• Nenhum resultado encontrado

As Visões de escola nos enunciados de familiares do Senhor Valdir

5 O QUE A ESCOLA SIGNIFICA PARA OS CIGANOS DO ACAMPAMENTO

5.1 Enunciações de ciganos do Acampamento Sol acerca da escola

5.1.5 As Visões de escola nos enunciados de familiares do Senhor Valdir

Acampamento Sol nos direcionam a três apontamentos: 1) os significados por eles atribuídos ao estudo estão diretamente relacionados à instituição escolar; 2) as mudanças em sua organização social propiciaram a ressignificação da escola; 3) a escola é por eles destacada como espaço de aprendizado da leitura e da escrita.

Relação entre estudo e a instituição escolar

O desejo de conhecer o significado de escola para esse grupo surgiu no momento em que verbalizaram o interesse em frequentar esse espaço; portanto, é da instituição escolar que tratam. Ao longo do processo de desenvolvimento da pesquisa, os depoimentos, os atos, os eventos foram sinalizando a imbricação desse interesse com a ideia de que o estudo só poderia se efetivar na escola. Foi nesse contexto que cada um dos participantes da pesquisa a significou.

É importante ressaltar que o interesse em estudar na escola, ainda que por motivos diferenciados, não significa que os sujeitos tenham uma compreensão mais nítida de como esse espaço se organiza, das exigências que lhes serão colocadas na medida em que se tornarem alunos e das implicações que o acesso aos conhecimentos transmitidos pela escola podem ter em sua vida como ciganos. Afinal, muitos adultos não frequentaram a escola. Daí a necessidade de uma escola flexível, que escolha formas maleáveis para apresentar seus conteúdos, de modo que estes possam ser contextualizados nas experiências prévias que seus alunos e alunas carregam.

No caso específico da família de Luciana, é importante ressaltar que as visões que apresentam acerca da escola são atravessadas pelos processos

educativos vivenciados por seus filhos34, Dandara e Yago. No caso do menino, tivemos a oportunidade, no estudo do curso de mestrado, de acompanhar várias situações de conflito, tensões e enfrentamentos, o fluxo cambiável de sentimentos que perpassou sua condição de estudante: quando mais novo, na alfabetização, muitas dificuldades no aprendizado, permeadas por considerações discriminatórias verbalizadas pela docente, muitos julgamentos pela coordenação pedagógica e diretoria aos pais, sobre sua condição de “preguiçoso, desatento, distraído”. Em casa, uma postura de cobrança em relação aos estudos por parte dos pais, principalmente da mãe, que temia pelo futuro do menino.

Assumindo a descrença imposta pelo estigma, Luciana acreditava que o fato de os filhos serem ciganos já impunha algumas preconcepções em relação a eles, no espaço escolar: irem sujos para a escola, pedirem ou roubarem material dos colegas, não gostarem de trabalhar e, portanto, não vislumbrarem objetivo no estudo, não se dedicando a ele, entre outros. Por esse motivo, sua postura e suas falas com Yago explicitavam sua busca por rupturas nesse padrão. Preocupava-se com as roupas, deixando-as sempre limpas e bem passadas, e orientava a conduta do filho caso achasse ou perdesse algum objeto; indicava que tivesse respeito com a professora, devendo nunca a desacatar, sob nenhum argumento; cobrava dedicação ao estudo; dizia-lhe que tivesse gratidão pela oportunidade de ir à escola – condição que o nomadismo não lhes permitia, sendo inclusive um dos argumentos para a recusa de matrícula por parte de muitas escolas.

Goffman (1963) alerta sobre as manipulações oriundas do processo de estigmatização: os estigmatizados podem se valer do estigma para conseguir “ganhos secundários”35, usando sua diferença como desculpa para seus fracassos. Não parece ser o caso dos ciganos. As ressignificações acerca dos estigmas a‒ título de exemplo, a transformação do já mencionado dilema da expulsão em emblema de liberdade – indicam recriações e outras formas de lidar com a

34 Embora tenha frequentado a escola por curto período de tempo, quando criança, até o 3º ano

do ensino fundamental, Luciana o fez na condição de não cigana, fato que a eximia dos estigmas que atualmente lhe são atribuídos, por ter assumido a vida cigana e, portanto, se autodeclarando como tal.

35 Goffman (1963) cita como exemplo o caso de uma pessoa com lábio leporino que tem certas

regalias emocionais devido a sua condição. Muitas vezes, após ser operada e perder esse “cabide” no qual pendurava suas inseguranças, torna-se hipocondríaca, ansiosa, ou passa a exibir outra característica que a inscreva novamente no lugar anteriormente ocupado, ainda que este remeta a uma situação estigmatizadora.

estigmatização. A própria conduta do Sr. Valdir, ao negociar novos significados, intra e extragrupo, aponta outro posicionamento.

Ainda que as condutas de Luciana tenham indicado naquele momento uma aceitação resignada e submissa (BOURDIEU, 1989) dos rótulos impostos, atualmente, quando se trata de sua própria educação, suas falas e opiniões retratam uma busca por outras formas de relação com a escola, que subvertam essa condição. Em nenhum momento demonstrou preocupação com o aspecto higiênico de suas roupas ou com a conduta que deveria assumir como estudante. Suas falas expressam desejo de mais independência e autonomia na vida cotidiana, para viajar, ler, trabalhar, se relacionar com as pessoas, ciganas e não ciganas. Apropria-se da possibilidade de usufruir de um direito quando verbaliza suas aspirações, afinal os ciganos foram excluídos do acesso a bens simbólicos valorizados na sociedade – entre eles o conhecimento escolar – por muito tempo e agora, diante da oportunidade, exibem outros códigos junto a seu grupo.

Apesar de saber que, em suas trajetórias até o momento, a escola lhes tem sido negada, o acesso a ela, uma proibição constante, com base em justificativas sustentadas em premissas estigmatizadas como: “daqui a pouco se mudam de novo”, “vivem viajando”, “não gostam de estudar porque não trabalham”, entre outras –torna-se compreensível o interesse de parte dos ciganos adultos em “entrar na escola”, pisar seu chão, sentar em seus bancos. Frequentar a escola tem fortes implicações simbólicas, assim como a recusa, no caso de João (não quer aprender a ler e escrever ou não quer ir para a escola?), alicerçada em suas lembranças de uma das portas lhe sendo fechadas durante sua trajetória de andanças pelo mundo até a situação atual de fixação. Disso decorre, em meu entendimento, que o desejo de aprender a ler e escrever se traduz no “ir para a escola”, frequentá-la, ser recebido com respeito e dignidade. Estar lá parece significar mais do que estudar, embora queiram aprender a ler a bíblia ou as receitas de remédios. Nessa lógica ressaltamos, que a escola, ao receber os ciganos e quaisquer outros estudantes, não pode se apresentar como “[…] um mundo de conteúdos estranhos” (FREIRE, 1987, p.60). É relevante que a forma como organiza a transmissão dos conhecimentos que nela circulam seja significativa para os alunos. É importante que os ciganos saibam que ali é, sim, o seu lugar e que seus saberes sejam reconhecidos.

Mudanças na organização social e ressignificação da escola

Por outro lado, as mudanças em sua organização social também foram propiciando a ressignificação da própria escola, a partir das experiências vividas por meio dela. Entendemos que a externalização do interesse pela escola foi propiciada pelas mudanças atuais, principalmente a fixação. A sedentarização; a regularização de documentos básicos, como certidão de nascimento e de identidade e o fornecimento de um endereço fixo propiciaram a formação de vínculos com o entorno, desencadeando novas relações com os moradores locais, agora mais prolongadas e menos fortuitas. Com a ida dos filhos para a escola, as ressignificações começaram a emergir e essa instituição começou a fazer parte da vida dos sujeitos desta pesquisa.

Aprender a ler e escrever

Desta forma, as esposas não ciganas, que já haviam ido à escola quando crianças, passam a expressar o desejo de retomar os estudos e os ciganos adultos, homens e mulheres, que nunca a frequentaram, passam a considerar essa possibilidade como a concretização de uma aspiração: aprender a ler e escrever.

Assim, concebendo a alfabetização em sua dimensão ampliada, como Freire (1990), e compreendendo a Educação como aquela que ocorre em variados lugares (inclusive na escola), como nos sugere Brandão (1981), pulsa em nós um querer: uma escola comprometida com esses ciganos que desejam pisar seu chão, seja este cercado por tijolos ou por tecidos, e que ao fazê-lo possam ampliar suas possibilidades através da expansão do conhecimento e da criticidade que esta pode desencadear, alterando sua condição inferior na sociedade, dado que “[…] tanto o normal quanto o estigmatizado, não são pessoas, são perspectivas.” (GOFFMAN, 1963, p. 118).

5.2 A escola: entre a construção das paredes e a (re) elaboração dos