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As relações entre alma e corpo em Descartes interpretadas na Estrutura do

O último capítulo de A estrutura do comportamento é dedicado ao problema da consciência perceptiva. Neste capítulo Merleau-Ponty comenta o procedimento das

Meditações cartesianas, destacando o que para ele se apresenta como procedimento principal

destas e que constituirá também em sua originalidade. Para Merleau-Ponty, Descartes teria inaugurado a possibilidade de ver por atos mentais indubitáveis, e teria conseguido promover com isto uma alternativa à condenação filosófica ora ao ceticismo, ora ao realismo. Isto porque, tratando da questão da relação entre corpo e alma, teria como resultado da mistura entre res cogitans e res extensa uma experiência, no fim das contas, lúcida. A avaliação merleau-pontiana é a seguinte:

O primeiro movimento de Descartes consiste em abandonar as coisas extramentais, que o realismo filosófico havia introduzido, para retornar a um inventário, a uma descrição da experiência humana sem nada pressupor que a explique inicialmente de fora. No que diz respeito à percepção, a originalidade radical do cartesianismo consiste em se colocar no próprio interior dessa percepção, em não analisar a visão e o tato como funções de nosso corpo, mas apenas “o pensamento de ver e de tocar”74.

Isso quer dizer que, para Merleau-Ponty, Descartes não optou, a princípio, simplesmente por uma análise na qual a percepção apareceria como “resultado” de uma relação causal com a natureza, diferente disso, o filósofo moderno buscou pela estrutura mais íntima, a estrutura interior, desvelando o sentido e o motivo pelo qual a consciência tem acesso à coisa. Para Merleau-Ponty, o argumento do “pedaço de cera” na segunda meditação ilustra isso, quando neste momento Descartes apreende em tal pedaço um ser sólido e não uma aparência transitória.

Foi no décimo segundo parágrafo da segunda meditação que Descartes nos apresentou o exemplo do “pedaço de cera” que garantia a comprovação da segunda verdade do seu sistema, a saber, a legitimidade da coisa pensante. Em tal ocasião, Descartes propôs

que considerássemos um pedaço de cera que contém elementos notáveis pelo intermédio dos sentidos, tais como, odor, grandeza e gosto. Isso era necessário, pois o eu estava certo da compreensão de sua existência, mas não da existência das outras coisas exteriores a ele e, sendo assim, era preciso saber mais distintamente alguma coisa sobre os corpos que via e que tocava. Contudo, ao aproximar tal pedaço do fogo, Descartes argumentou que as coisas que se conhecia outrora com distinção encontravam-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanecia75. O pensador moderno perguntou-se então pelo que de fato proporcionava

conhecer a cera e, assim, concluiu que talvez podia pensar que um corpo que aparece de certa

forma se faz notar sobre outra forma e isso poderia significar que, o que resta dizer, afastando todas as outras coisas que não pertençam propriamente à cera, é que “[...] nada permanece senão algo extenso, flexível e mutável [...]”76.

Desse modo, poderíamos entender que a essência da matéria em Descartes é a extensão, por isso o elogio de Merleau-Ponty a Descartes. Em nota deste fragmento cartesiano Lebrun explica o raciocínio de Descartes: “1, o que me permite reconhecer a mesma cera é sua identidade na medida em que a cera é coisa extensa; 2, mas este conteúdo só pode ser

ideia e não imagem da extensão que o corpo ocupa atualmente ou daquelas [...] que poderia

ocupar em seguida”77.

Lembremos ainda que será no décimo quinto e décimo sexto parágrafos desta mesma meditação que Descartes encontrará pelo argumento da cera a confirmação da segunda verdade apresentada no nono parágrafo, a saber, que minha natureza é puro pensamento exclusivo de todo elemento corporal. Descartes escreve:

Mas, quando distingo a cera de suas formas exteriores e, como se a tivesse despido de suas vestimentas, considero-a inteiramente nua, é certo que, embora se possa ainda encontrar algum erro em meu juízo, não a posso conceber dessa forma sem um espírito humano. […] Mas, enfim, que direi desse espírito, isto é, de mim mesmo? Pois até aqui não admiti em mim nada além de um espírito. Que declararei, digo, de mim, que pareço conceber com tanta nitidez e distinção este pedaço de cera? […] Do mesmo modo, se julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se-á ainda a mesma coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo porque minha imaginação disso me

75 DESCARTES, 1962, p. 104. 76 Ibid., p. 104.

persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me são exteriores e que se encontram fora de mim78.

Isso quer dizer que está claro que só reconheço o pedaço de cera pelo fato de que a mim é possível compreender, através do pensamento, a essência da coisa. Entretanto, atenta Gueroult, não se coloca ainda neste momento a questão se conheço ou não a essência do corpo, por hora trata apenas de saber se posso estar seguro de possuir a ideia clara e distinta deste corpo79. Também, segundo Lebrun, apenas uma coisa é certa: eu penso perceber este corpo, seja compreendendo clara e distintamente a natureza dele, ou, seja imaginando ou tocando este corpo80.

Assim, diferente da dúvida cética que se apega necessariamente a um dado extramental, e encerra o limite do conhecimento em si mesma, a dúvida metódica tratava apenas de um estado de incerteza que, segundo a visão merleau-pontiana, não traz em tal operação nenhuma solução. Na segunda meditação, eu apenas reconheço o pedaço de cera pelo fato de que a mim era possível compreender, através do pensamento, a essência da coisa, embora não estivesse colocada ainda neste momento a questão se conheço ou não a essência de um corpo, antes tratava apenas de saber se seria possível estar seguro de possuir a ideia clara e distinta do corpo.

Considerando isto, Merleau-Ponty aponta-nos que a diferença entre a dúvida cartesiana e a dúvida cética é que a última iguala sonho e percepção, pressupondo um conhecimento puramente ideal. Ela não extrai da experiência vivida nenhum dado para o conhecimento, pelo contrário, transforma tudo em aparência. A dúvida cartesiana, pelo contrário, graças a seu estado de incerteza radical, voluntário e hiperbólico, não traz consigo absolutamente nada. Isto quer dizer que ela não está apegada e nem dependente de um dado ideal extramental ou mesmo realista, antes Descartes desviou a atenção do tato e da visão, que, segundo argumenta Merleau-Ponty, vivem nas coisas81, para o pensamento de ver e de

tocar, revelando assim o domínio indubitável das significações.

Portanto, Descartes mostrou o sentido interior da percepção e do ato de conhecimento, permitiu acesso ao campo outrora velado nas análises filosóficas da tradição.

78 Ibid., p. 134-135.

79GUEROULT, 1953, pp. 144-145. 80 DESCARTES, 1962, p. 134. 81 MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 211.

Merleau-Ponty explica: “[...] Mesmo que eu não veja e não toque nada que existe fora do meu pensamento, ainda assim é verdade que penso ver e tocar alguma coisa e que, sobre o sentido desse pensamento como tal, juízos certos são possíveis”82. Com isso, através de um método

geral, a saber, a dúvida metódica, o cogito permite acesso para um campo vasto de conhecimentos, a partir da própria certeza da existência do eu que duvida.