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3.1 A SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM

3.1.1 As teorias da enunciação

Estudos mais atentos e rigorosos sobre a enunciação são relativamente recentes – os trabalhos pioneiros de É. Benveniste datam do fim da década de 1950 (NEGRONI; COLADO, 2001). Torna-se pertinente, então, trazermos as teorias de É. Benveniste acerca da enunciação, devido a sua importância e pioneirismo nesse campo:

A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização. O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a ‘fala’? – É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta. A relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação (BENVENISTE, 2006, p. 82).

Para o autor, a enunciação é definida em relação a uma ação individual, ou seja, é a ação de se apropriar da língua. A partir dessas afirmações, separa-se concomitantemente o ato – objeto de estudo da linguística da enunciação – do produto, o discurso. Esse ato é a relação do locutor com a língua baseada em determinadas formas linguísticas da enunciação que marcam essa relação. É necessário também compreender a distinção entre enunciação e enunciado:

[...] é preciso distinguir o enunciado, que é o objeto produzido pelo locutor tendo escolhido empregar uma frase, e a enunciação entendida como a ação que consiste em produzir um enunciado, isto é, dar a uma frase uma realização concreta (DUCROT, 1984, p. 89).

Com a explicação do autor e também sob a ótica de Fiorin (1996), entendemos que a enunciação é o ato de produzir um enunciado. A enunciação é o produto da atividade do sujeito falante, um segmento de discurso, constituído pelo aparecimento de um enunciado. Já Conde (2008) diz que, ainda em relação à diferença entre enunciação e enunciado, faz-se necessário elucidar que o enunciado

é mais que o dito e escrito. Ele é a materialização da enunciação e só é possível compreendê-la através do enunciado. Também é pertinente mencionar que as teorias da enunciação estudam as marcas do sujeito no enunciado e não o próprio sujeito. A enunciação supõe um sujeito e teoriza sobre esse sujeito, “pois seu interesse é propriamente sentido. Logo, seria necessário não ceder ao impulso de ver no sujeito da enunciação uma evidência perceptível, psicológica, livre e transparente” (FLORES; TEIXEIRA, 2005, p. 11).

Segundo Kerbrat-Orecchioni (1995), a enunciação é a busca dos procedimentos linguísticos com os quais o locutor imprime sua marca naquilo que enuncia, se inscreve na mensagem e se situa em relação a ela. A enunciação tem essência histórica e por isso não reproduz a si mesma de forma duas vezes idêntica jamais. Já Guimarães (2005) em sua obra Semântica do Acontecimento, por enunciação, entende um acontecimento no qual sujeito e língua estabelecem uma relação. Conde (2008) concebe a enunciação como colocar em prática a língua e o discurso, e essa prática é o estágio de uma total confluência de diferentes saberes e práticas.

Enquanto acontecimento de linguagem, a enunciação se faz pelo funcionamento da língua. Guimarães (2005) vê a enunciação como a língua posta em funcionamento pelo locutor – trata a enunciação como funcionamento da língua sem remeter isto a um locutor. A língua e o sujeito são dois elementos decisivos para este acontecimento de linguagem. O sujeito vem a constituir-se pelo funcionamento da língua na qual se enuncia algo. A temporalidade e o real também fazem parte desse acontecimento. Em relação ao real, não se trata do contexto e sim da materialidade histórica do real. Isso quer dizer que enunciar é um ato feito em outras instâncias que não a do ser físico ou do mundo físico.

No que tange ao aparelho formal da enunciação, conceito elaborado por Benveniste (2005), ele pode ser visto como uma espécie de dispositivo que as línguas possuem para que possam ser enunciadas. Esse aparelho é a marca da subjetividade na estrutura da língua. A cada vez que o locutor se apropria do aparelho formal da enunciação, está, consequentemente, produzindo um uso novo e irrepetível. Ducrot (1984) elucida que a enunciação é constituída pela aparição de um enunciado. Sob a ótica do autor, a enunciação é um acontecimento histórico no qual se tem a aparição momentânea de algo. É a atividade de linguagem exercida por aquele que fala no momento em que fala. Segundo o autor, a realização de um

enunciado é um acontecimento histórico: é dada existência a “alguma coisa que não existia antes de se falar e que não existirá mais depois, é esta aparição momentânea que chamo de enunciação. Para mim é simplesmente o fato de que um enunciado aparece” (DUCROT, 1984, p. 168-169).

Ainda sobre a questão da não repetibilidade da enunciação, Foucault (1969) nos diz que “A enunciação é um acontecimento que não se repete; tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir (p. 116). Deste modo, a enunciação é vista sempre como o lugar do novo.

Já para Sampaio (2007), a enunciação é a atitude do

[...] falante diante de seu enunciado (que faz parte do mundo material), pode ser considerada o ato em si (que transforma sentidos em palavras), a situação na qual se realiza, as condições de produção que a possibilitam e a própria realização. [...] Após a enunciação, a língua vira discurso de que brota de um locutor, forma sonora dirigida a um alocutário e que suscita outra enunciação como resposta (p. 20-21).

Na enunciação, de acordo com Benveniste (2006), a língua se acha empregada para a expressão de uma relação com o mundo e a enunciação é a instância de mediação entre a língua e a fala. A enunciação, para Flores; Teixeira (2005), “é produto de um ato de apropriação da língua pelo locutor, que a partir do aparelho formal da enunciação, tem como parâmetro um locutor e um alocutário” (p. 35). A alocução vem a instaurar o outro no emprego da língua. Ducrot (1984) afirma que cada ato de enunciação constitui um acontecimento único e implica em um locutor particular. Observamos também que a enunciação não é considerada como algo alheio à língua e sim como um fenômeno integrado e inscrito nela, de maneira implícita ou explícita. “Podemos decir que detrás de cada enunciado, y por extensión de cada discurso, hay una enunciación, se vea exteriorizada o no”3 (NEGRONI;

COLADO, 2001, p. 68).

Ao mobilizar a língua e dela se apropriar, o locutor se relaciona com o mundo via discurso de um sujeito, ao mesmo tempo que o alocutário co-refere. Para Benveniste (2006), “o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. [...] A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno” (p. 83). Afirma também que a enunciação supõe a conversão da língua em discurso. Esse ato

3 Podemos dizer que atrás de cada enunciado, e pela extensão de cada discurso, há uma

individual, pelo qual se utiliza a língua, introduz o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação. Já Guimarães (2005) diz que a enunciação não é individual:

[...] tomar a enunciação como uma prática política e não individual ou subjetiva, nem como uma distribuição estratificada de características. Falar é assumir a palavra neste espaço de línguas e falantes. [...] Enunciar é estar na língua em funcionamento (p. 22).

A partir dessa reflexão, emerge a questão do espaço de enunciação, visto que a enunciação é colocada em prática em espaços determinados onde sujeitos colocam línguas em funcionamento e assim produzem sentidos.

3.1.2 O espaço da enunciação: espaço de funcionamento de línguas habitado