órbitas celestes, de Nicolau Copérnico; o epílogo, por seu turno, situa-se em 1687, quando Newton elaborou a obra Principia mathematica (Tambosi, 2004, p. 50).

Após a incursão alemã pelo desbravamento dos meandros do jornalismo, eis que os teóricos britânicos também decidem participar activamente nesta onda de reflexões. O primeiro a destacar-se é John Milton, com um manifesto contra as restrições acopladas à actividade jornalística. O inglês clama, na sua obra Areopagitica, pela liberdade de expressão desfigurada pela censura de um poder político absolutista (Traquina, 2002, p. 28).

Milton defende que “só a apresentação de todos os lados de uma questão poderá permitir a sua compreensão” e que “entre o verdadeiro e o falso, a verdade será triunfante” (Traquina, 2002, p. 28). O autor inglês inicia assim uma cruzada contra a censura, que seria mais tarde abolida em Inglaterra no ano 1695; a Areopagitica foi o primeiro passo dado nesse sentido. Depois, autores como Thomas Hobbes – no seu livro Leviathan – retomariam esta temática com afinco (Sousa, 2008 c, p. 156); já no século XVIII, seria Mirabeau a aproveitar o legado de Milton para elaborar a Primeira Constituição democrática (Fontcuberta et al., 1986, p. 38).

Um outro nome britânico que podemos juntar nesta equação é o de John Locke. O filósofo, apologista dos ideais liberais, também se debruçou sobre questões inerentes ao jornalismo. Decorria o ano de 1690 quando, no seu Ensaio sobre o Governo Civil, Locke especula sobre uma imprensa que opere em liberdade numa sociedade democrática e liberal (Sousa, 2008 c, p. 156). Uma outra obra do autor publicada na mesma altura, Two Treatises on Government, vai ainda mais longe, arrogando o direito e o dever dos cidadãos a revoltarem-se contra os tiranos que estão no poder, uma vez que os governos actuariam de forma austera devido à passividade e consentimento do povo (Traquina, 2002, p. 29). Locke reabria a discussão em torno da liberdade aplicada ao jornalismo e aos direitos da polução em aceder a matérias de cariz jornalístico de forma livre.

A cadência de trabalhos que visavam o estudo do jornalismo foi assaz frutuosa, no que concerne ao século XVII. Mas aquele que porventura terá sido o contributo mais valioso não foi ainda abordado; tal contributo deve ser atribuído a Tobias Peucer, autor da primeira tese doutoral sobre jornalismo: De Relationibus Novellis, o que traduzido para o português significa qualquer coisa como Os Relatos Jornalísticos. O documento produzido por Peucer em 1690, apresentado à Universidade de Leipzig, contém cerca de 29 parágrafos e versa sobre temáticas directamente relacionadas com o âmago dos jornais: as notícias e os efeitos produzidos nos leitores. Podemos mesmo afirmar que a tese de Peucer possui um cariz contemporâneo, já que algumas das questões que o alemão de Görlitz analisa ainda hoje são alvo de uma ampla discussão.

Apesar da importância que é atribuída ao opúsculo de Tobias Peucer, não se pode afirmar que daí tenha resultado uma “teoria do jornalismo” da qual o teórico seria o natural percursor (Tambosi, 2004, p.50). Ainda assim, não se lhe pode negar o epíteto de progenitor dos Estudos Jornalísticos, bem como das Ciências da Comunicação (Sousa, 2008 c, pp. 159-160).

Ao analisarmos o documento na sua plenitude30, deparamo-nos com uma panóplia de temáticas que ainda hoje levantam imensas dúvidas. No sexto parágrafo, por exemplo, Peucer (2004, p.16) fala desde logo na eventual origem do jornalismo, tocando ao de leve no pretenso pioneirismo de gregos e romanos.

A credibilidade dos conteúdos também está patente no manifesto (parágrafo VIII): “(…) no ano de 1609, apareceram os mercúrios franco-belgas, que, apesar de anunciar fábulas falsas junto com histórias verdadeiras, conseguiram a graça da curiosa novidade encontrar credibilidade aos olhos de muitos e maneira indiscriminada” (Peucer, 2004, p. 17).

Mais adiante, podemos verificar que a qualidade e quantidade das fontes de informação também preocupam o teórico: “É por isso preciso averiguar se quando um facto acontecido recentemente é anunciado imediatamente em locais diversos, é confirmado pelo testemunho de muitos” (Peucer, 2004, p. 20).

No capítulo XV, Peucer (2004, pp. 20-21) fornece algumas pistas sobre o conceito de valor-notícia; tendo em consideração as temáticas mais abundantes em pleno século XVII, o teórico delimita os três assuntos mais cativantes: i) os artigos que baseiam o seu conteúdo no sensacionalismo; ii) as notícias sobre as guerras que se estavam a travar e iii) as peças que abordam a religião e a literatura.

Convém dar também nota de realce a um dos temas mais polémicos dos escritos sobre jornalismo: a censura. Ora, Tobias Peucer (2004, p.22) era apologista da introdução de mecanismos censórios no seio do jornalismo; a força que a Igreja Católica detinha por certo norteou o pensamento do germânico: “É por isso que em algumas cidades se estabeleceu com uma prudente decisão que não seja permitido imprimir periódicos sem que tenham sido aprovados pela censura”.

30 Por razões de inteligibilidade, recorremos à tradução para a língua portuguesa de Paulo Rocha Dias, presente

Por último, merece destaque a alusão que o alemão faz aos info-excluídos (efeito de distanciamento social – knowledge gap) e aos intelectuais que têm a possibilidade de aceder e desfrutar dos conteúdos jornalísticos:

“É ainda maior o prazer encontrado na leitura dos periódicos pelos eruditos: aqueles que gozam do conhecimento da geografia, da genealogia e dos afazeres cívicos. Porque todo o relato é mais agradável se se conhece o local, as pessoas notáveis que foram autoras de um feito, ou as causas pelas quais se empenharam”. (Peucer, 2004, p. 28)

Em suma, foram estas contribuições mais relevantes que o século XVII germinou. A seriedade e empenho incutidos pelos teóricos fizeram com que o jornalismo fosse encarado como uma actividade determinante na sociedade e proporcionou o seu contínuo desenvolvimento nos séculos seguintes.