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As relações entre corpo, afeto, ética e política

CAPÍTULO 1. SUBJETIVIDADE E DEVIR À LUZ DA TEORIA DE DELEUZE

1.4. As relações entre corpo, afeto, ética e política

Para compreendermos os processos de devir, precisamos considerar que não se tratam de processos abstratos, mas de processos reais que dizem respeito aos corpos e suas relações. Importantes contribuições a respeito dessa problemática advêm das discussões travadas por Espinosa em sua obra, Ética (2009), e pela leitura de Deleuze sobre Espinosa feita em, Espinosa: Filosofia Prática (2002). Inicialmente, faz-se importante mencionar que segundo a teoria de Espinosa mente e corpo são atributos de uma mesma substância. O teórico mostra que as pessoas estão persuadidas a achar que o corpo se move e fica em repouso pelos comandos da mente, mas para ele, o que é ação na alma é também ação no corpo e o que é paixão no corpo é também na alma; portanto, nega, qualquer superioridade de um sobre o outro. Ao destituir a supremacia da alma e da consciência sobre o corpo, Espinosa – assim como vimos em Foucault – coloca-se contra toda a tradição filosófica, passando por Platão, Descartes e Kant, em que o corpo é subjulgado ao Espírito.

Mas o que seria então um Corpo? Segundo Deleuze, o corpo é formado por experiências de longitude (relações de velocidade e lentidão, repouso e movimento) e latitude (conjunto de afetos que preenchem um corpo a cada momento), constituindo o plano de imanência, que é sempre variável e não cessa de ser composto e recomposto pelos indivíduos

e coletividades. Concretamente, isso significa dizer que “definiremos um animal ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz” (DELEUZE, 2002, p. 129). Segundo Deleuze e Parnet:

Espinosa está sempre se surpreendendo com o corpo. Ele não se surpreende de ter um corpo, mas com o que o corpo pode. Os corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie, por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos afetos dos quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação (DELEUZE e PARNET, 1998, p.74)

Podemos pensar inicialmente em três consequências produzidas se levarmos a cabo o pensamento espinosiano: 1) O sujeito nessa perspectiva não é uno, tal como a tradição filosófica o queria definir, mas um ser em relação, composto por intensidades que o afetam, pelos afetos que experimenta e preenchido por afecções. 2) Questões em torno de comunidade, tais quais, identidade e identificação, tornam-se questionáveis. Toda a discussão contemporânea em torno da comunidade é um enfrentamento direto à questão de identidade e identificação7 (voltarei a esse assunto no capítulo 4). O sujeito deixa de ser pensado pelas suas identificações e passa a ser considerado em seu poder de afetação. O sujeito é pensado somente em sua relação, ou seja, o corpo e suas potências. 3) Essa perspectiva incide diretamente na desvalorização da consciência em relação às afecções: “não apetecemos nem desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e desejamos” (SPINOZA, 2009, n.p.). O esforço que motiva a agir está determinado pelas afecções, portanto, o que determina a consciência são as afecções e não o contrário.

O plano de Natureza que distribui os afetos - o plano de imanência - não separa as coisas naturais das artificiais. Para Deleuze, o artifício faz parte da Natureza, já que toda coisa se define pelos agenciamentos de movimentos e afetos, sejam eles artificiais ou naturais. O carrapato, por exemplo, é definido a partir de três afetos e é tudo o que ele é capaz, a partir das relações das quais é composto: luminoso (para subir nos galhos), olfativo (para se deixar cair sobre o mamífero que passa sob o galho) e calorífico (para sentir a região sem pelo e mais quente) (DELEUZE, 2002, p. 131). Isso de certa forma aponta para o fato de que os afetos

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Por exemplo, Giorgio Agamben, em sua obra A comunidade que vem (1993), mostra que “a singularidade qualquer, que quer apropriar-se da própria pertença, do seu próprio ser-na-linguagem, e declina, por isso, toda a identidade e toda a condição de pertença, é o principal inimigo do Estado” (AGAMBEN, 1993, p.68).

podem ser qualquer coisa: uma sensação, uma luz, um animal, uma música, uma ideia, uma pintura, uma poesia. O corpo passa a ser pensado não mais em si, mas em suas relações e nos seus encontros. A partir desses encontros, o corpo vai sendo afetado – três no caso do carrapato, o ser humano bem mais - e preenchido a cada momento. “Tudo é apenas encontro no universo, bom ou mau encontro” (DELEUZE e PARNET, 1998, p.73).

Segundo a leitura que Deleuze faz de Espinosa (2002), os afetos8 ou afecções do corpo são devires, que se manifestam de duas formas, por meio de ações e paixões. Enquanto as ações são da natureza do indivíduo afetado e se derivam de uma causa interna, apresentando- se como potência para agir, as paixões decorrem de uma causa exterior e, por isso, tendem a separar da potência de agir. Essas paixões podem enfraquecer e causar tristeza ou tornar o ser ainda mais forte e alegre. Quando encontramos, por exemplo, um corpo exterior que não convém ao nosso, a potência desse corpo se opõe a nossa potência, causando uma subtração, uma fixação. A potência de agir é então diminuída ou bloqueada e as paixões são de tristeza. Em contrapartida, podemos encontrar também um corpo que convém a nossa natureza e assim a sua potência sendo somada à nossa, faz com que a potência de agir seja ampliada e nos tornamos mais fortes, essas são as paixões de alegria (DELEUZE, 2002, p. 33-34). Deleuze e Guattari declaram que não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que ele pode, quais os afetos de que é capaz, de que maneira este corpo pode compor-se ou não com os afetos do outro corpo “seja para destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente” (DELEUZE e GUATTARI, 1997a, n.p.).

Deleuze e Parnet mostram que somos um grau de potência e não sabemos o quanto podemos afetar e ser afetados, é sempre uma questão de experimentação. Todavia sugere prudência para experimentar. Isso porque, para ele, a todo instante os poderes estabelecidos tendem a nos comunicar afetos tristes que diminuem a nossa potência de agir. “Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos [...] os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar” (DELEUZE e PARNET, 1998, p.75).

8 Faz-se necessária uma diferenciação entre os conceitos de afecção (affectio) e afeto (affectus). Segundo Deleuze, “o affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o

affectus remete à transição de um estado a outro, tendo em conta a variação correlativa dos corpos afetantes”

(Deleuze, 2002, p.56). E ainda, recuperando o pensamento de Espinosa, Deleuze sugere que afeto seja as “afecções do corpo pelas quais sua potência de agir desse mesmo corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou impedida [...]”(Deleuze, 2002, p.56). Com base nessa definição, farei uso do termo afeto.

Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer o pensamento uma potência que não se reduz à consciência. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 75)

Há em Espinosa uma filosofia da vida, segundo Deleuze, isso porque o teórico se propõe a denunciar tudo o que afasta os seres da vida, todos os valores transcendentes que se colocam contra a vida. “A vida está envenenada pelas categorias do bem e do mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissão” (DELEUZE, 2002, p. 32). Em outras palavras, Deleuze comenta que Espinosa não utiliza as noções de bem ou mal, por considerar que essas são categorias transcendentes – assim como pecado e remissão – que se colocam contra a vida. No lugar dessas noções, utiliza bom e mau - dois sentidos da variação da potência de agir. Bom seria aquilo que aumenta e que favorece a potência de ação ou força de existir, enquanto o Mau seria aquilo que, ao contrário, afasta da potência de agir, aliena, imobiliza e nos fixa (DELEUZE, 2002, p. 60-61). Assim: “quando um corpo ‘encontra’ outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes” (DELEUZE, 2002, p. 25).

Da mesma forma que temos os afetos capturados e canalizados pelo Estado, diminuindo nossa potência de agir, eles podem também funcionar como máquinas de guerra contra o Estado, que seria um paradigma de experimentação, de conhecimento afetivo, que podem aparecer em movimentos sociais como “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, manifestações de rua, informações que circulam na internet, entre outros. Como os afetos não são sentimentos pessoais, não se referem a indivíduos, mas a relações, Deleuze e Guatarri pensaram em um modo particular de agregação entre os indivíduos, associando as relações humanas a uma matilha. Na matilha, eles distinguem três espécies de animais: 1) os animais individuados, sentimentais, edipianos (“meu” gato, “meu” cachorro), que reforçam uma contemplação narcísica; 2) a segunda espécie se refere aos animais arquétipos ou modelos de classificação ou de Estado; 3) os últimos são os demoníacos que se desenvolvem e se transformam não por filiação, mas por contágio, eles fazem agenciamentos, multiplicidade e devir. São justamente esses últimos que se opõem às instituições como à família e o Estado, ali surgem as máquinas de guerra que representam uma forma de resistência ao poder do Estado. Segundo Deleuze:

[...] a máquina de guerra é sempre exterior ao Estado, mesmo quando o Estado se serve dela e dela se apropria. O homem de guerra tem todo um devir que implica multiplicidade, celeridade, ubiqüidade metamorfose e traição, potência de afecto (DELEUZE e GUATTARI, 1997a, n.p.).

Toda essa problemática do afeto e de subjetividade ajuda, em especial, a pensar quais os afetos que estão atravessando o nosso corpo e que tipo de composição é possível com afetos de outros corpos. Trata-se, desse modo, de travar não relações de dominação e de autossubmissão e sim pensar na transformação a partir da relação com o outro, compondo algo mais potente para meu corpo em pleno processo de devir, de singularização. Em vez de nos localizarmos como sujeitos prisioneiros de territórios fixos, é importante pensarmos no poder do afeto e dos devires, que fazem de nós não sujeitos do ponto de vista da subjetivação, mas seres em construção. É o mesmo que pensarmos em um movimento contínuo de desterritorialização, no qual cada indivíduo, em sua multiplicidade, desenvolvesse diante de si uma dinâmica constante de abertura para novas possibilidades de alteridade e do devir-outro.

CAPÍTULO 2 - SUBJETIVIDADE E ENSINO DE LITERATURA: