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As questões psíquicas da adesão ao medicamento

3. DOENÇA E ADOECIMENTO E AS QUESTÕES PSÍQUICAS QUE INTERFEREM NA

3.2. As questões psíquicas da adesão ao medicamento

Com o intuito de discutir apenas as questões psíquicas que envolvem a adesão ao tratamento medicamentoso, partiremos da concepção de que há acesso aos locais que oferecem atendimento à saúde. Assim como, o diagnóstico correto e o medicamento certo tenham sido alcançados por este sujeito.

Para abordar esta temática utilizaremos como ponto de partida a negação, um dos pontos mais evidentes, inclusive por sua fácil percepção através da observação direta. Não por acaso a negação apresenta-se como a porta de entrada na órbita da doença. Descobrir uma doença, como já abordamos anteriormente, implica em um encontro com o real, o real da morte, para a qual não possuímos uma representação psíquica.

Desta forma, a primeira atitude que se apresenta como possibilidade para intervir sobre a negação refere-se ao exercício de acolhimento deste que se descobriu com determinada enfermidade. Para que estes pacientes possam se sentir confiantes a ponto de conseguir externalizar as sensações mediante o impacto da doença, o indicado é uma intervenção que não exclua o paciente e o saber que só este possui, o saber sobre ele próprio. É no acolhimento que começa a construção da relação que posteriormente nos permitirá chegar às possíveis dificuldades de adesão que este paciente poderia apresentar.

Desta forma, é importante manter a atenção na forma como a doença é comunicada ao paciente. Corroborando a afirmação anterior, quando a doença é apresentada de forma a excluir o sujeito do setting de tratamento, seja pelo não esclarecimento ou pela forma utilizada, onde o saber está depositado inteiramente no outro, neste caso provavelmente na figura do médico, o sujeito pode carregar a sensação de estar amarrado em uma posição de nada saber. É isso que pode provocar o levantamento de uma defesa subjetiva ou manter alguma que já se encontre em ação, como a própria posição de negação, por um período prolongado.

Neste terreno da subjetividade, a relação entre a psicologia e a medicina é uma autoria radical de (Moreto 2011), (Clavreul 1983). Enquanto a primeira faz da subjetividade o seu foco, a segunda, a medicina cientifica, exclui a subjetividade de seu campo epidemiológico de uma forma sistemática, tendo mesmo como ideal uma suposta abordagem objetiva do adoecimento não enviesada por sentimentos e desejos. ... o problema desta abordagem objetiva da medicina é que o excluído na teoria retorna, com toda a força (MORETO apud SIMONETTI, 2011, p.21).

Caso o médico se posicione de tal maneira corre o risco de produzir no sujeito um movimento indesejado como a recusa ao tratamento ou um não comprometimento com este, em uma tentativa de se posicionar de forma a fazer valer sua autonomia, afirmando de certa forma que quem sabe daquela carne é quem a habita. Poderíamos dizer então que entre médico e paciente se faz necessário a existência de uma transferência que venha a proporcionar o tratamento, onde o medico serviria como suporte, criando a possibilidade do paciente falar sobre as angustias e medos em relação à doença e ao tratamento.

(...) Lacan inscreveu a transferência numa relação entre o eu do paciente e a posição do grande Outro. Sua problemática ainda não estava em ruptura total com as leituras psicologizantes do texto freudiano: o Outro continuava a ser concebido como sujeito e, seu analista podia criar obstáculos ao estabelecimento ou à consumação da transferência, era em virtude da ostentação laudatória de seu eu (RUDINESCO, 1944, p.769.)

Não se trata aqui do médico desempenhar o papel de um analista, mas sim, proporcionar uma relação onde ele e o paciente possam trocar informações em relação ao tratamento daquele sujeito em questão, que mesmo possuindo uma doença com sintomas comuns em relação à patologia sempre apresentará aspectos singulares por ser carregado de subjetividade que podem interferir no curso do tratamento. É permitindo esta relação interativa que o médico obterá a condição de identificar alguns aspectos de seu paciente como: seu estilo de vida, seus comportamentos peculiares e suas dificuldades em relação ao tratamento.

Para Simonetti (2011), o paciente estabelece cinco relações fundamentais (família, medico, enfermagem, instituição e o psicólogo) sendo estas chamadas de transferências porque o adoecimento, como fenômeno regressivo, leva a pessoa a

estabelecer vínculos segundo modelos já experimentados anteriormente em sua vida pessoal.

Outro fator que pode colocar- se como empecilho à adesão é a existência de uma identificação do paciente com a doença, isto porque em determinadas construções psíquicas a doença pode dar ao indivíduo uma sensação de pertencimento. A partir da doença o sujeito ganha um lugar marcado, como parte de um grupo específico. Um exemplo para este movimento subjetivo é o que ocorre com o diagnóstico de diabetes evidenciado na própria linguagem utilizada pelo paciente, onde encontram- se no discurso frases como: “eu tenho diabete”, referindo-se a doença como algo com o que ele tem que conviver. Ou a frase: “eu sou diabético” onde se apresenta uma inversão de valores, pois o diabetes ganha caráter constitutivo, como algo que faz parte dele, uma espécie de identidade.

Embora tal posicionamento (identificação) seja mais frequente diante de doenças crônicas, nada impede que venha a se manifestar em outras enfermidades dependendo da amarração fantasmática que o sujeito vai produzir.

Segundo esta mesma linha de raciocínio poderíamos, então, supor que estaria no fantasma à construção subjetiva que prende o sujeito a qualquer uma das posições na órbita da doença impedindo ou dificultando a adesão ao tratamento? E se criaria, de acordo com o exposto anteriormente, a partir da chegada a posição de enfrentamento? É no fantasma que se encontram os “mitos” tanto em relação ao uso do medicamento como quanto à concepção de determinada doença?

Terminologia utilizada por Lacan, refere-se à realidade psíquica, sendo assim designa a maneira como o sujeito representa as impressões que recebe tanto do meio externo como do meio interno. Desta forma é possível entender o fantasma como aquilo que organiza a vida psíquica e que aparece como um mediador entre o desejo inconsciente e a realidade (entendendo a realidade como o encaixe entre o imaginário e o simbólico).

Para que se adquira um corpo na dimensão do real, simbólico e imaginário, um corpo atravessado pela linguagem, ou seja, para nascer enquanto sujeito se faz necessário um perda, que Lacan chama de objeto a. Este termo “objeto a” é forjado por Lacan como forma encontrada para referir-se não a um objeto físico, mas um

objeto na ordem da realidade psíquica. O que se perde é um gozo e é este gozo perdido que lança o sujeito a uma busca, a uma investigação que cria o fantasma.

O fantasma na obra freudiana cumpre a função de cena cujo motor-eixo é o desejo reprimido. Na ideia de Lacan, o fantasma é sempre procura e impossibilidade do objeto a, sendo esta colocação formulada na sua álgebra $ ◊ a. Dentro dessa proposição, o fantasma será então uma palavra através da qual é possível retomar o sentido da historia individual (VOLNOVICH, 1947, p.40).

O fantasma acompanha todo o processo de estruturação do sujeito, teremos assim o fantasma da incorporação ligado à fase oral, fantasia de sedução: ligado à zona anal, a fantasia da cena primária ligada ao visual, da castração que envolve ser ou não ser castrado onde o objeto é o falo, e a novela familiar que estará ligado a invocação. Desta forma, o fantasma coloca-se para as histéricas de Freud como um ponto importante em sua teoria onde por trás do sintoma encontrava-se o fantasma que lançava-se de alguma forma na tentativa de se cumprir um gozo.

Fazendo uma analogia entre o que nos interessa expor sobre o fantasma enquanto estruturante, podemos pegar a fantasia da incorporação que se apresenta entre sujeito (bebê) e o objeto (seio materno) como mediador composto pelo desejo imaginário, carregada de expectativa pelo encontro com o gozo. Desta forma, a fantasia fala sobre a forma com que o sujeito se apresenta em relação ao objeto e aquilo que lhe falta, e em que lugar encontra-se o objeto dentro do contexto imaginário.

Segundo Nasio (2007), a fantasia é um pequeno romance de bolso que carregamos sempre conosco e que podemos abrir em qualquer lugar sem que ninguém veja nada dele. Acontece às vezes de essa fábula interior tornar-se onipresente e interferir em nosso modo de nos relacionar.

O fantasma enquanto um conceito desenvolvido pela psicanálise indica a forma como cada sujeito lida com a sua falta e como este se organiza singularmente em direção ao “objeto a”, ou seja, o objeto perdido. Isto nos possibilita linkar o fantasma à adesão ao tratamento medicamentoso. Se na doença, o objeto que ocupa, mesmo que temporariamente e imaginariamente, o lugar do “objeto a” é a

saúde perdida, encontraremos no fantasma a forma peculiar de se relacionar, de ir à busca do objeto.

Dizer que o fantasma encontra-se como base para as demais formas de resistência permite que venhamos a nos deter em um eixo principal de investigação. Não se trata de ignorar os estágios pelo qual o sujeito irá passar, mas sim de ter como possibilidade uma compreensão mais ampla em relação ao sujeito. É o que proporcionará uma intervenção que consiga dialogar com a realidade psíquica de cada sujeito a ponto de proporcionar condições para que se alcance um reposicionamento frente à adesão ao tratamento medicamentoso.

Quando se fala em observar algo que serve ao sujeito como uma base estruturante como é o caso do fantasma, estamos logicamente afirmando um campo de intervenção a ser ocupado pela psicologia. Cabe a este, a sensibilidade de observar o lugar que o sujeito se coloca em relação ao objeto, e caso necessário auxiliar dando lugar a subjetividade e a erupção da demanda para que este encontre uma forma de abordagem, no qual consiga trabalhar as questões pertinentes ao momento no qual se encontra, proporcionando que o fantasma se movimente.

É importante ressaltar que é no fantasma que está alicerçada a concepção construída pelo sujeito sobre o que é saúde e o que significa adoecer, sobre o medicamento, sobre a doença específica que carrega, além da forma como busca o objeto perdido. Daí a necessidade de movimentar a construção fantasmática, desacomodando as cenas do “pequeno romance de bolso” para que os novos elementos experenciados pelo autor (informações sobre os medicamentos e seu uso, a doença e seus prognósticos, podendo incluir novas concepções ao termo saúde) possam somar-se ao roteiro, possibilitando um desfecho diferente ao romance.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho de conclusão de curso, cuja busca norteadora foi analisar as questões psíquicas que interferem na adesão ao tratamento medicamentoso, se iniciou com o objetivo de encontrar um subsídio teórico para lidar com a questão proposta. A interrogação principal cercou a situação na qual alguns sujeitos, quando se vêem frente uma doença e cujo tratamento requer a exigência do uso do medicamento como frente principal na luta contra a doença, não conseguem seguir as prescrições médicas.

Como ponto de partida a esta investigação utilizamos a teoria psicanalítica que nos traz uma concepção sobre o corpo que envolve um aparato biológico e a construção subjetiva que permite ao sujeito apropriar-se da carne pura e transformá- la dentro do discurso em seu corpo. Ou seja, um corpo subjetivado que, ao encontrar com as condições do meio externo precisa metaforizar-se através da função materna e da função paterna para estruturar-se. Assim, construindo na relação com o outro, um organização corpórea que culminará em um registro real, simbólico e imagem que lhe garante o status de corpo enquanto corpo de alguém.

Do mesmo modo como o corpo se constitui dentro de uma rede discursiva, o medicamento também encontra-se atrelado aos discursos que a ele foram conferidos. Desta forma, o segundo momento do trabalho prestou-se a organização de algumas informações que julgamos essencial sobre o medicamento, sobre seu uso, como este aparece na sociedade atual e a concepção do medicamento enquanto um signo. Analisou-se que tendo a ele atrelado algo que ultrapassa seu significado, enquanto o que ele é e para que serve, alcançando múltiplas significações que podem tanto auxiliar como dificultar a adesão.

Desta forma, tanto o primeiro capítulo com sua compreensão acerca do corpo, como o segundo e as reflexões obtidas em relação ao medicamento e seu uso, serviram de base à construção do terceiro capítulo, no qual se abordou a doença e o adoecimento; enquanto um evento que faz com que o sujeito se depare com algo para o qual não encontra uma representação psíquica pré-estabelecida. Sendo esta falta de representação a responsável por lançar o sujeito em direção a

uma elaboração. Porém, para chegar a alguma construção acerca deste evento no qual a doença se transforma, será necessário passar por algumas posições, situado por Simonetti dentro de uma órbita na qual a doença se localiza de modo central e ao seu redor encontram-se quatro posições possíveis: negação, revolta, depressão e enfrentamento.

É a partir do momento no qual alcança a posição de enfrentamento que o sujeito encontra-se em condições de aderir ao tratamento, sendo capaz de seguir a prescrição médica e o uso correto do medicamento. Porém, para que tenha alcançado o enfrentamento o sujeito precisou lidar com as questões psíquicas que interferiam na adesão, situação que pode ser alcançada a partir de uma movimentação na construção fantasmática do sujeito.

Esta afirmação torna-se possível uma vez que, a pesquisa efetuada nos deixa em condições de situar o fantasma como estruturante da realidade psíquica, ou seja, encontra-se no fantasma a forma singular como cada sujeito move-se em direção ao seu objeto de desejo. Permitindo a construção da hipótese anteriormente apresentada, de que a mudança nas posições da órbita da doença, assim a adesão ao tratamento medicamentoso torna-se alcançável através da movimentação na construção fantasmática.

Assim, o psicólogo ao permitir que o sujeito fale sobre seus desejos, propondo-se a ouvir sua construção discursiva, encontra-se em posição privilegiada para visualizar a organização fantasmática que o sujeito dispõe para lidar com o adoecimento, e consequentemente sua condição de aderir ao tratamento, passando a adquirir condições de intervir auxiliando o paciente no trabalhar com as suas construções fantasmáticas.

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