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2. CRIMES DE PERIGO: ESPÉCIES TRADICIONAIS E NOVAS CONCEPÇÕES

2.3 As tradicionais espécies de crimes de perigo

Os crimes de perigo são objeto de estudo da teoria do delito desde as últimas décadas do século XIX, delineados inicialmente por Binding225 que, ao falar do conceito de perigo, observou a existência de conceitos jurídicos que, apesar de imprescindíveis, revelam- se acentuadamente perigosos, pelo fato de sua incorreta compreensão acarretar interpretações equivocadas e soluções descompassadas com escopos do Direito Penal226.

De modo geral, os crimes de perigo são, por sua parte, distintos em duas categorias: crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. Colocam-se os primeiros em respeito a uma situação em que o perigo é parte integrante do tipo, devendo este ser verificado caso a caso. Já os segundos correspondem aos momentos em que tal não se percebe, sendo, portanto, situação perigosa hipotética presumida.

Há autores que superam a clássica divisão bipartida dos crimes de perigo abstrato

223

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 114. Quanto ao objeto deste trabalho, afirma ainda o autor que o conceito penal de perigo abstrato funda-se na assertiva de que a existência de um perigo a determinados bens jurídicos já é, em certos casos, justificativa suficiente para uma intervenção estatal. Na sua visão, este ponto se caracteriza como um dos maiores impasses atuais do Direito.

224 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 114-115.

225 Quanto à polêmica acerca do pioneirismo do estudo dos crimes de perigo, vide nota n. 8. 226

HIRSCH, Hans-Joachim. Peligro y peligrosidad. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid, v. 59, n. 1, fev.-abr. 1996, p. 509.

ao lado dos crimes de perigo concreto, admitindo uma terceira espécie: o crime de perigo abstrato-concreto. A partir do final da década de sessenta é que se passou a falar em tais delitos, os quais configurariam uma categoria intermediária entre os crimes de perigo abstrato e os crimes de perigo concreto227.

Nos crimes de perigo abstrato-concreto não se exige a produção de nenhuma ameaça concreta ao bem jurídico tutelado. Portanto, ele não pode ser tido como crime de perigo concreto. Nesses crimes, a tipificação também não se contenta com a mera realização da tipicidade, não se enquadrando como crime de perigo abstrato.

A seguir, passa-se à análise de cada uma dessas espécies de crimes de perigo. A delimitação conceitual de tais institutos é indispensável para o entendimento dos problemas que rondam os crimes de perigo abstrato.

2.3.1 Crimes de perigo concreto

O crime de perigo concreto é aquele segundo o qual, para o aperfeiçoamento do tipo penal, exige-se a verificação efetiva do perigo, devendo este ser constatado caso a caso. No delito em tela, consoante a quase totalidade da doutrina, o perigo é indicado no modelo legal, constituindo elemento do tipo penal228.

Claus Roxin afirma que os delitos de perigo concreto requerem que, no caso concreto, seja produzido um perigo real para o objeto protegido pelo tipo penal, isto é, demandam a criação de um efetivo perigo de resultado, ou um risco de lesão adequado e não permitido. Para o mestre alemão, o perigo deve ser comprovado segundo um juízo ex ante e, caso se verifique a ausência do perigo de resultado, o fato não seria imputado ainda que se

227 O desenvolvimento dos crimes de perigo abstrato-concreto é atribuído ao alemão Horst Schröder, que fez tal proposta no X Congresso Internacional de Direito Penal, ocorrido entre 29 de setembro e 5 de outubro de 1969, em Roma. Vide: D´ALESSANDRO, Francesco. Pericolo astratto e limiti-soglia: le promesse non mantenute del diritto penale. Milano: Giuffrè Editore, 2012, p. 155-156.

produzisse uma efetiva colocação em perigo229.

Juarez Cirino dos Santos assevera que nos delitos dc perigo concreto a realização do tipo pressupõe uma efetiva produção do perigo para o objeto da ação e, citando Schünemann, enfatiza que o perigo concreto se caracteriza pela ausência causal do resultado, e a causalidade representa circunstância em cuja ocorrência não se pode confiar230.

A categorização dos crimes de perigo concreto pode ter por base distintas teorias. Desde os conceitos da teoria subjetiva, pela qual se tem que o perigo deve ser entendido como um produto cerebrino, até as teorias objetivas, onde se enxerga não ser o perigo um produto da apreciação humana, mas sim uma entidade verdadeiramente objetiva, chega-se à construção do entendimento de que o perigo, objetivamente constatado, é, sim, o resultado ou efeito provocado por uma ação231.

Os delitos de perigo concreto não protagonizam fortes discussões penais como os delitos de perigo abstrato. As doutrinas alemã, espanhola e brasileira são concordes no tocante aos principais aspectos do tema.

Definido que nesses crimes o perigo compõe o tipo, ou seja, é indicado em sua descrição, uma das únicas indagações que ocorre é se a palavra perigo pode ser substituída por outra técnica de reclamar-se o perigo, ou se, ainda, poderá haver tal espécie de delito em que o perigo não seja elemento expresso do tipo. Vale aqui exemplificar: no crime de incêndio, previsto no art. 250 do CP232, a referência ao perigo está posta na própria descrição do tipo, não havendo dúvidas quanto à indicação do perigo pelo legislador233.

Entretanto, o legislador prevê crimes de perigo concreto sem mencionar expressamente tal locução, e o interprete terá de fazer uma exegese mais cuidadosa. Tal ocorre com o crime de gestão temerária, previsto no parágrafo único do art. 4.° da Lei 7.492, de 16.06.1986, descrito de forma lacônica: “se a gestão é temerária”.

229 Derecho penal. Parte general – tomo I. Fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. Trad. Diego- Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 404. 230 Direito penal: parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008, p. 112.

231

MÉNDEZ RODRÍGUEZ, Cristina. Los delitos de peligro y sus técnicas de tipificación. Madrid: Montano, 1993, p. 52 e ss.

232 O citado dispositivo assim preceitua: “Art. 250. Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa”.

233

SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 68.

Este tipo penal trata-se, sem dúvida, de crime de perigo concreto, jamais podendo ser considerado como sendo de perigo abstrato. O temor, vocábulo do qual deriva a adjetivação “temerária”, revela a exigência do perigo de forma concreta, vislumbrando-o sob o aspecto subjetivo. De modo que o perigo está contido no tipo do delito em questão, demonstrando que se trata de crime de perigo concreto. O perigo, repita-se, está presente no tipo, como reclama a doutrina para a configuração de crime de perigo concreto, e não se pode afirmar o contrário exclusivamente pelo fato de o vocábulo perigo não estar expresso, mas implícito na adjetivação “temerária”. O perigo não é só motivação, mas elemento do tipo234.

Em resumo, os crimes de perigo concreto caracterizam-se pela exigência de constatar-se o perigo caso a caso e têm em regra o perigo apontado no tipo penal. Em determinados casos, ainda que o perigo não esteja indicado no tipo de forma expressa e este seja impreciso, aberto, não poderá configurar crime de perigo abstrato. É dizer: ausente a taxatividade, dever-se-á, para adequar-se às exigências constitucionais, e para que a legitimidade não reste ferida, considerar a infração penal como sendo de perigo concreto235.

2.3.2 Crimes de perigo abstrato

Os crimes de perigo abstrato (também chamados de crimes de perigo presumido) são aqueles cujo perigo é ínsito na conduta e presumido, segundo a doutrina majoritária, juris

et de jure. Como se viu, os crimes de perigo concreto pressupõem a afirmação do perigo no

caso concreto a posteriori, enquanto os de perigo abstrato já o têm definido a priori236.

Esse perigo que deverá ser próprio da conduta, inerente a ela, deve, no momento da construção legal, ser calcado na experiência, no real. Miguel Reale Júnior assinala que na construção do modelo típico dos crimes de perigo abstrato o legislador, adstrito à realidade e à experiência, torna puníveis condutas que, necessariamente, atendida a natureza das coisas,

234

SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 69.

235 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 71.

236

COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em Direito Penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 620-621.

trazem ínsito um perigo ao bem objeto de tutela237.

Na doutrina italiana, em posicionamento minoritário, Ferrando Mantovani distingue os crimes de perigo abstrato dos crimes de perigo presumido. Para o penalista, nos primeiros o perigo é ínsito na conduta de acordo com a experiência, e o juiz apenas deve averiguar a adequação da conduta ao tipo. Nestes (de perigo presumido), o perigo não é ínsito na conduta, mas a lei presume juris et de jure, não admitindo prova em contrário238.

O autor afirma ainda que nos crimes de perigo abstrato não é possível controlar as condições que podem levar ao evento lesivo, enquanto noscrimes de perigo presumido há condições de controlá-las, e apresenta como exemplo o crime de passagem com semáforo vermelho, que subsistia ainda que a estrada de um cruzamento estivesse totalmente deserta239.

A idealização e a conceituação quanto à definição de perigo abstrato são de ordem distinta da verificada nos casos de perigo concreto, pois não é ele constatável materialmente como lesão ou perigo a um dado bem jurídico. Na realidade, observa-se que é pacífica a ausência de perigo no tipo, visto que, no perigo abstrato, não se menciona o perigo entre os elementos240.

Atualmente, a distinção entre perigo concreto e abstrato não se mostra mais de forma tão simples e clara. Flutuam os critérios de perigo frente às categorias. A rigor, é de se perceber que a produção deste é, antes de tudo, construção do legislador. Nota-se, entre eles, a ausência de resultado material de lesão ao bem jurídico. É, pois, evidente o conceito residual que transparece nos crimes de perigo abstrato. Sendo fruto de uma hipótese, ele somente existirá na mente do legislador, pouco restando, assim, ao juízo do magistrado241.

Nesse ponto se coloca a crítica. O crime de perigo abstrato tem características em particulares campos. Mais do que tudo, é substancial a verificação de que, ao contrário do que se observa nos casos concretos, é de se ver que aqui o perigo posto ao bem jurídico não aparece explicitamente no tipo penal. Ele irá se mostrar na consideração feita pelo legislador,

237 Problemas Penais Concretos. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 66. 238

Diritto penale - Parte generale. 6. ed., Padova: Cedam, 2009, p. 225.

239 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale - Parte generale. 6. ed., Padova: Cedam, 2009, p. 225.

240 MÉNDEZ RODRÍGUEZ, Cristina. Los delitos de peligro y sus técnicas de tipificación. Madrid: Montano, 1993, p. 41.

241

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 118.

o qual acaba por justificar, mediante lei, dada incriminação242.

De fato, a característica que tradicionalmente define os crimes de perigo abstrato reside, como se viu, na ausência de perigo no tipo. Este não menciona o perigo entre seus elementos, mas se limita a definir uma ação perigosa, pois entende que o surgimento do perigo se deduz da realização de uma ação com características243.

Nos crimes de perigo abstrato parece que há uma transação da decisão do perigo do juiz ao legislador. A presunção juris et de jure do perigo obriga o aplicador da lei a não considerar o caso fático, aplicando a lei in genere. É interessante, nesse sentido, a constatação de que, com a prova de um perigo atentatório a um bem jurídico, poderá ocorrer um verdadeiro desvirtuamento do crime de perigo abstrato, já que esta prova o converterá em um crime de perigo concreto (formalmente provado e comprovado)244.

A discussão acerca da legitimidade dos delitos de perigo abstrato será analisada em capítulo posterior.