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As regularidades verificadas nas manifestações do Ministério Público de Porto Alegre 159

3. POR TRÁS DO ACOBERTAMENTO: A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE NEUTRALIZAÇÃO E O SUPORTE NO REALISMO DE DIREITA

3.7. As regularidades verificadas nas manifestações do Ministério Público de Porto Alegre 159

Conforme já explicado, a presente pesquisa não objetiva findar o assunto referente aos crimes de homicídio praticados por policiais militares e o seu possível acobertamento, tanto porque não foi possível esgotar o período analisado, por motivos de disponibilidade dos funcionários do Arquivo Judicial, quanto porque não se pensa que é esse o objetivo das pesquisas acadêmicas, de modo que, por mais que se apresente bibliografia e dados empíricos, sempre permanece a possibilidade de revisitar e de questionar novamente as matérias trazidas.

Feita essa necessária anotação inicial, pode-se dizer que, com base nos inquéritos policiais analisados, relativos a crimes de homicídio praticados por policiais militares na cidade de Porto Alegre, existem alguns enunciados – apropriando-se, aqui, do termo de Foucault – que permitem perceber uma regularidade discursiva dos órgãos institucionais analisados.

Além disso, pode-se falar que os dados colhidos da cidade de Porto Alegre se assemelham àqueles das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, apresentados no primeiro capítulo. É possível verificar a tendência de arquivamento, de modo que, dos casos analisados, não houve sequer uma condenação, tendo havido pedido de arquivamento na grande maioria e, também, ausência de indiciamento na maior parte dos inquéritos.

É interessante notar a justificativa que é trazida pelos representantes dos órgãos institucionais para esses pedidos, tanto para analisar o que é dito quanto pela simplicidade de argumentos. Em poucas manifestações houve análise da prova colhida, mesmo porque, muitas vezes, a produção probatória foi bastante escassa. Na grande maioria dos casos, a promoção do Ministério Público era basicamente igual: fazia-se um breve relato dos fatos, com a exposição dos depoimentos das testemunhas ouvidas, e, após, havia uma pequena explicação, de um ou dois parágrafos, sobre como o caso se encaixava nas causas excludentes de ilicitude: legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal.

159 Aqui refere-se às manifestações que foram apresentadas e analisadas no capítulo anterior.

160 Quando se fala no Ministério Público, é importante mencionar a transição pela qual passou a instituição. Com a Constituição Federal de 1988 houve uma mudança no perfil desse órgão que, a partir de então, deve agir em defesa dos direitos sociais. Nessa esteira, é dada à essa instituição a função de atendimento ao público – atribuição essa que não é dada ao juiz – com o fim de estabelecer um contato entre o promotor de justiça e a realidade social. Necessário dizer, contudo, que as altas taxas de criminalidade e, consequentemente, o constante clamor da sociedade por punição, fizeram com que o Ministério Público se tornasse uma instituição caracterizada, muitas vezes, pelo punitivismo e pela perseguição a determinadas pessoas.

Quando se tratou, anteriormente, das técnicas de neutralização aplicadas aos crimes de Estado, se mencionou que, diferentemente da neutralização dos crimes analisados por Sykes e Matza, nesse tipo de criminalidade não há conflito com os valores da sociedade – na realidade, esses crimes buscam reforçá-los. Isso é bem notável nas manifestações analisadas, visto que é possível verificar, muitas vezes, que a justificativa para o arquivamento do inquérito se apoia no fato de que o indivíduo era criminoso, voltando o foco para a criminalidade que assola a sociedade – como se esse fato justificasse a morte.

Assim, na esteira da adaptação de Zaffaroni, que utilizou-se das tradicionais técnicas elaboradas por Sykes e Matza para explicar a neutralização dos crimes de Estado, é possível verificar, nas manifestações dos representantes do Ministério Público, a negação da responsabilidade. Isso porque há, comumente, a argumentação de que a morte foi inevitável, diante da circunstância de perigo para o policial militar, de modo que não haveria a possibilidade de adoção de conduta diversa.

A negação do dano também é possível de ser verificada nessas manifestações, contudo, não como forma de rejeitar o prejuízo causado, mas em uma tentativa de amenizá-lo. A utilização dessa técnica é verificável em razão do apelo, na grande maioria das vezes, à legítima defesa.

A negação da vítima pode ser a técnica de neutralização mais visualizada quando se fala em violência policial. Considerando que, na maior parte dos casos, as vítimas da letalidade policial são negras, pobres e, especialmente, pessoas que já cometeram crimes, esse fato é comumente trazido como forma de amenizar o homicídio. Por isso que, muitas vezes, se junta ao inquérito policial a Folha de Antecedentes Criminais do indivíduo, em uma tentativa de classificar a vítima como alguém que poderia sofrer esse tipo de violência. Ocorre, assim, o que foi mencionado por Zaffaroni, no sentido de rebaixar a vítima para mostrá-la como alguém inferior.

A técnica da condenação dos que condenam também pode ser verificada quando se trata de violência policial, visto que as organizações de direitos humanos, assim como as pessoas que lutam, de qualquer forma, pelo fim das mortes provocadas por policiais; são, frequentemente, assediadas e criticadas por defenderem os direitos das vítimas desses crimes. Essa crítica é feita, normalmente, mencionando que há pouco esforço dessas pessoas e desses movimentos no sentido de apoiar as vítimas dos crimes cometidos por esses indivíduos, pregando que são complacentes para com a criminalidade.

Ademais, mesmo que já se tenha feito essa advertência no subcapítulo destinado aos crimes de Estado, é preciso dizer novamente, e mais especificamente, que impor a culpa referente às mortes provocadas por policiais militares somente aos referidos policiais é altamente irresponsável. Conforme se pôde verificar, o cometimento desses crimes e a sua perpetuação são possíveis somente porque há uma cadeia de instituições que possibilitam que isso ocorra e continue ocorrendo, que vai desde a autoridade policial, que, via de regra, não indicia esses policiais; passa pelo representante do Ministério Público, que, na maior parte dos casos, pede o arquivamento do caso; e conclui-se com a efetivação do arquivamento pela autoridade judicial.

Nesse ponto, acerca da responsabilização sobre as mortes provocadas pelos policiais, também é importante voltar ao que foi apontado no primeiro capítulo acerca da existência de uma “subcultura policial”. A partir do estudo da teoria das subculturas criminais, associado à ideia de que as instituições policiais “adestram” os seus membros, porque produzem suas próprias regras de conduta que são internalizadas pelos seus integrantes, é possível dizer que há uma subcultura policial que permite que essas mortes ocorram e continuem ocorrendo.

Se observarmos, também, a ideia de policização, apresentada por Zaffaroni, é possível dizer que esse processo desencadeia a dessubjetivação dos profissionais que ingressam nas instituições policiais, de modo que retira desses indivíduos as suas ideias e ideais e imputa os da instituição, em um processo, conforme já se disse, parecido com o adestramento.

Ademais, conforme já foi dito, em alguns casos percebe-se o apelo à segurança da população, buscando demonstrar que os altos números da criminalidade brasileira justificam o ato em questão, visto que já se espera uma atitude violenta. Em um dos casos analisados, em que o policial militar vitimou de forma letal o indivíduo que lhe roubava o carro, sendo que o mesmo sequer estava armado, o Ministério Público pediu o arquivamento em razão da existência de legítima defesa putativa, porque “a vítima estava subtraindo o patrimônio de (...) [policial militar], sendo alta a probabilidade de que estivesse armado, considerando a violência que assola a sociedade em que vivemos”. Nesse sentido, algumas vezes é possível verificar o apelo à manutenção da ordem, colocando esse interesse acima dos demais, como os direitos humanos, por exemplo. Esse posicionamento está bastante relacionado com o movimento do realismo de direita, exposto no subcapítulo anterior.

Por tudo o que foi exposto, acredita-se que tanto as autoridades policiais quanto os representantes do órgão ministerial, quando se trata de crimes de homicídio praticados por

policiais, buscam neutralizar esse ato criminoso, utilizando-se das técnicas aqui mencionadas, procurando atender aos anseios da sociedade, que correspondem, também, aos seus próprios, de colocar fim à criminalidade, focando no objetivo de manutenção da ordem. A busca por essa preservação, contudo, esbarra nos direitos humanos dos indivíduos que sofrem a atuação violenta da polícia, sem que haja preocupação dos órgãos institucionais a respeito disso.