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Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura78.

As crianças realizam a interpretação da sua realidade cotidiana por meio de uma atividade mental. Essa atividade mental, de caráter autônomo e criativo, não é uma mera reprodução conceitual, mas uma construção realizada através da comunicação na qual o sujeito expressa pela linguagem o conteúdo de suas construções – de ordem individual e coletiva – acerca de um objeto. Esta atividade permite que as crianças definam suas posições em relação aos acontecimentos de sua vida cotidiana, baseadas em suas representações. Neste sentido, foi fundamental neste estudo apreendermos as representações sociais sobre os estereótipos étnicos em crianças escolarizadas.

Ao longo deste capítulo apresento as apreensões desenvolvidas ao nas análises dos dados coletados na investigação empírica, por meio das técnicas descritas no capítulo referente ao percurso metodológico. A partir da constatação feita no capítulo anterior (O RECREIO) de que o grau de estereotipia étnica entre as crianças é algo muito forte, busco aqui neste capítulo evidenciar o campo semântico produzido pelas crianças que dão origem às categorias empíricas nas quais os estereótipos são ancorados e objetivados, tornando-se a cadeia polimorfa de crenças múltiplas, conforme Bhabha (op.cit).

Quando falo de campo semântico me refiro ao conjunto das expressões/palavras produzidas pelas crianças que constituem os elementos integrantes das representações sociais. Em Luria (1986) é possível reconhecer as redes semânticas produzidas na relação pensamento e linguagem. No processo de conhecimento da realidade Luria destaca que o objeto do conhecimento não são as coisas em si mesmas, mas sim a relação entre elas. As coisas não são entendidas de forma imediata, mas através dos enlaces e

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relações, através das redes às quais pertencem. Neste processo de conhecimento do real, a palavra possui importante destaque:

Pelo termo linguagem humana entendemos um complexo sistema de códigos enlaçados uns aos outros por seus significados, formado no curso da história social, que designa objetos, características, ações ou relações. O elemento fundamental da linguagem é a palavra. A palavra designa as coisas, individualiza suas características. Designa ações, relações, reúne objetos em determinados sistemas. Dito de outra forma, a palavra codifica nossa experiência (Luria, 1986, p.12-15)

Ao tomar a palavra como elemento formador da consciência, Luria aponta a necessidade de se identificar sua estrutura ou seu campo semântico. Para ele a palavra não indica apenas um objeto, mas provoca uma série de enlaces que incluem em sua composição palavras parecidas com a primeira pela situação imediata, pela experiência anterior. A palavra torna-se o elo ou o nó central de uma rede de representações por ela evocadas ou de palavras ligadas a ela. Então o campo semântico é a rede de significados que surge invariável e involuntariamente associada à palavra dada.

Esses significados associativos de uma palavra produzem à sua volta uma rede de outras palavras, na qual a palavra dada, num dado contexto, para um dado sujeito, se torna o nó central de toda a periferia da rede. Nesta intenção de me aproximar das representações sociais dos estereótipos, identifiquei os elementos constitutivos de cada representação, observando as palavras associadas ao termo indutor da técnica de livre associação nº 1: NEGRO, e, a dissertação resultante da técnica de livre associação nº 2: ROTA IMAGÉTICA

SOBRE O NEGRO, que consistiu na confecção de um desenho no qual as

crianças deveriam “retratar” o modo de vida das crianças negras hoje.

Os resultados da livre associação sobre o tema indutor NEGRO e A

ROTA IMAGÉTICA SOBRE O NEGRO, me permitiu fazer um levantamento das

respectivas freqüências e o mapeamento dos elementos comuns e específicos de cada representação, possibilitando-me apreender as relações entre as categorias de representações estereotipais. Cada campo semântico foi agrupado por tema buscando perceber a similaridade de sentido, constituindo assim as categorias temáticas: PRECONCEITO-DISCRIMINAÇÃO-ESCRAVIDÃO-

Destas categorias e das observações emergiu a hipótese empírica: A representação social dos estereótipos étnicos é proveniente de um contexto social de um grupo de crianças escolarizadas, num determinado processo de interação social que se dá em um determinado espaço (a escola).

A hipótese emergida acaba convergindo com o que Moscovici (1978) afirma sobre a dimensão da representação social que corresponde ao nível de informação que o grupo possui sobre o objeto de representação. O nível de informação das crianças sobre o negro acabou definindo os aspectos das representações feitas por elas e por isto revelam uma estereotipia étnica, pois, as informações que possuem são informações oficiais e, ao lado destas, informações reais observadas por elas mesmas em sua vida cotidiana.

A informação que as crianças possuem tem profunda relação com o tempo em que estas passam na escola e com o tempo que elas se relacionam com o objeto da representação, sejam elas vítimas ou executoras das estereotipias étnicas. Assim, os campos semânticos produzidos pelas crianças compuseram a seguinte amostra de expressões e palavras que originaram as categorias temáticas:

Tabela 8 – Campo semântico produzido pelas crianças

Tema Freqüência Conteúdo

Abolição 6

Zumbi Palmares Consciência negra

Preconceito 12

Feio; Fedorento; Preto; Ridículo; Sujo; Nojento; Marginal; Descendente de escravo; O negro é preto, mas tem bom coração; Os negros alguns são salientes outros não; Os negros alguns fedem; Cabelo ruim; Moreno; Escuro; Negrinha; Carvão; Ódio; Mau hálito; Preconceito é uma doença que discrimina a raça negra

Discriminação 13

Discriminado; Maltratado; Triste; Infeliz; Rejeitado; Sofredor; Solidão; Medo; Susto; Vergonha; Raiva; Desigualdade. Escravidão 14 Senzalas Violência Navio negreiro Café Tortura Trabalho 12

O negro sofreu muito Senhores

Liberdade Dor

Os negros só trabalham

As crianças negras trabalham para sustentar a família Cultura 3 Feijoada África Religião Sotaque Capoeira Total 60

Comparando e analisando as freqüências de ocorrências das expressões associadas fica evidenciado que apesar das categorias

ESCRAVIDÃO, PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO terem uma maior

freqüência, o conjunto de palavras associadas à categoria TRABALHO ganha mais destaque nas dissertações feitas pelas crianças.

Definidos os campos semânticos de cada representação, pude fazer a correlação com as tabelas: Tabela 3 - Caracterização das crianças quanto a

idade/cor/etnia/sexo, Tabela 4 – Caracterização das crianças quanto à cor de sua pele, Tabela 5 - Caracterização étnica das crianças conforme observação da pesquisadora, Tabela 6 – Representação do branco pelas crianças (pontos positivos e negativos), Tabela 7 - Representação do negro pelas crianças (pontos positivos e negativos), apresentadas no capítulo

anterior e dizer que o grau de estereotipia está ligado ao conjunto de categorias temáticas que dizem respeito ao nível de informação, afetivo e sócio-cultural que as crianças possuem sobre o objeto representado.

Diante destas evidências, veja o leitor como as crianças representam os negros e brancos a partir das categorias temáticas por elas utilizadas, lembrando que os processos ocorrem por meio da ancoragem: consiste em classificar pessoas, idéias, relações, objetos ou acontecimentos e com isso situar dentro de uma categoria. A ancoragem consiste em aproximar o sujeito do objeto, entre os indivíduos e os membros de seu grupo, fortalecendo a identidade grupal. A objetivação: é o outro processo de formação das representações sociais que consiste em tornar uma operação imaginante e estruturante em algo concreto, visível. Ou seja, dá forma específica ao conhecimento acerca do objeto, tornando concreto o conceito abstrato, materializando a palavra, dando uma imagem à ela (estes dois processos já foram explicados quando falamos da teoria das representações sociais no capítulo referente às bases teórico-metodológicas da pesquisa). Passemos agora aos processos de ancoragem e objetivação realizadas pelas crianças sobre os estereótipos étnicos a partir de cada categoria temática.

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