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AS RELAÇÕES ENTRE AS PRÁTICAS CÔMICAS RITUAIS

Segundo Del Bosque (2008), pode-se observar traços comuns entre as práticas cômicas e os “personagens” observados anteriormente em rituais e no dia a dia de diversas etnias: eles personificam a força do humor, do grotesco que subverte os hormônios do corpo social, a chuva que fecunda a terra, a visão perturbadora que permite ver além do que é permitido. Aquilo que se enseja enfrentar, desde as contradições humanas, aos aspectos mais aterradores e secretos da nossa vida.

A mensagem do palhaço sagrado é clara: ninguém deve se deixar enganar pela fé seja ela sentida de coração ou imposta, dogmática ou supersticiosa. Ao mesmo tempo, adverte, tratando-se de uma figura religiosa, a ausência total de fé é a carência de humor feita doutrina (DEL BOSQUE, 2008, p. 22).

Trata-se de figuras que diariamente alertam a comunidade dos desvios às normas e transmitem seus costumes e suas culturas. Em suma, “mais do que uma inversão do modelo cultural, no seu comportamento e nos seus atributos rituais podemos compreender a presença de oposições que parecem conceitualmente irredutíveis” (MAZZOLENI, 1979, p.22).

Em outras palavras, os cômicos rituais são poderosos, ao mesmo tempo, indefesos, por vezes temidos, mas também fazem rir, no contexto ritual chegam a ser ingratos, se comportam lascivamente e em várias ocasiões são definidos como crianças, são devoradores insaciáveis, mas sua voracidade é frequentemente contracultura, desajustados, bagunçados, prejudiciais, arruaçadores, danosos, mas também vigilantes da propriedade e em determinadas ocasiões punem aqueles que riem, ladrões dissimulados, tiram sarro dos objetos sagrados e dos ritos importantes. Contudo, como dito anteriormente, atuam como protetores dos princípios sagrados.

Outra equivalência entre os “personagens” rituais citados é o local onde são encontrados, trata-se de grupos étnicos, cujos valores culturais são compartilhados de geração para geração. A sua manifestação na comunidade à qual pertence está ligada a rituais, festas e celebrações que marcam o período da colheita, e/ou plantio e/ou rogativa para pedir a chuva. Trata-se de mitos que são “vividos” ritualmente e que estão ligados diretamente a esta temática. Por possuírem o poder de transitar entre os dois mundos, eles levam as mensagens, os pedidos, dos homens aos seus deuses, aos seus ancestrais pela chuva, pela fertilidade da terra, pelo alimento. O falo protuberante encontrado em muitos deles, ou a referência a tal

órgão sexual em suas brincadeiras também tem ligação com a fertilidade, em outras palavras, a fertilidade do homem faz alusão à da terra.

Outra característica encontrada na maioria destas figuras cômicas é que elas continuam com as brincadeiras fora do tempo das festas. Trata-se de uma função social, um “papel” que é desempenhado não somente nos rituais, mas também no dia a dia da comunidade. Eles podem adentrar em diversos lugares e situações sem se explicar, inclusive, em rituais sérios; têm permissão para brincar, jogar, opinar, parodiar, zombar e fazer coisas “erradas” em quaisquer momentos seja dentro de casa, no “pátio” da comunidade, na casa do vizinho ou parente, em qualquer hora do dia ou da noite, muitas das vezes, sem motivo algum.

Observa-se na Bolívia um caso particular, onde o Kusillo, anteriormente citado, se transformou numa figura conhecida e faz parte da vida cotidiana não apenas da etnia a qual pertence, mas de todo o país. Para tanto, vale lembrar o contexto histórico em que se encontram os bolivianos, país conhecido por se instituir em 24 de novembro de 2007, sob a presidência de Juan Evo Morales Ayma (o primeiro presidente indígena a subir ao governo da Bolívia) como estado “plurinacional” e “intercultural”, em que são reconhecidos regimes diferenciados para as comunidades originárias e campesinas7 que correspondem a mais de 60% da população, o que contribui para tal feito.

Assim, o Kusillo, além de fazer parte do Carnaval de La Paz e Oruro, também está presente no repertório das grandes companhias folclóricas, como o Ballet Folclórico de Sucre. Dentro destas companhias, o Kusillo ganhou novas coreografias, passos, acrobacias, giros complexos e nova roupagem, mais colorida, exuberante e rica.

Na figura da próxima página (p.35), temos um Kusillo que possui na sua indumentária uma enorme quantidade de pedras, brilhos e ornamentos. Esta aparição se deu num local inusitado, trata-se de um desfile de moda, realizado na Bolívia, em 2012, no Museu Nacional de Arte. O evento elegeu o Kussillo como temática central e foi realizado para beneficiar enfermos do Hospital das Clínicas da Bolívia, especialmente mulheres com câncer.

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Os bolivianos utilizam comunidades originárias e campesinas contra o termo dado pelos colonizadores amplamente usado inclusive no Brasil: comunidade indígena.

FIGURA 9- Kusillo

Fonte: http: //www.artepinturacultura.blogspot.com.br/2012/08/el-kusillo-es-el-invitado-especial-en.html Acesso em: 22 de setembro de 2013

Kusillo é também nome de prêmio: “Reconocimento Kusillo” que homenageia pessoas

e entidades bolivianas dedicadas à integração dos imigrantes através da Cultura e das Artes Cênicas. Existe também o Museo Kusillo, inaugurado em 1997, conhecido como o museu das crianças. Kusillo virou inclusive título de CD de banda de jazz: “Bolivian Jazz El Kusillo

Melancólico” que tem o Kusillo, com seus chifres, estampado na capa. Por fim, observa-se,

portanto, que se trata de uma figura conhecida entre os bolivianos, diferentemente do que ocorre em outros casos, como veremos, inclusive, no Brasil.

Retomando as semelhanças encontradas entre os diversos cômicos rituais citados no item anterior (2.1), os ensinamentos e as funções destes cômicos rituais, são transmitidos de geração para geração, cada etnia à sua maneira; todas elas preocupam-se com a continuidade desta tradição. Os mais velhos ensinam aos mais novos não somente os mitos, as histórias, as crenças, os segredos, as funções, as responsabilidades, a forma de pensar, mas a forma de agir do cômico ritual, bem como sua forma de ser, de “atuar”, de andar, correr, improvisar e brincar. Ou seja, ensina-se e aprende-se, principalmente, com o corpo.

Trata-se, em ambos os cômicos rituais citados (item 2.1), de corpos grotescos, ridículos, cômicos e desajeitados. Estes corpos recebem de seus mitos, de sua ancestralidade, ornamentos, máscaras, pinturas corporais, roupas específicas, enfim, uma “indumentária” que contribui com o seu desempenho e que possui diversos significados e simbologias.

Todas essas características são apreendidas e transformadas por cada indivíduo que desempenha seu “papel”, assim como insere seus próprios atributos à sua “figura” cômica ritual, tornando-se assim, única, com corpo e jeito próprio. Desta forma, quando o indivíduo mais novo copia o mais velho ele acrescenta suas próprias habilidades, seus trejeitos e expõe suas características físicas, especialmente as que mais chamam atenção, que mais são ridículas à brincadeira. Este corpo é grotesco, incompleto, aberto, cambiante, multifacetado em consonância com os corpos citados anteriormente. Assim, temos:

Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz. É em atos tais como o coito, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais, que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites. É um corpo extremamente incompleto, eternamente criado e criador, um elo na evolução da espécie, ou, mais exatamente, dois elos observados no ponto onde se unem, onde entram um no outro. Isso é particularmente evidente em relação ao período arcaico do grotesco (BAKHTIN, 1987, p.23).

O corpo grotesco é, portanto, um corpo ambivalente onde a degradação e a morte não têm somente um caráter destrutivo e negativo, mas também positivo e regenerador. Do contrário, o corpo contemporâneo, não conserva nenhuma marca de dualidade, basta-se a si mesmo, corpo individual e fechado onde “a morte não é mais do que a morte, ela não coincide jamais com o nascimento; a velhice é destacada da adolescência; (...) (BAKHTIN, 1987, p.281)”. Segundo o autor, a verdadeira riqueza, a abundância, reside unicamente no “baixo”.

A orientação para baixo é própria do realismo grotesco, em baixo, do avesso, de trás para frente, ou seja, movimentos que precipitam todas as formas para baixo, pondo assim, o alto no lugar do baixo. Parafraseando Bakhtin (1987, p.325) pode-se dizer que assim como o bufão da idade média, o cômico ritual é o rei do “mundo às avessas” onde todas as coisas sagradas e elevadas são reinterpretadas no plano material e corporal.

Por fim, conclui-se que o corpo grotesco está misturado ao mundo, “confundido com os animais e as coisas” (BAKHTIN, 1987, p.24). Trata-se de um corpo concebido como o inferior absoluto, onde não há nada estável ou calmo, nele a vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório.

Na próxima etapa, compartilho de que maneira eu pude experienciar através do corpo a metodologia criada por Del Bosque a partir de seus estudos e experiências vividas com várias etnias citadas no texto, que explora amplamente o corpo grotesco descrito por Bakhtin.