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2.1 Conceitos acerca da conservação e restauração do patrimônio cultural

2.1.8 Ascensão das convenções: início do século XX

O século XX foi marcado por uma evolução exponencial dos conceitos relativos ao patrimônio histórico. Os estudiosos do tema, antes conhecidos por teorizações individuais, passaram a se reunir e elaborar tratados com áreas de abrangência e conhecimentos técnicos mais amplos. Iniciou-se, assim, com a utilização da Carta de Restauro de Atenas (1931) como elemento demarcatório, uma longa etapa de convivência entre as teorizações individuais e as discussões coletivas em torno das chamadas cartas patrimoniais (CURY, 2000).

A Carta de Atenas foi o resultado de uma reunião internacional de técnicos realizada nessa mesma cidade, no referido ano de 1931, com o objetivo de discutir ações de preservação

e conservação do patrimônio histórico. O caráter plurinacional da reunião auxiliou na sua ampla divulgação por todo o mundo, garantindo também a absorção de seus princípios e aplicação, principalmente em edificações históricas. Entre os importantes postulados prescritos na carta, publicada pelo Escritório Internacional dos Museus e Sociedade das Nações (apud CURY, 2000), citam-se os seguintes:

[...] a conferência constatou que nos diversos Estados representados predomina uma tendência geral para abandonar as reconstituições integrais, evitando assim seus riscos [...] Nos casos em que uma restauração pareça indispensável devido a deterioração ou destruição, a conferência recomenda que se respeite a obra histórica e artística do passado, sem prejudicar o estilo de nenhuma época.

E ainda, no documento, é defendida a evolução e utilização dos monumentos históricos desde que desde “assegure a continuidade de sua vida, destinando-os sempre a finalidades que respeitem o seu caráter histórico ou artístico” (CURY, 2000, p. 13).

Contemporânea e entrelaçada à reunião de Atenas, de 1931, a área de abrangência italiana presenciou o desenvolvimento de uma nova conceituação de restauro. As idéias de Camilo Boito, já citadas, e os princípios do congresso de engenheiros e arquitetos italianos, de 1883, foram reestudados, aprimorados e defendidos por teóricos, entre os quais se destacou Gustavo Giovannoni. Essa tendência seria conhecida na Itália como Restauro Científico (KUHL, 1998).

A trajetória de Giovannoni na área do restauro foi ampla. Em 1910, foi empossado como presidente da Associazione artística fra i cultori di architettura (ASSOCIAZIONE ARTISTICA FRA I CULTORI D’ARCHITETTURA, 2001). Desde esse período, defendeu a significância da “arquitetura menor”, auxiliando na continuidade das malhas urbanas. Essa postura o levou, posteriormente, ao cargo de planejador de Roma. Também foi diretor da escola de arquitetura romana e ajudou na criação de uma faculdade independente de arquitetura, na qual ensinou restauração de monumentos históricos de 1935 a 1947. Seus estudos preconizavam o profundo exame das fontes de dados documentais, valorizando as bases críticas e científicas. Os princípios de intervenção baseavam-se, em primeiro lugar, em atuações de manutenção e consolidação, e, quando necessário, em atuações mais drásticas, distintas dos originais, com o intento de evitar falsificações, postura que se assemelha tanto aos postulados de Alberti quanto aos de Boito. Admitia o uso de materiais novos como forma de manter com mais propriedade a existência do monumento. Assim como Riegl, admitiu e defendeu a preservação das diversas etapas pelas quais um edifício passara, contemplando, desse modo, a linha cronológica da construção (JOKILEHTO, 1999).

Na Enciclopédia Italiana (v. 28, 1936), citada por Kühl (1998), Giovannoni classificou as restaurações da seguinte forma:

• restauros de consolidação: uso de técnicas avançadas para garantir a solidez a partes ou edificações ruinosas;

• restauros de recomposição: também chamada de anastilose, que permite a inserção de partes secundárias para garantir que outras, desprendidas do conjunto, sejam reagrupadas aos seus locais originais;

• restauros de liberação: retirada de partes amorfas, internas ou externas, conhecidamente sem valor, para retomar os valores latentes à edificação;

• restauros de completamento e renovação: proposição de partes novas ou acréscimos para reintegrar a obra ou torná-la útil novamente.

Os estudos realizados não se limitaram às edificações, mas também ao entorno e áreas urbanas. Os planos propostos para Roma consideravam a retirada de fluxos de veículos pesados de áreas centrais, bem como a retirada de edificações menos importantes em favor da salubridade das áreas mais valorizadas. Quanto a isso, afirma Jokilehto (1999, p. 220-221) que, “como resultado dessas operações, Roma adquiriu um aspecto moderno, mas com a manutenção do skyline histórico, evitando edifícios de grande altura”. O governo italiano foi tão influenciado pelos estudos de Giovannoni que solicitou a sua participação na elaboração da chamada Carta de Restauro, de 1932. Tal influência pode ser percebida na redação desse documento, no que tange a acréscimos que viessem a ser feitos em obras de restauração:

[...] que nos acréscimos que se considerem necessários, tanto como para garantir a consolidação, ou para atingir o objetivo de uma reintegração parcial ou total, ou para a utilização prática do monumento, o critério essencial que se deve seguir deve ser, além de limitar tais elementos novos ao mínimo possível, o de dar-lhes também um caráter de simplicidade nua e correspondência com o esquema construtivo; e que só possa se admitir um estilo similar a continuação [sic] de linhas existentes nos casos que se trate de expressões geométricas privadas de individualidade decorativa [...] (CONSEJO SUPERIOR DE ANTIGÜEDADES Y BELLAS ARTES, 1932, p. 2).

O período que se sucedeu, praticamente até o final de década de 1930, foi marcado pelas tentativas de afirmação dos postulados da Carta de Atenas e da Carta de Restauro italiana. Outros nomes que se destacaram na época foram Guglielmo De Angelis d’Ossat, que trabalhou para o Centro Internacional de Estudos da Preservação e Restauração de Bens Culturais (ICCROM), e Gino Chierici, que foi professor em Nápoles e Milão. Porém, no final dessa mesma década, a Segunda Guerra Mundial (1938-1945) provocou um grande revés nas políticas que viriam a ser adotadas no que tangia ao patrimônio e sua manutenção. Verificam-

se, então, prejuízos irrecuperáveis, principalmente à Europa ocidental, em relação à preservação do patrimônio histórico (PAZZINATO; SENISE, 1992).