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As rádios piratas como ‘escolas’ de jornalismo 8

Ana Isabel Reis

4. As rádios piratas como ‘escolas’ de jornalismo 8

Dos projetos embrionários da Lei da Rádio, um deles destacava as rádios locais como uma via na formação profissional e de renovação do setor (Projeto de Lei nº252/III(a) de 26 de

8 Parte deste subcapítulo foi publicado no ebook “Para uma história do jornalismo em Portugal — II” (2021) coordena-do por Carla Baptista, Jorge Pedro Sousa e Celiana Azevecoordena-do, que inclui parcialmente os trabalhos apresentacoordena-dos na II

novembro de 1983). Nas Jornadas de Comunicação Social, em 1986, foi destacado “o papel de utilidade pública e de centros de estágio e formação de jornalistas que as rádios locais podem desempenhar” (Diário Popular,10 de abril de 1986). Havia, pois, a ideia de que, numa época em que os cursos superiores ou de formação profissional estavam ainda a começar, as rádios podiam ser, simultaneamente, um agente de formação, de empreendedorismo e um poten-cial empregador.

Para uma geração de jornalistas, as piratas foram uma ‘escola’. Foi, literalmente, ao mi-crofone que descobriram ou consolidaram vocações. A experiência que tiveram acabou por pesar na definição do seu futuro profissional. A ‘escola’ pirata insere-se na convicção da época de que o jornalismo não se ensina e que se aprende no dia-a-dia da redação. Mas, ao mesmo tempo, as piratas abrem portas aos primeiros licenciados dos cursos de comunicação social, aos estudantes de jornalismo e absorvem os que saem dos cursos profissionais da área. Algu-mas emissoras estimulam os seus colaboradores a frequentar cursos profissionais ou tomam a iniciativa de fazer, de forma mais ou menos organizada, as suas próprias formações. Assisti-mos aqui, novamente, a um novo escalonamento. Em rádios mais amadoras e rudimentares não havia este tipo de preocupações, nos projetos mais profissionais, e que tinham por obje-tivo a legalização, organizavam-se formações que iam desde as sessões informais com os jor-nalistas seniores à realização de ações mais estruturadas ou mesmo à organização de cursos.

Exemplo deste último, é o curso promovido pela TSF para animadores, técnicos e jornalistas com vista a uma redação formada de raiz com o denominado ‘espírito TSF’.

As piratas foram a rampa de acesso ao jornalismo, embora alguns já tivessem experiên-cias nos jornais locais e regionais, e foram a ‘escola’ de uma geração que nasceu do movimen-to pirata.

A questão que aqui se pode colocar é o que surgiu primeiro: se o ensino que gera uma nova prática ou a prática que exige outro tipo de ensino. Acreditamos que ambos se interli-gam e estimulam mutuamente, dando lugar à transformação que se assistiu nos anos 80. Mas o que mudou, nas práticas e no ensino do radiojornalismo, não surge apenas nesta década, é o culminar de um percurso.

4.1. O Ensino do Jornalismo Radiofónico nos anos 80

A história do ensino do jornalismo em Portugal espelha o afastamento entre a universi-dade e o mercado de trabalho, entre os académicos e os jornalistas. Um fosso que atravessou gerações e que se centra no tipo de formação que cada parte entende como a necessária para o exercício da profissão de jornalista.

Em Portugal não existiu uma tradição de ‘escolas de jornalismo’ que conjugasse a forma-ção humanística e as aprendizagens profissionalizantes (Mesquita e Ponte, 1997). Prevaleceu

a ideia de que o jornalismo não se ensina e que se aprende no dia-a-dia da redação. Só nos anos 60 se começou a assistir a uma transformação. A discussão do ensino do jornalismo li-gado à profissionalização da classe intensificou-se nesta década (Sobreira, 2003) e viria a dar frutos na década seguinte.

Durante muito tempo a formação esteve confinada às próprias emissoras. É relevante o papel da Rádio Universidade9, em Lisboa, que começou a sua atividade em 1950 em cola-boração com a Emissora Nacional e que se assumiu, ainda que informalmente, como uma escola de rádio:

O curso era dividido em três partes: no primeiro ano os alunos eram estagiários, não tinham acesso à cabine de locução e assistiam às aulas dos profissionais que já faziam rádio. No segundo ano, pas-savam a locutores provisórios e, uma vez por semana, tinham acesso ao microfone para ler textos, acompanhados de um “profissional” que lhes dava algumas aulas de dicção e sobre o funciona-mento da mesa. No final do segundo ano, faziam provas de locução e passavam a locutores efecti-vos. Depois tinham direito a um programa semanal e ficavam à espera que as rádios profissionais os chamassem para trabalhar (Cordeiro, 2004, p.7).

A Rádio Universidade foi uma espécie de academia e, simultaneamente, uma montra para os jovens onde as estações iam buscar colaboradores (Santos, 2017), sendo que muitos transitaram para as emissoras nacionais e, mais tarde, fundaram rádios nos anos 80. Os estu-dantes universitários ou liceais do 6º e 7º anos podiam candidatar-se a colaborador da esta-ção (Santos, 2017) e eram sujeitos a provas, conforme recorda Adelino Gomes:

“Deram-me uns papéis com textos em prosa e em verso, muito difíceis de ler, coisas escritas pelo Aquilino Ribeiro — com regionalismos — tudo o que fosse complicado e exigisse que mostrássemos que tínhamos articulação, um bom timbre e a capacidade de ler palavras difíceis. Penso que havia uma entrevista, mas a terceira prova (aquela que me agradou mais) foi uma soi-disant reportagem.

Isto é, davam-nos um tema e diziam: “Imagine que está no local e fale”. (…). Davam-nos dois ou três minutos para pensar, falávamos e depois mandavam-nos calar” (REC, 2 de janeiro de 2019).

Depois de admitidos não havia uma formação formal, como revela Joaquim Furtado, mas um processo de aprendizagem baseado na experiência dos mais velhos e na experimentação:

“Os que chegavam de novo tinham uma espécie de estágio com os que já estavam, era uma pas-sagem de testemunho, mas era, sobretudo, uma transmissão de informações básicas sobre o que

é chegar ao microfone, pôr um disco no prato e pô-lo a rodar, apresentá-lo, montar programas, editar…e as pessoas saiam também diferentes” (REC, 6 de janeiro de 2019).

Diferentes porque, como explica Adelino Gomes, tudo se discutia: “era uma discus-são continuada entre nós, os programas faziam-se, mas não se limitavam ir para o ar, era discutido em grupo, passávamos horas a experimentar. Mais importante do que os progra-mas, eram as experiências que fazíamos procurando outra linguagem” (REC, 6 de janeiro de 2019). Para Joaquim Furtado foi uma “geração que transformou formalmente a rádio”

(REC, 6 de janeiro de 2019).

A Rádio Universidade foi uma escola para muitos profissionais que, apesar da censura, vislumbraram uma nova forma de fazer rádio e jornalismo, e que criou raízes para o que viria acontecer nas décadas seguintes ao nível da formação e da montagem dos novos projetos radiofónicos, antes e pós a legalização das rádios locais.

Até ao final dos anos 70 foram elaborados esboços de cursos superiores que não saíram do papel. Na ausência de um ensino académico ou profissionalizante, as emissoras nacionais formaram internamente jornalistas, técnicos, animadores e locutores saídos dos concursos de seleção. A Emissora Nacional organizava cursos enquanto no RCP se aprendia, sobretudo, com a primeira geração de radialistas:

“a formação era aprender fazendo com os mais velhos, o Luís Filipe Costa era o mais velho no noticiário, não era nada paternalista, ensinava pela prática, corrigindo os nossos erros e seguindo o exemplo dele, estava sempre com ideias novas, criou um noticiário que era um noticiário com uma linguagem telegráfica muito mais avançada do que o comum dos noticiários do RCP. E os no-ticiários do RCP [mudaram] a linguagem da rádio. Há coisas que ouço hoje, 40 ou 50 anos depois, e ‘Olha, isto é, do tempo do Luís Filipe Costa’! É verídico, toda a ente da rádio aprendeu com o Luís Filipe Costa mesmo os que não sabem quem é. [Os noticiários] eram coisas longuíssimas, [depois]

aquilo eram três minutos e naqueles três minutos tínhamos de dizer tudo, era uma grande econo-mia de linguagem e foi isso que fez aquela escola, foi a econoecono-mia do tempo e aqueles conceitos que são ensinados nas escolas de jornalismo: a frase concisa, palavras objetivas, claras, etc, e dizer o máximo com o mínimo tempo (…) eliminar palavras desnecessárias, como excelentíssimo senhor Ministro ou sua Excelência o Presidente…era objetivo não estávamos cá com flores, vénias ou gra-vatas. O Luís Filipe Costa costumava falar em ‘desengravatar as palavras’, é comunicação” (João Paulo Guerra, entrevista pessoal, janeiro, 2021)

Na emissora estatal, a formação interna foi ministrada por profissionais da própria esta-ção ou convidados estrangeiros, como por exemplo do Centro de Formaesta-ção de Jornalistas de Paris (Bonixe, 2016) que inspirou os futuros cursos especializados na área da rádio. Um dos cursos para a formação de formadores foi dado em 1981 por Édouard Guibert e que Adelino

Gomes classifica como “muito importante” (entrevista pessoal, outubro, 2019) e uma inspi-ração. António Jorge Branco fez parte dessa equipa e organizou vários cursos de formação, quer nos centros de formação do Porto e de Lisboa quer em algumas rádios locais, antes e depois da legalização.

Os cursos superiores estavam ainda em esboço e só seriam concretizados a partir do final da década de 70. Nessa altura, em 1979, foi integrada nos cursos complementares do Ensino Secundário, uma disciplina de Iniciação ao Jornalismo (Canavilhas, 2009, p.59), que se manteve nos currículos de Humanísticas até ao final dos anos 80. O programa abordou questões relativas ao contexto mediático e noções básicas da escrita na imprensa, rádio, tele-visão e cinema. Sobre a Rádio, o manual não circunscreve o som à rádio, tem uma abordagem mais multidisciplinar que denomina “Território do áudio”: história da rádio e pioneiros, au-diosfera, disco, computador na música, ‘fabrico’ de mensagens sonoras, rotinas de produção noticiosa, regras de escrita da notícia em rádio, o panorama radiofónico português e as au-diências, lei da rádio e ainda “Rádio e TV e as forças políticas e económicas” (Lopes, 1988).

No prefácio de Iniciação ao Jornalismo AudioVisual, assume-se que não se trata de um manual didático. O objetivo é dar pistas que permitam um entendimento do jornalismo radiofónico e televisivo (Lopes, 1988). Curiosamente, este manual aborda já o fenómeno das rádios pira-tas. São publicados dois gráficos com a distribuição das “rádios locais por regiões do país no primeiro trimestre de 1988” e a percentagem de ouvintes por grupos etários das estações de Rádio Local (incluindo-se as não legalizadas)”. O enquadramento histórico da rádio termina, precisamente, em 1988 com o relato dos diversos encontros de radialistas e políticos com vista à legalização das piratas que o autor chama de ‘rádios paralelas”: “conforme me parece mais correto chamar-lhes” (Lopes, 1988, p.207)10. Mais tarde, em 1989, no Ensino Profissio-nal (equivalente aos 10º, 11º e 12º anos) é criado o curso Técnico de Comunicação/Técnicas de Audiovisuais/ Técnicas Jornalísticas (Canavilhas, 2009). Ou seja, a partir do 9º ano os estudantes tinham noções básicas sobre jornalismo e sobre os diferentes meios de comuni-cação, nomeadamente, a rádio e as piratas o que terá contribuído, certamente, para o número crescente de jovens que ‘bateram à porta’ das emissoras locais, que também aí viram uma oportunidade para recrutarem voluntários para o quadro de colaboradores.

A disciplina de Iniciação ao Jornalismo estava integrada na vertente de Humanísti-cas, área vocacional dos candidatos ao primeiro curso universitário da área. Depois de anos a esboçar projetos, e do fracasso do Curso de Reciclagem em Comunicação Social na Nova (Mendes, 2011, pp.56-63), surge, em 1979, o primeiro curso de Comunicação Social. O curso na Universidade Nova de Lisboa foi o primeiro, oficialmente, reconhecido. Aliar a teoria à

10 O conceito de rádios paralelas “é utilizado para justificar as rádios que existem em simultâneo com as rádios oficiais,

prática foi o grande desafio, mas a componente prática acabou por não concretizar as expec-tativas dos profissionais, já que o curso foi criado visando a investigação científica e a refle-xão na área da comunicação (Mendes, 2011). As Unidades Curriculares eram, predominante-mente, teóricas, apenas 9% eram dedicadas ao ensino da técnica jornalística (Mendes, 2011).

Dois pontos comuns aos cursos surgidos nesta época é o facto de nem sempre integrarem, no seu corpo docente, profissionais da área e de não possuírem recursos/equipamentos para as disciplinas práticas, como por exemplo, estúdios.

O curso da Nova apontava para uma competência generalista em comunicação, que permitiria enquadrar um leque diversificado de saídas profissionalizantes (Mesquita e Ponte, 1996-97), mas acabou por espelhar o afastamento entre a academia e as redações; (Mesquita e Ponte, 1996-97; Pinto, 2004). Os jornalistas não se reviam neste curso (Mendes, 2011) e as-piravam a uma formação de cariz mais prático que apostava não apenas na formação de base, mas também na formação contínua. Por iniciativa de jornalistas, e de organismos que os re-presentavam, foram criados dois centros de formação: o CFJ e o CENJOR. Inspirados no mo-delo francês, ambos tinham uma vertente fortemente prática e visavam não só a formação de novos profissionais como a atualização ou aperfeiçoamento dos que já estavam a trabalhar nos órgãos de comunicação social, nomeadamente nas rádios, sobretudo nas piratas/locais.

Um dos formadores foi António Jorge Branco, um nome de referência da área, e, como ante-riormente se referiu, ministrou vários cursos de curta duração, um deles, em 1985, no CER-COS-Centro Experimental de Rádio e Comunicação Social/Secção Sonora da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa. Esta pequena rádio amadora emitia umas ho-ras para um pequeno espaço, era feita por estudantes, mas organizou um curso de formação e alguns dos seus colaboradores voluntários acabaram por integrar, mais tarde, outros projetos piratas ou já legais. O caso CERCOS é um caso paradigmático no panorama das piratas e, por isso, o tomamos como exemplo. Três alunos da FLL, entre eles José Manuel Mestre, tiveram a ideia e propuseram à Associação de Estudantes que comprou o equipamento. A intenção era criar uma rádio com informação direcionada para os estudantes e a organização do curso de formação foi feita com esse objetivo.

A CERCOS era uma rádio “de brincar”, como lhe chamou José Manuel Mestre, muito rudimentar, que emitia para uma sala e para os corredores no horário diurno das aulas. Ape-sar disso, tinha a ambição de se tornar uma rádio universitária com informação académica e, por essa razão, a direção decidiu organizar um curso para formar a equipa constituída por alunos. O curso, denominado “Sensibilização à Linguagem Radiofónica e ao Jornalismo de Rádio”, durou 6 semanas e tinha duas fases distintas, uma mais teórica e outra prática. Este curso é exemplo de outros realizados por António Jorge Branco e que já destacava um ponto basilar na formação da época: “Conferência de Redação: prévias e críticas”. A análise critica do planeamento e do trabalho efetuado em antena vinha da Rádio Universidade, perpassou pelos cursos de Guibert e foi um dos pilares dos cursos da TSF.

Do programa constavam ainda pontos tão específicos como ética e deontologia, como se faz uma grelha de informação tendo em conta “a realidade social, hábitos de escuta e de vida”, técnicas de entrevista e de titulação, e “técnicas de arranjo e sistematização das com-ponentes sonoras de um Jornal”. O curso terminava com uma parte prática com o “estabele-cimento de projectos de Rádio-Simulador”.

A CERCOS é o espelho do voluntarismo que caracterizava estes projetos e, simultanea-mente, da esperança que neles depositava a geração que dava os primeiros passos no meio.

A ideia inicial, conta José Manuel Mestre, era a de “ajudar a criar estrutura de aprendizagem de rádio na universidade (…) a coisa foi evoluindo, mas aquilo era brincar à rádio e o Antó-nio Jorge Branco era um primeiro passo para criar algo mais profundo para criar uma rádio universitária de referência” (entrevista pessoal, fevereiro, 2021). No entanto, depois do cur-so não houve propostas na área da informação e, com a mudança de direção da ascur-sociação de estudantes, a CERCOS acabou por não desenvolver essa vertente e alguns dos elementos fundadores acabaram por sair. Uns seguiram outras opções profissionais, outros voltaram a encontrar-se no curso da TSF. Também este desfecho foi comum a muitos dos projetos volun-tariosos da época.

O CFJ — Centro de Formação de Jornalistas no Porto foi criado em 1983 e foi o primeiro a lançar um curso de formação de animadores de rádio, cujos diplomas foram entregues a 7 de março de 1988 durante um debate público sobre a situação das futuras rádios locais que reuniu deputados e radialistas das piratas (Cadernos de Jornalismo, 1988, p.5). Em julho do mesmo ano organizou um curso de Operadores de Rádio. Dados do CFJ indicam que entre julho e dezembro efetuou-se um curso de 700 horas sobre “Radiojornalismo” e, em novem-bro, o curso de “Jornalismo de Rádio”. Ou seja, o CFJ direcionou a sua formação no sentido de apoiar as rádios na reta final da ‘era piratas’ e com vista à formação de profissionais para as locais que seriam legalizadas em 89. Foi do CFJ que nasceu, em 1985, a Escola Superior de Jornalismo cujo bacharelato foi oficialmente reconhecido no ano seguinte, quando saíram os primeiros bacharéis. Com o crescimento da ESJ, centrada na formação académica dos es-tudantes vindos do 12º ano, o CFJ redefine o seu papel e aposta na formação dos jornalistas profissionais (Pinto e Sousa, 2003).

Em 1986 é criado em Lisboa o CENJOR — Centro Protocolar de Formação Profissio-nal para JorProfissio-nalistas. Só mais tarde faria cursos por áreas de especialização direcionados, por exemplo, para a rádio.

Quer o CFJ quer o CENJOR beneficiaram das verbas do Fundo Social Europeu a que Portugal passou a ter acesso depois da adesão à CEE — Comunidade Económica Europeia.

A estes fundos candidatou-se também a TSF que viu aqui uma oportunidade de formar uma equipa e de se afirmar como um projeto profissional com vista à legalização. Adelino Gomes recorda que já havia cursos, “mas este foi o primeiro grande curso para formar homens e mu-lheres da rádio” (RTP, Actual Reportagem,1995). A TSF organizou um primeiro curso em maio

de 1987 com a duração de seis meses e um estágio final de três meses na redação. Adelino Gomes começa por dizer que “a TSF era o que não conseguíamos fazer na RDP”. E tinha um objetivo claro:

“formar a primeira geração a seguir a nós (…) a rádio que se estava a fazer era a pior rádio e que-ríamos uma nova geração, feita à nossa imagem. Tínhamos condições para fazer o curso seis me-ses (…) com conforto económico porque havia dinheiro para comprar equipamentos, para fazer formação técnica e teórica, havia dinheiro para contratar pessoas, para formadores, para pagar convidados”. (entrevista pessoal, outubro, 2019)

O responsável do curso destaca as três grandes qualidades para se ser jornalista e que foram os pilares do curso: ser competente, ético e independente. “Competentes tecnica-mente e do ponto de vista criativo; e tínhamos outra ideia, a do homem e da mulher da rádio que iam ao microfone e podiam fazer um programa, um noticiário, uma reportagem, uma entrevista, um programa da manhã, tudo subordinado à informação”, ou seja, “o tipo com-pleto com essas valências todas” e “técnicos com sensibilidade jornalística”. Pedro Brinca, formando da área técnica, diz que a mensagem transmitida era de que a TSF “não queria ter jornalistas, animadores e técnicos, mas profissionais de rádio, qualquer pessoa podia fazer qualquer coisa”, embora os técnicos não tivessem tido formação jornalística e houvesse uma efetiva separação de funções (entrevista pessoal, novembro, 2019). Essa noção de saber fazer um pouco de tudo estava subjacente ao curso e ao conceito do jornalista/jornalismo que os fundadores da TSF queriam desenvolver como recorda uma das formandas, Elisabete Cara-melo: “Os animadores tinham formação diferente da nossa, mas também tínhamos a noção do que era animar, colocar discos, fazer programas para perceber a estrutura da rádio (…) era no fundo perceber como é (…) era bastante abrangente” (entrevista pessoal, outubro, 2019).

Ao curso candidataram-se 600 pessoas que enviaram um currículo e uma carta de moti-vação. Procuravam-se novos valores com um perfil específico: “a primeira seleção era a carta, não só a forma como a escrevíamos, mas era manuscrita e uma psicóloga e grafologista anali-sou as cartas e viu quem é que verdadeiramente tinha a ver com a rádio” explica Elisabete Ca-ramelo (entrevista pessoal, outubro, 2019). A primeira seleção foi feita por “dois catedráticos de Psicologia” porque o “jornalismo tem de ser exercido por pessoas que tenham, do ponto de vista físico e mental, capacidade para estar em situações de grande stress” — as palavras são de Emídio Rangel numa entrevista publicada no livro Jornalismo em Liberdade: “rapazes ou raparigas que podiam estar aqui ou na Guerra do Golfo” com “força mental, força física e ter capacidades e qualidades. Os testes de psicologia davam-nos isso” (Figueira, 2009, p.112).

Foram também feitos testes de cultura geral, língua portuguesa, testes psicotécnicos e pro-vas de voz. Foram escolhidos 60 candidatos para um curso com duas formações distintas, uma para animadores e jornalistas, e outra mais técnica para operadores, sonorizadores e

radiotécnicos. O curso teve uma vertente teórica em que constavam disciplinas como a Lín-gua Portuguesa, Relações Internacionais, Instituições Europeias, Deontologia, Economia, História do Jornalismo, e Teorias da Comunicação. A vertente prática destacava a notícia e a reportagem, o direto, voz e dicção. Neste último ponto, Adelino Gomes faz uma ressalva,

“tivemos a preocupação de dar aulas de voz e dição, queríamos melhores vozes, educadas, não era o culto da voz, era um contributo para melhorar qualidade da informação, a voz como instrumento de comunicação” (entrevista pessoal, setembro, 2019). A forma de comunicar as notícias estava, intimamente, ligada à linguagem, uma das espinhas dorsais do curso. Para Francisco Sena Santos, um dos formadores e fundador da TSF, “mudar a forma como se con-tava a história, deixar de ser o diário oficial e falar como as pessoas falam foi uma batalha di-fícil porque muitos dos formandos vinham de cursos superiores das letras, era complicado…

vamos simplificar isso” (entrevista pessoal, junho, 2019).

Os formadores vinham de áreas distintas, desde “gente com provas dadas na rádio portuguesa” a “profissionais dos diferentes ramos da Comunicação Social” (Expresso, 29 de agosto de 1987) e especialistas do meio académico.

No final, cada formando fez um programa de rádio que foi avaliado por um júri de profis-sionais e elementos da sociedade civil. Pedro Brinca lembra-se “de haver reportagens muito elaboradas e a cumprir preceitos, e houve quem fizesse ensaios usando a mais pura criativi-dade. A atitude dos formadores não foi uma atitude crítica, foi mais: olha aqui está um cami-nho estético ou foi explorado um novo camicami-nho. Saímos do curso, por um lado conhecendo as regras e, por outro, sentindo que podíamos fazer tudo o que quiséssemos, foi essa mensagem de liberdade criativa” (entrevista pessoal, novembro, 2019).

Transversal à teoria e à prática era o debate de ideias, uma metodologia praticada na Rádio Universidade e nos cursos de Guibert na rádio estatal. “Era obrigatório”, como des-creve Francisco Sena Santos: “o funcionamento da redação assentava nisso, perdeu-se anos depois, mas no arranque (do turno) era obrigatória a conferência de redação, a conferência crítica no final com a escuta dos jornais da hora certa (…) com discussões muito vivas” (en-trevista pessoal, junho, 2019). Essa permanente discussão é um dos fatores mais destacados pelos formandos. José Manuel Mestre tinha frequentado o curso da CERCOS com António Jorge Branco que já incluía este debate de ideias, mas foi na TSF que ganhou outra dimensão:

“era tudo descascado, aprendemos a trabalhar em equipa, discutindo tudo e criando a partir do trabalho de equipa e da reunião”. E acrescenta uma outra aprendizagem e que ainda hoje aplica: “Aprendemos como fazer e, uma coisa que normalmente não se ensina — como não fazer — e isso ficou para sempre” (entrevista pessoal, fevereiro, 2021).

Elisabete Caramelo foi da Rádio Comercial para a TSF, reconhece a diferença nas me-todologias de trabalho e na forma como o jornalismo era encarado: “havia uma coisa muito diferente da rádio onde eu tinha estado, havia um trabalho de equipa, a discussão, o pôr em causa, pormos em causa uns aos outros. A TSF era muito isso porque isso vinha do curso,

estávamos sempre a pôr em causa (…) não era um julgamento era uma discussão aberta, isso era muito enriquecedor” (entrevista pessoal, outubro, 2019). Pedro Brinca descreve os alu-nos como uma “amálgama heterogénea de formandos que conseguiram criar um grande en-trosamento entre si e a ter ideias muito loucas, e os formadores deram liberdade a que estas ideias fossem fluindo (…) já se começou a inovar durante o curso e essa inovação não me pa-rece que tenha vindo dos formadores porque eles vinham do modelo clássico. Acho é que os formadores tiveram a capacidade de dar liberdade aos jovens para encontrar o seu caminho”

(entrevista pessoal, novembro, 2019). Deste curso saíram os jornalistas, animadores e téc-nicos que formaram a equipa inicial da TSF juntamente com os profissionais seniores. Uma iniciativa inédita, escrevia o jornal Expresso, que invocando a Rádio Universidade questiona-va: “há quanto tempo o meio radiofónico não assiste a uma renovação dos seus quadros”? e perspetivava um futuro de pleno emprego para os recém-formados no pós-legalização das rádios locais (Expresso, 29 de agosto de 1987).

Os projetos profissionais que visavam ter uma frequência legal deram relevância a uma formação mais sustentada da sua equipa. Na ausência de um ensino profissional estruturado, e em face de um ensino académico mais teórico, as rádios recorriam a quem já ministrava cursos, mesmo que fossem da concorrência. Foi o caso da Rádio Geste que quando se apre-sentou dizia “preocupar-se, desde já com a formação de novos quadros que em breve terão acesso à antena”11 e que iria recrutar os novos radialistas nos cursos de formação da RTP e da TSF. Alguns destes formandos estavam já em rádios piratas ou queriam integrar projetos mais profissionais. A Rádio Geste aproveitou essa oportunidade “para ir ‘pescar’ os que esta-vam disponíveis”, afirma Henrique Garcia que liderou o projeto, “recrutámos de acordo com um perfil que tínhamos para o modelo de rádio que pretendíamos pôr em prática e, no caso dos que ainda não tinham grande ou nenhuma experiência profissional, sempre com uma prova de seleção. Houve caso de candidaturas espontâneas tanto para a Informação, como para a Programação. Pediam-se currículos, avaliavam-se e faziam-se provas” (depoimento escrito, outubro, 2020).

Outras rádios piratas revelaram a preocupação em formar as suas equipas. Numa notí-cia publicada no jornal Repórter de Setúbal em julho de 1985, o responsável pela Rádio Azul de Setúbal dizia isso mesmo: “Quanto aos meios humanos consideramos que se trata de um autêntico investimento de capital humano, em termos de esta rádio se tornar uma escola de formação de futuros profissionais”.

Numa reportagem publicada pelo Se7e em 1986, citavam-se outros casos: