• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. ESTUDO DE CASO E DISCUSSÃO: OS GERAIZEIROS DO NORTE

3.1 AS RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ALIANDO

CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS E MANUTENÇÃO DOS MEIOS DE VIDA DAS POPULAÇÕES LOCAIS

A preocupação com os problemas ambientais ocasionados pelas formas de exploração dos recursos naturais, que toma mais força ao longo do século XX, acaba por levar à criação de estratégias para proteger esses recursos, sejam eles o meio natural, a biodiversidade, o patrimônio genético ou os ecossistemas naturais. Uma dessas estratégias é a demarcação de

áreas a serem protegidas, espaços que passaram a ser denominados como “Unidades de Conservação”, e que ganham mais importância, principalmente, a partir da década de 1990,

pela globalização da percepção dos problemas ambientais e preocupação com esses (AGUIAR; MOREAU; FONTES, 2013; HASSLER, 2005; DIEGUES, 2001). Nesse contexto, pode-se destacar que a noção de área protegida, no que concerne ao termo enquanto espaço natural ou território demarcado, só começou a ser praticado, efetivamente, no Brasil e em outras partes do

mundo, “à medida que os efeitos oriundos dos impactos decorrentes da devastação de extensas

áreas, seja pela exploração e corte da madeira, seja pelo empobrecimento dos solos, fizeram-se

mais evidentes” (MEDEIROS, 2006, p.44).

No caso brasileiro, apesar de todas as normatizações criadas ao longo dos anos, com objetivos de conservação do patrimônio natural, o grande marco nesse sentido, foi a aprovação, em 2000, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que vinha sendo discutido desde a década de 1970 (LOPES, 2013; MEDEIROS, 2006). O SNUC foi instituído pela Lei Nº 9.985 de 18 de julho de 2000, e traz em seu conteúdo a definição de critérios mais objetivos para a criação e gestão das tipologias e categorias de áreas protegidas. Dentre as mesmas, algumas se encontravam, antes, dispersas em diferentes instrumentos legais, como destaca Medeiros (2006). Foram definidas 12 categorias de manejo, com objetivos definidos no texto da lei. Estas categorias estão divididas em dois grandes grupos, as UC’s de Uso Sustentável e

as UC’s de Proteção Integral, cujos objetivos e características estão descritos no Apêndice B.

A instituição de dois grupos de Unidades de Conservação buscava atender estratégias distintas de gestão, questão que estava em disputa entre diferentes grupos sociais interessados no tema. Entretanto, independente das intensões que permearam a aprovação do SNUC, sua contribuição ao tema da conservação ambiental, bem como melhor definição das questões

referentes à criação e gestão das áreas protegidas no país é inegável. Como destaca Medeiros (2006, p.57), essa ferramenta não apenas incorporou parte das áreas protegidas previstas na

legislação brasileira, como também possibilitou “que novas categorias fossem criadas ou incorporadas a partir de experiências originais desenvolvidas no país”. São exemplos dessa

abertura a consolidação de categorias como as Reservas Extrativistas e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável, que trazem em sua proposta a união dos objetivos de conservação da natureza e proteção das populações que residem nessas áreas, e de seus meios de vida e cultura. Essas categorias de manejo são fruto das mobilizações e reivindicações das populações tradicionais desses territórios e de movimentos sociais ligados às mesmas, que lutavam pelo reconhecimento de seus direitos aos territórios e aos recursos. Nesse contexto, na perspectiva de Lima (2006) e Mattos, Nobre e Aloufa (2011), a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) pode ser considerada como uma categoria essencialmente socioambiental. Esse argumento se justifica, pela incorporação nessa categoria de objetivos de conservação dos recursos naturais, ações de inclusão social, valorização do conhecimento local e práticas de manejo ambiental, em outras palavras, visa garantir a ligação ou a sinergia decorrente dos processos de interação cultural e ecológica, entre população e meio.

A primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Brasil foi criada em 1996, na esfera administrativa estadual31, no Amazonas. Essa era uma categoria inédita, que foi criada

com inspiração no modelo das Reservas Extrativistas, porém, em um contexto específico, a fim de tentar conciliar a existência de populações tradicionais em Unidades de Proteção Integral (LIMA, 2006). A criação da Estação Ecológica (ESEC) do Mamirauá32

, em 1990, se mostrou incompatível com a realidade de ocupação tradicional da área. O que se processava é que, mesmo que fosse possível a remoção dos ocupantes tradicionais da área, visto que a ESEC não permite a presença de populações humanas em seu interior, a efetividade da área protegida como forma eficiente de conservação da biodiversidade seria comprometida. A eficácia da proteção local dependia da participação intensa de um grande número de pessoas, e esses

“parceiros” seriam os moradores tradicionais da área. Nesse contexto, como apresenta Ferreira

(2007) e Lima (2006), após muitas negociações políticas, quando da elaboração de seu plano de manejo e apresentação de nova proposta por pesquisadores da Sociedade Civil Mamirauá, a

31 As Reservas de Desenvolvimento Sustentável podem ser criadas tanto na esfera federal, quanto estadual e municipal. Os números relativos às RDS no Brasil, nas três esferas, estão descritos no Apêndice C.

32 A criação da ESEC do Mamirauá teve como objetivo proteger o primata Uacari-branco (Cacajao calvus calvus), que na época da solicitação já constava na lista das espécies ameaçadas de extinção oficial do Brasil, bem como da IUCN (International Union for the Conservation of Nature) (FERREIRA, 2007).

ESEC Mamirauá foi recategorizada no nível estadual, passando a se enquadrar na categoria Reserva de Desenvolvimento Sustentável, a RDS Mamirauá (RDSM) (FERREIRA, 2007).

Como expresso no SNUC e discutido por Ferreira (2007, p.25-26), o modelo de gestão

das RDS está “fundamentado na permanência e participação das populações locais e na

formação e manutenção de uma forte base científica para subsídio do manejo e conservação da

biodiversidade”. Esses dois eixos, quando trabalhados de forma conjunta, podem ser capazes

de criar condições necessárias para a consolidação de normas de manejo baseadas em questões como a conservação da biodiversidade, que tem maiores chances de aceitação política e social, devido a efetiva participação das comunidades que esse processo pressupõe, diminuindo as chances de ocorrência de conflitos locais. Porém, é importante ressaltar que o Estado e demais grupos interessados na criação de áreas protegidas, inclusive nessa categoria, devem trabalhar de forma conjunta com as comunidades locais e suas necessidades, a fim de criar aparatos que atendam às necessidades das mesmas e não comprometam os objetivos de conservação, como destaca o mesmo autor. Assim, é possível considerar que o modelo de Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma alternativa para a promoção de ações de conservação da

biodiversidade em UC’s de Uso Sustentável, no entanto, sua viabilidade depende da

preservação de sua paisagem cultural, na medida que não é possível pensar as populações nesses espaços separadas de seu contexto histórico-ambiental (FERREIRA, 2007; QUEIROZ, 2005). Nesse contexto, Santilli (2005, p.94 ) destaca que a criação de UC’s de Uso Sustentável, como as Resex e as RDS, é “norteada justamente pelo reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, da essencialidade do território para as populações tradicionais, e de sua importância para a própria construção da identidade coletiva dos mesmos”. Esse processo de reconhecimento teve início com os seringueiros na Amazônia, e segue com a incorporação de novas populações nas discussões sobre o direito ao território e aos recursos, como é o caso dos geraizeiros do Norte de Minas. Isto posto, autores como Dutra e Faria (2009) discutem que as

UC’s de Uso Sustentável aparecem como uma das formas mais promissoras de manutenção da

diversidade biológica, que apresentam, em conjunto, a possiblidade de incluir os povos tradicionais no processo de gestão e uso dos recursos naturais nessas áreas. A inclusão da categoria RDS no SNUC se apresenta, portanto, como reconhecimento desse modelo como uma solução viável para contextos de conciliação entre as demandas das populações tradicionais e as necessidades de conservação da biodiversidade (FERREIRA, 2007).

Diante do exposto, a seção seguinte trata dos resultados da pesquisa bibliográfica e de campo na RDS Nascentes Geraizeiras, Norte de Minas Gerais. Destaca-se que a RDSNG foi a segunda unidade dessa categoria a ser instituída na esfera federal33. Sua criação é fruto da

reivindicação das comunidades locais pela proteção dos recursos naturais (biodiversidade do Cerrado e água) e reapropriação do território que era utilizado de forma comum.