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Há pouco mais de dez anos, vivi uma experiência conhecida por “areamento”. Trata-se de uma momentânea perda de referencia espacial a qual, assim se nomeia, por remeter a sensação de haver areia nos olhos. Areei durante uma caminhada pelas ruas da região central da cidade de São Paulo, o que

aparentemente é bem diferente de um deserto (local propício à lufadas nos olhos). Valendo-me do desconforto sentido e após retomar o prumo, realizei tanto uma série de trabalhos artísticos, quanto uma dissertação de mestrado, ambos sob o título “Imersa em um Monumento”1.

Contudo, após essas realizações, a imagem de um corpo em suspensão, flutuando no vazio, ocupou insistentemente meus pensamentos. Tal imagem, por sua vez, sabia decorrer das vias de abordagem feitas sobre o tal arear, sobretudo a partir de uma proposição de Michel Foucault acessada antes mesmo dessa experiência. Esclareço o acaso desse acontecimento, dado ao pesquisar complexidades urbanísticas na área de geografia (Tronca, 1987, p.127), pois foi assim que cheguei ao prefácio do livro “As palavras e as coisas”, no qual Foucault lança sugere a imagem do “heteróclito”:

“(...) há desordem pior que aquela do incongruente e da aproximação do que não convém; seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito; e importa entender esta palavra no sentido mais próximo de sua etimologia: as coisas aí estão “deitadas”, “colocadas”, “dispostas” em lugares a tal ponto diferentes, que é impossível encontrar-lhes um espaço de acolhimento, definir por baixo de umas e outras um lugar-comum (Foucault, 1995, p.7)”.

1“Imersa em um Monumento”, dissertação de mestrado, Programa de Comunicação e Semótica da PUC-

processar artístico, por sua vez, o mais interessante residia no fato desse lugar sem gramática encadeadora de um sentido, uma inteligibilidade. Na aparente desordem desse lugar, no transitar das instabilidades da ausência de forças atrativas ou repulsivas, ou seja, das condicionantes da nossa paisagem

espaço-temporal, mesmo assim, nesse lugar, apreendia a emergência de outra possibilidade.

Atrelada a minha experiência de perda de referencia no espaço urbano, a partir dessa idéia, pensei a flutuação como a sensação corpórea pela qual lidamos com as coisas do mundo e como que, despregados de nossa dependência a mais enfática das forças da natureza, a que mais exige de nós, a que nos define, e da qual tudo no universo se sustenta: a força gravitacional. E a dimensão que este questionamento-sensação tomou na minha vida foi bem maior do que pude imaginar.

Já um tanto incomodada com tais indagações, e preocupada com os efeitos das suas possíveis cristalizações, resolvi me lançar em outra empreitada investigativa pondo e aquelas palavras em movimento a partir das seguintes questões:

1. Quais são as sensações enquanto se flutua?

2. Como o corpo se relaciona com as coisas enquanto flutua? 3. Há algo que me leva a flutuar sem flutuação?

Logo entendi precisar experimentar o flutuar para encontrar respostas, e o meio para tanto, evidentemente, sendo através das minhas atividades artísticas. Aqui, abro um parêntese para dizer que venho mantendo atreladas as

atividades de pesquisa teórica e prática artística. Ainda que se desenvolvam independentes (o que é próprio aos seus processos e estruturas de

38 realizações), entre ambas existe um continuo diálogo, que por sua vez, é o modo como constituo proposições, seja relatando experiências, seja buscando um discernimento sobre conceitos, noções e idéias que são forças agindo em mim através das minhas ações.

Após um tempo de elucubrações, descobri que havia um lugar onde a experiência da flutuação ocorre sem ser preciso simular o vazio do espaço sideral. Este lugar, de fácil acesso (assim me pareceu quando o descobri), se situa no campo do esporte por meio de práticas esportivas radicais. O termo “radical”, inclusive, é a distinção feita das práticas esportivas quando focadas em desafiar à força gravitacional. Ao descobrir este lugar de experiência, logo inventei um projeto artístico de performances em práticas esportivas radicais. De nome “Os Riscos de E.V.A. – Experimentos em Vôos Artísticos”, este projeto ocorre ao longo do triênio 2003 – 2004 – 2005. O que vivo neste período, somente agora me leva admitir: quão ingênuas foram minhas

expectativas iniciais! Elas buscavam encerrar questões, que mesmo antes eu tendo intuído serem sensações próprias do nosso cotidiano, de repente, como que querendo simplificar a complexidade, formulei perguntas acreditando responde-las de pronto - bastaria para tanto apenas algumas experiências... Ora! Não há esta experiência que se encerre nela mesma, de modo que antes do surgir de respostas, ocorre sim o proliferar de outras questões.

Através de Os riscos de E.V.A. faço um intenso mergulho em práticas do corpo próprias da nossa atualidade. Os questionamentos surgidos em seu processar, hoje, anos depois desses experimentos, ainda alimentam boa parte do

conteúdo discursivo da presente tese. Não que tenham desaparecido as

indagações sobre o flutuar, antes elas se constituíram enquanto um lugar onde vez ou outra retorno e organizo a minha pesquisa. Tal como faço agora, para sucintamente expor a seqüências dos principais acontecimentos que

atravessam esses esforços de escritura.

Um acidente enquanto realizo uma das performances, me impede de continuar a investigação em práticas esportivas radicais. Isto, a princípio, me provoca um colapso: quando ocorre, estou tão envolvida com um universo de situações

longo do seu processar, outro olhar lanço sobre mim, bem como, outro enfoque ao meu entorno. E mesmo dentro da experiência, apreendo o que se passa enquanto efeito da intensa preparação de corpo à qual me submeto para praticar esportes radicais.

Lembro que em 2005, após o acidente, percebo chegar o momento de realizar outros estudos e escrever uma tese sobre essas experiências. Porém, guiada pela intuição, opto por realizar outro projeto artístico em busca de ampliar o campo da investigação. Também assim faço, pois por recomendação médica, encerro meus esforços radicais; de modo que, escolho me lançar em nova experiência estética através de outros esforços atléticos.

Por viver em uma cidade atravessada por águas (Recife), não foi difícil

perceber onde a partir de então flutuar. E no mês de agosto de 2006, me lanço ao aprendizado do remo enquanto operação artística atlética, o que se

transforma no projeto Plus ultra.

Acordar. Invento isso para ficar aqui nesse ir e voltar. Muitos outros fazem

assim, e o tempo inteiro; isto se houver esse inteiro, pois também para muitos outros, as coisas são como essa flecha à cruzar o espaço, e sempre apontada prá lá, sempre na metade do eminente fim, de modo a não voltar. Contudo, vez ou outra, enquanto volto, atravesso um “marco zero” de onde vejo o quanto uma flecha voa circular. Noite passada, sonhei o pesadelo que já sonho por dez anos; e ainda que ocorra num corpo sem a mesma força para espremer espumas (de travesseiros impregnados por cheiros em dobras bordadas por meus cabelos que crescem e caem), nele tudo aparenta o mesmo. Mas esse pesadelo sempre insere um crivo na sua inexorável passagem: uma brisa fria no meu joelho direito, que se estende até a altura da cintura, me levando a perceber que tudo acontece. Ao que me acordo e leio o que a flecha risca em sua passagem: “vou cruzar vôo até outro pesadelo e lhe lembrar da gravidade que atua sobre sua humana estrutura”.

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Treinar. Corpo moído; sinto uma forte e uniforme dor, e

também, o prazer da exaustão. Hoje não posso fazer mais nada. Dia longo, efeito de uma lenta hora vivida num barco- escola: um simulador de movimentos de remar. É nesse lugar que remo agora, dentro de um tanque, ou melhor, um buraco no chão rodeado de espelhos. Que lugar! Remar com horizontes inversos, com um horizonte que sou eu ou o meu reflexo. O espelho me ensina a tecnicidade de um corpo que precisa desempenhar elegância e controle de si (o espelho é enorme e intimida). Tento me concentrar nos braços, meus cabos de força. A timidez desaparece aos poucos com o entusiasmo que o esforço físico causa. A repetição do movimento traz uma hipnose vertical, impedindo o mergulhar no campo horizontal - campo do risco e das múltiplas possibilidades. Estranho pensar que num barco aprendo a objetivar; é que por momentos esqueço que estou em um barco-escola, e treino. E o aprendizado se faz, tanto pela visão de meu corpo a riscar o espaço, quanto pela escuta de suas extensões rasgando estagnadas águas. Aqui, o jogo é simulação.

Inesperadamente, o barco-escola se torna um instrumento importante à captação de imagens ao longo do projeto. Nos clubes mais equipados que passo, é nele onde regulo a principal câmera no capacete do remador companheiro de barco. Assim garanto o registro do movimento, da

paisagem, da relação corpo-ambiente que busco apreender enquanto remo. Só me dou conta disso, ao encarar o grande espelho a nossa frente.

Croquis com esquema de local onde treinei no mês de abril de 2009: barco-escola/tanque no Centro de práticas esportivas da USP (Cepeusp). Nas fotografias: barco-escola no Grêmio Náutico União – Porto Alegre, RS.

44 SERÁ QUE POSSO FAZER ISSO?

Minhas costas estão ardendo, minhas pernas estão tremendo. E aumenta minha vontade de gargalhar. Meus braços estão fortes, o que já não surpreende.

Esqueci de relatar a solidão vivida no barco-aula. Como é possível uma fala nisso?

Em que criatura me fiz! Esquartejada; de unhas vermelhas. Será que alguém nota? Nota que sou um barco?

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