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As relações com os “brancos” e as “novas lideranças”

3. INTERMEDICALIDADE: DA TEORIA À PRÁTICA

3.2 UM LOCAL DE CONSTRUÇÃO DE FRONTEIRAS: O POSTO LEONARDO

3.2.2 As relações com os “brancos” e as “novas lideranças”

Além das características apresentadas até agora, o Posto Leonardo enquanto um espaço de fronteira na relação com os não-índios propicia também o surgimento de novas formas de liderança com características mais ou menos diversas das lideranças tradicionais, uma vez que surgem outros representantes das aldeias, que não os “caciques”, responsáveis pelas relações de contato com a sociedade nacional em suas instâncias mais burocráticas e institucionalizadas. As “lideranças tradicionais” são selecionadas através de critérios variados, que envolvem desde questões linhageiras, passando pelo comportamento ideal, baseado em um ethos de pacificidade e generosidade, além do acúmulo de bens simbólicos, como rituais, rezas e discursos cerimoniais42. À primeira vista, as “novas lideranças” surgidas com a introdução de uma nova lógica fundamentada em preceitos “exógenos” a estes grupos possuem um status diferente das lideranças tradicionais, pois adquirem sua posição através da aquisição destes conhecimentos extrínsecos e não através das formas tradicionais, como ocorre com os caciques. O Posto aparece como uma possível fonte de legitimação de posições de liderança na medida em que permite a criação destes novos espaços de prestígio que estão ao mesmo tempo, conectadas com as relações políticas (no sentido mais amplo) internas ao sistema alto-xinguano. Viveiros de Castro (1977, p.33) define este processo, ao relatar as relações que se davam no Posto Leonardo quando de sua pesquisa de campo, da seguinte maneira:

O que sucedeu foi o surgimento de novas áreas de recursos sociais cujo controle (...) podia, no entanto, ser negociado por alguns indivíduos, líderes com maior ou menor poder em suas aldeias, mas que dispunham agora de uma fonte adicional de poder de

fato passível de modificar o panorama político intra-grupal. Tratava-se então de

saber usá-lo de acordo com as regras vigentes no sistema “tradicional” – isto é, de implementar uma estratégia que fizesse valer seus novos recursos dentro dos critérios tradicionais de avaliação do prestígio individual – generosidade, caráter não impositivo, simpatia pessoal e outros tantos critérios que definem o ethos xinguano.

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Para a noção de “dono” (oto) em rituais e no parentesco entre os kalapalo cf. Guerreiro Junior, 2008. Para discussões sobre a chefia alto-xinguana, cf. Basso, ; Figueiredo, 2006; Heckenberger; Franchetto, 2001; Menget, 1993.

Os professores indígenas formados e mesmo os próprios Agentes de Saúde, por exemplo, possuem conhecimentos específicos que os permitem estabelecer relações mais eficazes com o mundo ocidental, já que conhecem suas “regras” – ao menos em teoria – de funcionamento, tornando-se, supostamente, elementos importantes, que facilitariam o acesso aos não-índios e aos benefícios que este contato implica, ainda que isso envolva questões outras, como por exemplo, o fato destas pessoas serem consideradas “jovens demais” pelas lideranças tradicionais43.

O Posto Leonardo é um local privilegiado onde estas diferentes formas de liderança convivem, possibilitando a legitimação dos “jovens” (ainda que isso não lhes garanta um papel de destaque já que, como discuti anteriormente, o espaço que ocupam efetivamente enquanto liderança nas aldeias não é legitimado) através da realização de cursos de formação, seja de gestores, AISs ou professores, percebidos como momentos privilegiados na transmissão de conhecimentos da sociedade ocidental que, uma vez apropriados, possibilitam maior autonomia política por parte de suas comunidades. Os conselhos, as escolas e os postos de saúde são, portanto, novas formas de organização onde os jovens têm possibilidade de exercer uma representação diferenciada que lhes conferem status distinto no grupo (TINOCO, 2000). Conforme observa Heckenberger, (2001b, p. 106-107),

A distribuição de poder, ou as disputas em torno deste, não correspondem meramente a uma hierarquia – dos chefes mais altos às posições mais baixas dos homens comuns –, mas também a uma heterarquia (CRUMLEY, 1978) de centros de poder alternativos e muitas vezes em competição, dispostos de diversas maneiras de acordo com as condições.

Estas novas posições relacionadas aos “centros de poder alternativos” têm um espaço de legitimação muito específico e delimitado, mantendo-se estritamente vinculado às relações que se mantêm com a sociedade nacional e às tentativas de autonomia sendo apropriadas pelas lideranças tradicionais, conforme apontei anteriormente.

Estas disputas por poder internas às aldeias também se refletem nas disputas inter- étnicas presentes no contexto do contato com a sociedade nacional, marcando a definição de diferenças e catalisando conflitos mais ou menos explícitos. Estas disputas muitas vezes

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ocorrem no sentido de uma tentativa de se garantir o controle das posições privilegiadas nesta relação de contato, propiciando maior status e prestígio na medida em que possibilitam o controle do acesso a bens e serviços provenientes da sociedade nacional, tornando-se explícitas em um discurso de valorização de relações de “amizade”. Isso significa dizer que os índios demarcam suas alteridades na relação de contato através de sua maior proximidade ou distância – marcadas pelas amizades ou por uma afinidade potencial: são os “amigos”, “primos” e “cunhados”, conforme relata Guerreiro Junior (2008) – que membros das comunidades possuem em relação a posições importantes de poder, como o chefe do Posto, ou mesmo os profissionais brancos atuantes na área. Esta maior ou menor distância no que diz respeito aos lócus específicos de poder auxilia na legitimação de certas posições de status, ditando as bases para as relações que se estabelecem entre índios e não índios.

De acordo com a exposição realizada até o momento, já se tem indícios, portanto, que o que está em jogo (para as lideranças especialmente) quando se fala de políticas públicas de saúde indígena é de fato o controle das ações de saúde e da autonomia, marcadas pelas disputas interétnicas em torno das posições de prestígio criadas no contexto do contato, associadas ao acesso a determinados bens e serviços. São nestes espaços de conflitos por posições de poder que os AISs se inserem diretamente, como intermediadores das relações com a sociedade nacional e, nesta condição, com potenciais específicos de acesso a determinados benefícios considerados essenciais.

Após esta apresentação do Posto Leonardo e seus significados dentro do contexto da saúde e da política no Alto Xingu, passo para uma discussão a respeito da prática biomédica de saúde no Alto Xingu, problematizando as relações que se estabelecem entre a EMSI, os AISs e a população alto-xinguana neste contexto.