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As teorias devem ser consideradas como um todo estruturado

No documento O que é Ciência Afinal (páginas 98-101)

VII. Teorias como estruturas: programas de pesquisa

1. As teorias devem ser consideradas como um todo estruturado

O esboço da Revolução Copernicana apresentado no capítulo anterior sugere enfaticamente que os relatos indutivista e falsificacionista da ciência são por demais fragmentários. Ao se concentrarem nas relações entre as teorias e nas proposições de observações individuais ou de conjuntos, eles deixam de levar em conta as complexidades das principais teorias científicas. Nem a ênfase indutivista ingênua na derivação indutiva das teorias da observação, nem o esquema falsificacionista de conjecturas e falsificações são capazes de produzir uma caracterização adequada da gênese e crescimento de teorias realisticamente complexas. Quadros mais adequados envolvem a apresentação de teorias como espécies de todos estruturados.

Uma das razões pelas quais é necessário considerar as teorias como estruturas origina-se de um estudo da história da ciência. O estudo histórico revela que a evolução e o progresso das principais ciências mostram uma estrutura que não é captada pelos relatos indutivista e falsificacionista. O desenvolvimento programático da teoria copernicana durante mais de um século já nos forneceu um exemplo. Mais adiante nesse capítulo encontraremos outros. O argumento histórico não é, contudo, a única base para a afirmação de que as teorias constituem todos estruturais de algum tipo. Um outro argumento, mais filosófico, está intimamente ligado à dependência que a observação tem da teoria. No Capítulo III foi enfatizado que as proposições

110 de observação devem ser formuladas na linguagem de alguma teoria. Conseqüentemente, as afirmações e os conceitos que nelas aparecem serão tão

precisos e tão informativos quanto for precisa e informativa a linguagem em que forem expressos. Por exemplo, acho que se concordará que o conceito newtoniano de massa possui um sentido mais preciso que o conceito de democracia, digamos. Sugiro que o motivo para o sentido relativamente preciso do primeiro tem sua origem no fato de que o conceito desempenha um papel específico e bem definido em uma teoria precisa e estruturada, a mecânica newtoniana. Contrastando com isso, as teorias em que aparece o conceito “democracia” são notoriamente vagas e variadas. Caso seja válida esta ligação íntima sugerida entre a precisão de sentido de um termo ou afirmação e o papel desempenhado por aquele termo ou aquela afirmação numa teoria, então isso resulta de modo bastante direto na necessidade de teorias coerentemente estruturadas.

A dependência dos sentidos dos conceitos da estrutura da teoria em que ocorrem e a dependência da precisão dos primeiros da precisão e do grau de coerência desses últimos podem tornar-se mais plausíveis notando-se as limitações dos modos alternativos em que se pode pensar que um conceito adquira sentido. Uma tal alternativa é o ponto de vista de que os conceitos adquirem seu sentido por meio de uma definição. As definições devem ser rejeitadas como procedimento fundamental para o estabelecimento de sentidos. Os conceitos somente podem ser definidos em termos de outros conceitos, os sentidos dos quais são dados. Se os sentidos desses últimos conceitos forem eles mesmos estabelecidos por definições, fica claro que o resultado é um regresso infinito, a menos que os sentidos de alguns termos sejam conhecidos por algum outro meio. Um dicionário é inútil a menos que já se conheça o sentido de muitas palavras. Não era possível para Newton

definir massa ou força em termos de conceitos pré-newtonianos. Foi

necessário que ele transcendesse os termos do velho sistema conceitua) e desenvolvesse um novo. Uma segunda alternativa é a sugestão de que o sentido do conceito é estabelecido através da observação, por meio de uma

definição ostensiva. Uma dificuldade central dessa sugestão foi já discutida a

respeito do conceito de “vermelho” nas páginas 54-5. Não se chega ao conceito de

111 “massa” somente através da observação, por mais atentamente que se observem bolas de bilhar colidindo, pesos pendurados de molas, planetas em órbita etc., nem é possível ensinar a terceiros o sentido de massa simplesmente indicando tais eventos. Não é irrelevante lembrar nesse ponto que, se

tentarmos ensinar um cão por meio da definição ostensiva, ele reagirá invariavelmente cheirando o dedo que aponta.

A afirmação de que os conceitos obtêm seus sentidos ao menos em parte do papel que desempenham numa teoria é sustentada pelas seguintes reflexões históricas.

Contrariamente ao mito popular, Galileu parece ter realizado poucas experiências em mecânica. Muitas das “experiências” a que ele se refere ao articular sua teoria são experiências de pensamento. Isto constitui um fato paradoxal para aqueles empiristas que pensam que as novas teorias derivam de alguma forma dos fatos, mas é bastante compreensível quando se percebe que a experimentação precisa somente poderá ser levada a cabo se tivermos uma teoria precisa capaz de produzir previsões sob a forma de afirmações precisas. Galileu se encontrava no processo de fazer uma importante contribuição para a construção de uma nova mecânica, que provaria ser capaz de suportar uma experimentação detalhada num estágio posterior. Não é necessariamente surpreendente que seus esforços envolvessem experiências de pensamento, analogias e metáforas ilustrativas em vez de experimentação detalhada. Sugiro que a história típica de um conceito, seja ele “elemento químico”, “átomo”, “o inconsciente” ou qualquer outro, envolve uma aparição inicial do conceito como uma idéia vaga, seguido por seu esclarecimento gradual quando a teoria na qual ele desempenha um papel assume uma forma mais precisa e coerente. A emergência do conceito de campo elétrico nos dá um exemplo especialmente notável, embora um tanto técnico. Quando primeiro o conceito foi introduzido, por Faraday, na quarta década do século XIX, ele era muito vago, e era articulado com a ajuda de analogias mecânicas e um uso metafórico de termos como “tensão”, “poder” e “força”. O conceito de campo tornou-se cada vez mais bem definido quando foram ficando melhor especificadas as relações entre o campo elétrico e as outras quantidades eletromagnéticas. Quando Maxwell intro-

112 duziu sua corrente de deslocamento, foi possível dar uma grande coerência à teoria sob a forma das equações de Maxwell, que estabeleceram claramente o inter-relacionamento entre todas as quantidades do campo eletromagnético. Foi a essa altura que o sentido de “campo elétrico” na teoria eletromagnética clássica alcançou alto grau de clareza e precisão. Foi também nesse ponto que se concedeu aos campos uma independência própria e dispensou-se o éter, que havia sido considerado necessário para dar aos campos uma base mecânica.

Mencionamos até agora dois motivos para que as teorias devam ser vistas como estruturas organizadas de alguma espécie: o fato do estudo histórico demonstrar que as teorias pos suem essa característica e o fato de que é somente por meio de uma teoria coerentemente estruturada que os conceitos adquirem um sentido preciso. Um terceiro motivo tem origem na necessidade da ciência de crescer. Está claro que a ciência avançará mais eficientemente se as teorias forem estruturadas de maneira a conter em seu interior indícios e receitas bastante claros quanto a como elas devem ser desenvolvidas e estendidas. Elas devem ser estruturas abertas para que ofereçam um programa de pesquisa. A mecânica de Newton forneceu um programa para os físicos dos séculos XVIII e XIX, o programa para explicar todo o mundo físico em termos de sistemas mecânicos que envolvem várias forças e são governados pelas leis do movimento de Newton. Este programa coerente pode ser comparado à moderna sociologia, grande parte da qual está suficientemente preocupada com dados empíricos para satisfazer os critérios falsificacionistas da boa ciência, o que não ocorre com os indutivistas, e que, entretanto, fracassa miseravelmente ao emular o sucesso da física. Sugiro, seguindo Lakatos, que a diferença crucial se encontra na coerência relativa das duas teorias. As modernas teorias sociológicas não enunciam um programa coerente como guia para pesquisas futuras.

No documento O que é Ciência Afinal (páginas 98-101)