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Fotos 19 e 20: Culinária, fartura de alimentos e hospitalidade da comunidade

2. As redes de ONGs

Investigar o universo das ONGs é, igualmente, tomá-las dentro de um quadro maior de interações sociais que convencionamos recentemente denominar de “redes”. De fato, no tocante às ONGs e sua relação socioambiental, subsiste um emaranhado de relações, interesses, formas e ações que precisam ser descortinadas. O fato mesmo de associarmos numa mesma investigação o direito e as ONGs bem como referi-los dentro do contexto socioambiental das comunidades, já denota a premência de uma visão de complexidade e interação destes fenômenos, dos atores sociais, das disciplinas acadêmicas envolvidas e dos saberes extracientíficos. O que pretendemos em nossa análise é descortinar alguns pontos referenciais - ou dito de outro modo, algumas certezas provisórias, e permitir brechas para que o caminho continue a ser percorrido. Uma nova consciência emerge, é certo. Mas ainda há muito por fazer e operar... As redes de ONGs e rede de redes são caminhos de solidariedade, de alteridade, de respeito à diversidade desde que acompanhadas de uma constante reflexão crítica, de criatividade e de busca incessante de maneiras sempre renovadas de enfrentamento dos problemas sociais. Mas podem também servir a causas menos nobres, ao controle e subjugação das iniciativas populares, à cooptação das forças sociais em benefício das formas hegemônicas de poder econômico e político.

Nos sistemas vivos, é forçoso convir com Morin que subsiste uma identidade dupla: de autonomia (identidade peculiar) e dependência (pertença a um sistema). Esta autonomia dependente, entrementes, não é uma via de mão única, em que apenas o sistema transfere qualidades aos seres. Na relação ecológica, seres também transformam o meio. E o meio transforma os seres. Há uma co-produção, uma interpenetração, ou, no termo usado por Morin, uma interação. A reciprocidade é fundamental para se conceber e analisar o sistema ecológico, que é aberto, em constante devir, entrecortado de emergências.

Evidentemente, a vida em sua mais diversas articulações e manifestações, é um sistema aberto, complexo e marcado pela dinamicidade, sujeita às transformações resultantes da interação do meio com os seres dos quais se compõe. A autonomia dependente, as transformações do meio, as interações precisam ser consideradas mediante uma categoria que vai além da dialética. Incorpora-a mas avança. É a dialógica51, situada no âmbito dos princípios mais que dos fenômenos. Enquanto a dialética reconhece a superação, por meio da síntese, do antagonismo existente entre fenômenos antitéticos, a dialógica, sem desconsiderar a verdade da dialética, percebe que duas lógicas opostas, embora se “combatam mortalmente”, também se “alimentam uma à outra”, como em simbiose (cf. Morin: ibid.: 79-80)52 .

As redes, entendidas como forma solidária de interação, de articulação e entrelaçamento, mediante laços mais ou menos estáveis, existem, pois, nas diversas relações biológico-sociais. As ONGs, como toda a ação social de caráter solidário, se restritas a uma estratégia isolada correm o risco de pequena efetividade ou repercussão dos propósitos a que perseguem ou mesmo de extinção. Assim, as redes ou articulações emergem como uma necessidade para dar conta de uma realidade complexa e com desafios crescentes, particularmente num mundo globalizado, de relações macro-sociais e macro-econômicas intensas. Destarte, o intercâmbio se faz cogente e instiga a reflexão sobre novos modelos de enfrentamento dos problemas sociais, de cunho solidarístico, também no âmbito científico:

No mundo globalizado há uma tendência tanto das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais em pensar sua articulações e intercâmbios mútuos enquanto redes

51

A dialogia concerne ao âmbito do paradigma, mais que do fenômeno. Supõe a superação dos modelos lógicos clássicos, unidirecionais, pela percepção de mais de uma lógica simultânea, não-linear, que compreende a relação fenomênica em termos de concorrência, antagonismo, complementaridade. Considera não apenas o real, mas também o virtual contido nos elementos em diálogo, e percebe a incerteza e insegurança de que se imbui o saber científico.

52 Na dialógica, as lógicas em oposição, não são apenas antagônicas e concorrentes, mas também simultâneas, complementares. Convivem, coexistem, sem necessariamente se suplantarem uma à outra, ou se resolverem numa síntese. O combate é mortal, a extinção/morte está presente no conflito, qual sombra constante, mas não necessariamente redunda nela como solução lógica. Assim, o que permanece é a incerteza, por se tratar de um sistema complexo, as variáveis intervenientes não permitem uma previsibilidade linear, nem tampouco uma síntese certa. Uma concepção dialógica não suprime a dialética. Complementam-se: a dialética considera o fenômeno. Está no nível do manifesto, do atual. A dialógica é um olhar mais amplo, que considera também o virtual. Está no nível do paradigma, da lógica, dos princípios. A dialética é necessária para enfocar o processo. A dialógica, para a visão da complexidade: o atual e o virtual, as partes, o todo, as interações, as ações, retroações, ordens e desordens, organização, cisões e dispersões, enfim, os sistemas e o que vai além deles.A concepção de dialética, em Morin, é uma visão rica. A síntese, ou melhor, a superação, não é uma superação total, final e definitiva, mas sempre provisória e parcial, embora constituída como momento privilegiado, implica uma contínua superação, sem uma total supressão das contradições (cf. Morin, 2004: 29). A superação, sempre provisória, a gestar a necessidade de outras superações, pode resolver-se, momentaneamente, numa composição igualmente provisória ou permanecer em Estado de conflito.

quanto do pensamento científico em criar modelos analíticos e categorias que dêem conta desta realidade. Os atores dos movimentos tendem a conceber a rede como uma categoria empírica, isto é, como um meio real ou virtual ou, ainda, uma imagem das novas formas de articulações solidarísticas e políticas da sociedade civil ( Scherer-Warren, 2002: 63).

A exigência de solidariedade exsurge como uma reação à ameaça das “identidades ameaçadas, nos contextos globalizados”. Todavia, a própria solidariedade não implica necessariamente a “salvaguarda da alteridade, do mútuo respeito às diversidades”, se não vier acompanhada de um “pensamento crítico e auto-reflexivo em relação as suas práticas e experiências” (cf. Scherer-Warren, ibid.: 65).

Por outro lado, a emergência de redes de solidariedade corresponde a um momento político e histórico crucial, em que há uma lacuna social derivada da abstenção do Estado como provedor de políticas de seguridade social. Cria-se assim o que Moreno denominará de últimas redes ou malhas de seguridade (2000: 115). Com efeito, as relações entre Estado e sociedade civil; entre sociedade civil e mercado e, finalmente, o problema do empoderamento (fortalecimento e autodeterminação da sociedade civil) são pressupostos fundamentais para o entendimento das redes (cf. Scherer-Warren, 1999: 37-38), bem como das ONGs, conforme já abordamos anteriormente, e são a causa imediata da emergência das atuais redes, as quais propiciam o estabelecimento e desenvolvimento de um capital social, assim concebido como aquele que aparece quando as relações interpessoais mudam de forma a fim de facilitarem a ação (cf. Scherer-Warren, 2002.: 66 e tb. Moreno, 2000). Assim as estratégias extrapolam o âmbito local para alcançar conexões outras, até no cenário transnacional. Evidentemente, isto é fortemente uma reação às próprias estratégias políticas e econômicas, que não se restringem ao local, mas cada vez mais acentuadamente internacionalizadas.

Mas como entender as redes? Para Castells, a rede equivale a um conjunto de nós interconectados, descentralizados, com base numa lógica que incorpore a tensão entre inclusão/exclusão, em que todos os nós, mesmo se há os mais relevantes, necessitam-se mutuamente. O sistema não comporta uma dominação de um nó sobre outro (2000: 15)

Ora, na concepção de redes subsiste claramente um núcleo semântico, relativo à ligação, vinculação, articulação. Não pode haver rede sem que haja laços ou nós de ligação.

Pode assim emergirem rede de redes a fim de se propiciarem estratégias de articulação e atuação de maior consistência para enfrentamento dos dilemas sociais. Eminentemente é um modo de empoderamento dos movimentos e organizações sociais a fim de fortalecerem seu potencial solidarístico e também de ampliarem e consolidarem estratégias.

O escopo fundamental da rede deve ser os processos emancipatórios sociais, particularmente no tocante às redes de ONGs ou rede de redes. A estratégia de redes pode até ser concebida como forma de enfrentamento de uma eventual fragmentação decorrente da especialização das ONGs:

A especialização das ONGs, em princípio, não foi a causa de sua fragmentação, pois elas passaram a trabalhar por projetos específicos, focalizados, e atuarem em redes. Redes temáticas

de abrangência local, regional, nacional e transnacional. Quando surge um fato mais

abrangente, as redes temáticas se entrecruzam (Gohn, 2005: 90 – grifos nossos)53.

Assim movimentos sociais e ONGs, na era da globalização, se articulam como redes sociais complexas que conectam simbólica, solidarística e estrategicamente sujeitos e atores coletivos cujas identidades vão-se construindo num processo dialógico de identificações sociais, éticas, culturais e político-ideológicas, de intercâmbios, negociações, definições de campos de conflitos e de resistência aos adversários e aos mecanismos de discriminação e exclusão sistêmica (cf. Scherer-Warren, 2002: 82).

As redes, neste sentido54, não só se constituem como mecanismos estratégicos de estímulo à solidariedade mas incidem sobre o âmbito político-ideológico, e compreendem modos de atuação a perceber a própria dinâmica/dialética social. Em outras palavras, uma rede solidária de ONGs embasa-se na consideração dos antagonismos peculiares da sociedade e busca elementos de intercambio, negociação, informação, tomada de consciência dos conflitos, maneiras de resistência, agências de manutenção e fomento, a fim de fomentar a emancipação dos próprios movimentos sociais.

Algumas características são comuns às redes de movimentos e de ONGs: a) articulação de atores e movimentos sociais e culturais diversificadas e por razões diversas (ações de bairro, ações em torno de uma demanda específicas, questões regionais; intercâmbio de informações ou experiências; causas conjunturais e pontuais....);

53 Segundo Gohn, na seqüência do texto, as causas da fragmentação e do enfraquecimento político das ONGs cidadãs deve ser procurada no “crescimento e fortalecimento do pólo associativo do Terceiro setor, pouco ou nada politizado, com compromissos genéricos sobre o combate à exclusão social, com discurso diluidor dos conflitos sociais, preocupado apenas com a inclusão social em termos de integração social ao

status quo vigente, sem questionar as bases do modelo de desenvolvimento vigente; a opção das ONGs pelo

trabalho institucionalizado, que é uma necessidade, mas priorizando a via das parcerias com as políticas públicas estatais, decorrente do item anterior, o trabalho com políticas públicas levou a trabalhos concentrados em projetos focalizados, para clientelas específicas, desconsiderando-se os processos, os conflitos envolvidos e a universalização das demandas...” (Gohn, 2005: 90-1). Note-se que este comentário da autora conecta bem os temas por nós até agora analisados: o Terceiro setor, como se afigura, dilui a conflituosidade sem na verdade tocá-la em profundidade, porquanto subsume a lógica hegemônica da globalização de mercado. Perde-se em termos de processualidade, politização e, conseqüentemente, de participação cidadã e emancipação social. As redes de ONGs cidadãs e movimentos sociais podem servir de antídoto a estas práticas.

54 Convém assinalar bem aqui que este sentido positivo só se refere a um tipo de ONGs: as militantes, altermundistas ou cidadãs, “que têm finalidade de melhorar ou fortalecer a própria sociedade civil, objetivando provocar microtransformações, locais ou no cotidiano ou macrotransformações, mais globais e de sistêmicas” (Scherer-Warren, 1999: 31). Obviamente, como abordamos na seqüência, nem toda e qualquer organização se subsume a esta caracterização.

b) transnacionalidade: cuja intensidade varia conforme a rede, em geral decorrente da necessidade de financiamentos internacionais ou formas aprimoradas de cooperação; c) pluralismo organizacional e ideológico – evidentemente conservando entre os membros da rede um mínimo consenso ético (príncipios norteadores), d) e, finalmente, atuação nos campos cultural e político, notadamente para imprimir novo sistema de valores, de conotação ética e com forte apelo à sensibilidade coletiva (cf. Scherer-Warren,1993: 119- 123). Tais peculiaridades imprimem às redes um potencial e significados políticos nada desprezíveis, que interferem, positiva ou negativamente, no âmbito dos novos espaços públicos, especialmente na construção ou manipulação de utopias; passando pela consolidação democrática e alteridade ou pela supressão do protagonismo social dos moviementos e cidadãos, e, atingindo o âmbito da integração regional e internacional, ao favorecer modos de vida alternativos ou em benefício da globalização hegemônica e mercadológica.

Resulta, pois, que o estabelecimento de redes é perpassado também pela ambigüidade55. É cogente atentar para a dialética do processo social. Nem sempre as redes têm um caráter eminentemente positivo e solidário. As redes podem muito bem servir à uma lógica de centralização, de controle não só do poder estatal, como também das formas hegemônicas de poder político, econômico e social derivadas da internacionalização do capital, particularmente o especulativo, das bem engendradas formas de articulação tecnológicas e de informática, das ideologias imperantes na atual ordem global. Subsiste, pois, o antagonismo no seio desta realidade complexa que tomamos sob o nome de “redes”. Há, evidentemente, uma dimensão libertária quando se trata de veicular informações e estratégias de ONGs militantes/cidadãs/altermundistas e dos novos movimentos sociais de caráter emancipatórios em favor da própria participação das comunidades, mas há também uma dimensão não-libertária, anti-democrática, em que aparece a figura já referida do aparelho computacional-decisório- subjugador do Estado e das elites de domínio social. Uma rede de informações de uma grande nação como os EUA ou de uma transnacional de poder econômico superior a certos estados nacionais, mediante uma grande malha de computadores e outros recursos tecnológicos, a serviço das suas lideranças respectivas e de suas estratégias de ação político-econômicas (e

55 Quando prevalece o antagonismo, ao invés da solidariedade/complementaridade num sistema, exsurge a crise. A economia de mercado, caracterizada por acirramento da competição, portanto do antagonismo, fomenta a crise. O mesmo sucede no interior dos indivíduos. Quando subsistem antagonismos prevalecentes, tende-se à dispersão, a uma angústia profunda, a uma crise existencial. Quando luzes e sombras, por exemplo, são integradas, quando se reconhece o antagonismo vital e sua complementaridade, a crise é debelada, e se manifesta novamente um mecanismo de desenvolvimento criativo da personalidade, em meio a sua ordem/desordem.

mesmo de seu poderio bélico), pode ser vista como libertária? Ao mesmo passo que a rede pode servir incisamente em alguns casos concretos como a condenação do crime e criminosos envolvidos na morte de Chico Mendes (cf. Scherer-Warren, 1998: 176) pode também significar um reducionismo, tanto da parte das comunidades políticas locais (p. ex. na estranheza aos subsídios do Norte, entendidos com justa desconfiança como intervenção e cujos objetivos escusos às vezes escondem interesses alheios a problemática ambiental) ou mesmo da parte das orientações das ONGs e redes do Norte e das suas respectivas agências financiadoras (que nem sempre compreendem a peculiaridade dos processo emancipatórios do Sul e, tantas vezes, tem orientações mais conformes à ótica neoliberal do que propriamente buscam formas de empoderamento e de ampliação da subjetividade dos cidadãos).

As ONGs, e tampouco as suas redes e suas rede de redes, são um escopo em si mesmas. Não podem substituir o protagonismo dos movimentos sociais. Devem ser vistas antes como parceiras, como aliadas no processo emancipatório. O escopo é o empoderamento da sociedade civil a fim de verem suas reivindicações e necessidades atendidas.

As ONGs ambientais no Brasil já há algum tempo vêm se conectando numa dinâmica de redes, quer mediante os contatos com as ONGs do Norte sensíveis aos problemas que nos afetam, quer mediante os mecanismo de financiamento, por meio da agências públicas e privadas, quer no estabelecimento de vínculos estreitos com movimentos e organizações populações, com meio investigativo-científico, e até mesmo com a ligação às diferentes igrejas e tradições religiosas a fim de construir uma mística ecológica. O incremento de redes de ONGs ambientais especificamente entre nós se dá num momento histórico bastante visível: a Eco-92. E a causa principal adotada por estas redes é decorrente da implementação das agendas 21 locais. O destino das redes e redes de redes a envolver as ONGs ambientais no Brasil dependerá de sua capacidade de articular a questão ambiental com demandas sociais, e não apenas no intuito de preservação da natureza. O elemento antrópico precisa ser visto como integrante da questão ambiental e a consciência ecológica percebida como uma questão socioambiental. Por outro lado, à medida em que mantiverem despertas sua consciência crítica acerca da dialética social e de suas próprias ambiguidades, poderá desvencilhar-se dos embaraços ideológicos e das cooptações do poder político-econômico.

3. Aspectos do desenvolvimento da questão legislativa em torno das ONGs e

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