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ASCENSÃO SOCIAL E RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL

Luciléia de Souza Baptista Mestranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Especialista em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).

Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:

lucileiadm17@gmail.com.

“Que um homem não te define Sua casa não te define

Sua carne não te define Você é seu próprio lar”

(Triste, Louca ou Má. Francisco, el Hombre)

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo fazer uma breve análise sobre as vivências de profissionais negras de nível superior que, para chegar a esse patamar, tiveram uma longa e difícil jornada que pode ser compreendida enquanto movimento histórico e dialético de estar no mundo. A reflexão coloca em evidência os obstáculos que foram superados na busca pela conquista do acesso à universidade que, durante muito tempo, lhes era negado devido às suas condições de subalternidade tanto de classe, quanto de raça. Trata-se de uma conquista que se deu, principalmente, com a implantação das políticas de Ações afirmativas, porém, ainda assim, há um contingente de mulheres negras que não conseguiram permanecer e concluir a graduação por falta de condições socioeconômicas para tal. Com isso, permanece a desigualdade econômica mesmo com a efetivação de políticas sociais ou com acesso de algumas delas ao diploma de certificação.

Palavras-chave: Classe; raça; ações afirmativas; ascensão social; subalternidade.

ABSTRACT

This article aims to make a brief analysis of the experiences of black professionals with higher education who, to reach this level, had a long and difficult journey that can be understood as a historical and dialectical movement of being in the world. The reflection highlights the obstacles that were overcome in the search for gaining access

to the university that, for a long time, was denied to them due to their conditions of subalternity both of class and race. This is an achievement that took place, mainly, with the implementation of Affirmative Action policies, however, even so, there is a contingent of black women who were unable to stay and complete their graduation due to lack of socioeconomic conditions to do so. As a result, economic inequality remains even with the implementation of social policies or with access of some of them to the college degree.

Keywords: Class; race; affirmative actions; social ascension; subalternity.

INTRODUÇÃO

O fazer profissional provoca a percepção de elementos que extrapolam o campo teórico, despertando o desejo de aprofundar reflexões baseadas na vivência de campo. Essas experiências despertaram o interesse de pesquisar e analisar, com base na literatura científica, a inserção de mulheres negras na academia, suas múltiplas funções subalternizadas no decorrer da sua vida e os desafios pela superação que marcaram esse processo, sobretudo, pela existência de limites que são impostos pela cultura, por ser esta patriarcal, classista e racista. A relação mulher versus trabalho é cercada por fatores políticos, econômicos, culturais e sociais que influenciam diretamente na posição social e profissional dessas mulheres. O mercado de trabalho é espaço privilegiado das dificuldades por elas enfrentadas, pois, nele, conseguimos perceber as desigualdades que são reproduzidas na sociedade.

Deslocando-se entre espaços privados e públicos, sua figura se confunde com a imagem da chamada “mulata”, da empregada doméstica e das babás, recriações diferenciadas das escravizadas, das mucamas e criadas, das amas-de-leite e das mães pretas conforme problematiza Lélia Gonzalez (1984), todas são ícones que representam limites, barreiras móveis e mutantes, porém não inexistentes:

Ao reduzir o escravo à condição de “coisa” e negar-lhe toda e qualquer subjetividade, a escravidão constrói-se sobre a base da indiferenciação dos indivíduos a ela submetidos. A disposição fisiológica que capacita a mulher a desempenhar o papel central na procriação, por sua vez, vistas as características de um regime que não reproduzia sua população escrava, não parece ter-se transformado, como em outras sociedades, em base material de funções sociais particulares. Em outras palavras, tudo indicaria a inexistência de uma “condição da mulher escrava”, particularizada seja frente à “condição do escravo em geral”, em um nível, seja frente à condição da mulher em geral, em outro nível (GIACOMINI, 1988 apud RATTS, 2015: 4).

Essa problematização destacada por Gonzalez (1984) permite refletir sobre a maneira como os modos de produção escravagista no Brasil, iniciados no século XVII transformaram os corpos indígenas e, posteriormente, africanos apenas em objetos de exploração de compra e venda. As mulheres africanas eram estupradas desde os navios negreiros e seus filhos, frutos de tal violência, eram apenas mais uma mercadoria sendo perpetuada por séculos. Essa desumanização, justificada por cientistas e pela religião para manter a economia na época, atravessa o processo histórico-econômico-social do lugar que as mulheres afro-brasileiras ocupam nesta sociedade. São muitas as barreiras às quais elas se encontram submetidas e enfrentam para a manutenção da sua sobrevivência.

Em relação às barreiras econômicas, as principais pesquisas no país, apontam que as mulheres recebem menos que os homens. Um homem negro ganha 40% a mais que uma mulher negra. Se comparada a uma mulher branca, essa diferença aumenta: uma mulher branca ganha 70% a mais que uma mulher negra. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA (2014), com base no Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), os homens continuam ganhando mais do que as mulheres (em média, R$ 1.831, contra R$ 1.288, em 2014), e os homens brancos ganham ainda mais do que todas as outras categorias (R$ 2.393, em 2014). As mulheres negras seguem na base, com renda de R$ 946,00 no mesmo ano, além de o trabalho doméstico continuar sendo um dos líderes entre os postos ocupados por mulheres, concentrando 14% da população feminina, ou 5,9 milhões.

Com base em dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD do ano de 1999, o economista Ricardo Henriques, então no IPEA, chegava à conclusão de que, no Brasil, pobreza e indigência têm cor, considerando a seguinte constatação:

Os negros, em 1999, representam 45% da população brasileira, mas correspondem a 64% da população pobre e 69% da população indigente. Assim, além do inaceitável padrão da pobreza no país, constatamos a enorme sobrerepresentação da pobreza entre os negros brasileiros. E esse excesso de pobreza concentrado entre a comunidade negra mantém-se estável ao longo do tempo, em particular na última década (HENRIQUES, 2001: 10).

Os resultados deste estudo também apontavam uma perversa e persistente desigualdade racial no campo da Educação:

De fato, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos [...]. A intensidade dessa discriminação racial [...] é extremamente alta, sobretudo se lembramos que se trata de 2,3 anos de diferença em uma sociedade cuja escolaridade média dos adultos gira em torno de 6 anos. Embora intensa, não é esse o componente mais incômodo na discriminação observada. Em termos do projeto de sociedade que o país está construindo, o mais inquietante é a evolução histórica e a tendência de longo prazo dessa discriminação.

Sabemos que a escolaridade média dos brancos e dos negros tem aumentado de forma contínua ao longo do século XX. Contudo, um jovem branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da mesma idade, e essa intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos pais desses jovens – a mesma observada entre seus avós, [...]. Ou seja, a inércia do padrão de discriminação racial observado em nossa sociedade. (HENRIQUES, 2001: 26-27).

Ainda na área da Educação, estudos recentes realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), com base no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), revelam que o desempenho dos alunos negros é inferior ao dos seus colegas brancos. Para o diretor de Avaliação Básica desse Instituto, Henrique Araújo, esse cruzamento de dados “mostra que o preconceito influencia no desempenho do aluno”. No entender desse pesquisador, em decorrência de um “racismo difuso”, em que pessoas negras “são sistematicamente expulsos do sistema de ensino”, o que se reflete na queda do percentual de alunos afro-brasileiros à medida que se sobe na pirâmide escolar.

Essa contradição se agrava quando observamos os indicadores por gênero, uma vez que as mulheres negras são maioria. Mesmo na sociedade atual, com o avanço da tecnologia e o maior respeito à efetivação de direitos e vivência da cidadania, a situação das mulheres negras ainda precisa alcançar mudanças significativas, pois, na sociedade de classes, como trabalhadoras assalariadas ou não, elas se deparam, ainda, com inúmeras barreiras sociais impostas pela manutenção das históricas desigualdades socio raciais.

A questão do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira pode ser observada através do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) desagregado pela cor, que aponta que a população negra está em uma posição de desvantagem em termos de rendimento médio familiar per capita, expectativa de vida, taxas de escolaridade e de alfabetização de adultos. Os dados mais recentes do Relatório de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil e os estudos e pesquisas de

informação demográfica e socioeconômica do IBGE (2018) apontam que, no tocante à pobreza monetária, a proporção de pessoas pretas ou pardas com rendimento inferior às linhas de pobreza propostas pelo Banco Mundial foi maior que o dobro da proporção verificada entre as brancas.

No entanto, entre 2016 e 2018, na população preta ou parda, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade baixou de 9,8% para 9,1%, e a proporção de pessoas de 25 anos ou mais de idade com pelo menos o ensino médio completo se ampliou de 37,3% para 40,3%. Também na área da Educação, os estudos realizados pelo IPEA em 2020 apresentam um crescimento de 25% da população negra nas universidades entre 2009 e 2015, em comparação com a presença total da população que é de 5%. Esses dados demonstram os avanços em relação ao Índice de Inclusão Racial (IRR), resultado das políticas de ações afirmativas, frutos de uma longa luta dos movimentos sociais – em especial, o Movimento Negro –, mediante alianças políticas e institucionais que criaram laços e canais de diálogo entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro, sem esquecer a teia de personalidades e responsáveis por instituições privadas nacionais e estrangeiras que apoiaram esse movimento social.

É com a emergência do Movimento Negro no fim dos anos 1970 – e, sobretudo, com o advento das políticas públicas de ação afirmativa no início do século XXI – que o tema das relações raciais começou a ganhar mais espaço no campo universitário, assim como proliferar como assunto na mídia eletrônica, na imprensa (mídia escrita) e nos debates das redes sociais da internet. A partir de 1997, as denúncias do Movimento Negro, concernentes às disparidades raciais, despertam maior atenção do Governo Federal que, pela primeira vez, toma a iniciativa de realizar estudos com o objetivo de detectar e dimensionar quantitativamente o problema. As pesquisas realizadas pelo IPEA comprovaram a existência e persistência de desigualdades socioeconômicas em detrimento dos afrodescendentes, oferecendo um esboço estatístico científico do real painel racial brasileiro. Paradoxalmente, nesta segunda década do século XXI, pode-se notar que a noção de racismo, no Brasil, tem se transformado quase em uma banalização ao observar que o termo tem sido usado sem muito rigor conceitual pela sociedade em geral, inclusive no próprio campo militante da luta contra o racismo. Esta consideração, a meu ver, faz-se necessária ainda que breve, tendo em vista que no meio acadêmico, chega-se, às vezes, a

confundir noções básicas, tais como racismo institucional e racismo estrutural, nas tentativas de se caracterizar ou justificar a permanência do racismo no Brasil.

Em uma perspectiva epistemológica, parece fundamental, segundo Jacques d’Adesky, distinguir claramente o que é racismo estrutural e o que é racismo institucional. No que diz respeito ao racismo estrutural, há evidências sociais de que a dinâmica relativa ao racismo vigente na sociedade brasileira alimenta e realimenta o racismo em uma perspectiva que pode ser combatida mediante políticas públicas tais como medidas de ação afirmativa na Educação Superior, no mercado de trabalho, na função pública etc. Ao contrário, quando se remete ao racismo institucional, há de se sublinhar que faz referências explícitas ou implícitas às leis e normas jurídicas. Além disso, essa noção de “racismo institucional” tem base conceitual relacionada às práticas do Jim Crow, nos Estados Unidos, do Apartheid da África do Sul, assim como às leis nazistas de Nuremberg, na Alemanha (d’ADESKY, 2022: p. 176).

Nos anos 1990, a enunciação da expressão “racismo institucional” emerge no discurso antirracista militante na Grã-Bretanha, como também começou a ser usada como ferramenta por especialistas de Ciências Sociais. Nos dias de hoje, segundo d’Adesky, (2022) a noção é usada, geralmente, no sentido de uma evidência. Entretanto, diante da crítica epistemológica, ela parece vaga e pouco fecunda diante da realidade observável. Em outras palavras, se o modelo do racismo institucional se articula em uma perspectiva científica tanto descritiva quanto explicativa, este, como escrito acima, tem sido construído em referência a determinadas especificidades da sociedade norte-americana e da Grã-Bretanha, não sendo necessariamente transponível diretamente para outras sociedades com o fim de descrever ou explicar procedimentos legais de exclusão ou discriminação baseados na “raça”. (d’ADESKY, 2020: p. 185).

Sem dúvida, destaca d’Adesky (2022), o modelo abrangente de racismo institucional pode alimentar e inspirar uma reflexão rigorosa sobre problemas específicos encontrados no Brasil. Há de sublinhar, contudo, que essa noção abrangente é, às vezes, empregada como um modelo global explicativo do racismo que vem atribuindo às instituições da sociedade a responsabilidade dos fenômenos de discriminação racial, assim como chega a considerá-las (as instituições) como o motor causal do racismo, o que acaba por gerar uma perspectiva analítica que tende a colocar entre parênteses a natureza do ser humano, assim como suas disposições ao egocentrismo, ao ódio, ao desdém, ao medo do outro etc.

Destarte, sugere d’Adesky (2022), podemos nos perguntar: em que medida a noção de racismo institucional é verdadeiramente operacional no Brasil? Será que é mesmo possível, diante da realidade do fenômeno do racismo brasileiro, realizar uma simples operação de abdução a partir da descrição da realidade local norte-americana denunciada por Stokely Carmichael, bem como usar a afirmação da Comissão de Igualdade Racial da Grã-Bretanha de que tal racismo “pode ser detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação por meio de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam determinados grupos raciais/étnicos”? (d’ADESKY, 2022).

Provavelmente, essa descrição do racismo institucional apontada na América do Norte, assim como a afirmação acima da Comissão de Igualdade Racial da Grã-Bretanha, é ainda insuficiente para sugerir que existiriam fortes semelhanças com o racismo e discriminação racial que ocorrem no Brasil. Para que haja plena eficácia de uma operação de abdução – que designa um procedimento mental de formulação de hipóteses nas quais uma explicação que é válida em um determinado contexto (EUA e Grã-Bretanha), e que seja usada como possível explicação em um outro contexto (Brasil) – considera-se necessário que a transferência analógica seja balizada por estudos aprofundados e comparativos da realidade vigente nos três países.

Assim, do ponto de vista teórico, d’Adesky (2022) sublinha que este tipo de estudos comparativos, talvez, pudesse se enquadrar, por exemplo, na formulação de um modelo weberiano de tipo ideal. Com base nessa análise, temos a forte intuição, no caso brasileiro, da existência evidente de um racismo estrutural e não institucional.

Efetivamente, para esta reflexão, consideramos que o racismo estrutural permeia a sociedade brasileira mediante a observação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) desagregado pela cor, que aponta que a população negra está em uma posição de desvantagem em termos de rendimento médio familiar per capita, expectativa de vida, taxas de escolaridade e de alfabetização de adultos. Além disso, há de se acrescentar que o atual uso e a descrição abrangente do racismo institucional não correspondem no âmbito epistemológico, às noções de verdade correspondência ou de verdade coerência diante de fenômenos sociais observáveis (LÉONHARDT, 2009). No máximo, pode se sustentar na noção de “verdade consenso” através de uma perspectiva ideológica e política, o que pode levar, no campo da epistemologia, a um alto grau de refutação.

Ao considerar o “racismo estrutural” como elementos de sustentação deste trabalho, parece importante complementá-lo com base na abordagem intersubjetiva do racismo cotidiano formulado pela psicóloga e psicanalista Grada Kilomba (2019). Nessa ótica, Kilomba sublinha, o racismo cotidiano desvela uma situação de atemporalidade, quando a pessoa negra é ofendida no presente, como se estivesse no passado colonial.

A atemporalidade descreve, segundo ela, o passado coexistindo com o presente e, por outro lado, descreve como o presente coexiste com o passado (KILOMBA, 2019: 224).

A sua interpretação intersubjetiva parece muito mais adequada para explicar a permanência do racismo e preconceito racial nas sociedades ocidentais a despeito da abolição da escravatura e da descolonização. Ainda nos termos de Grada Kilomba, o preconceito e a discriminação racial dizem respeito à sociedade na sua totalidade.

Portanto, acrescento, no contexto desta reflexão, que esses funcionamentos atingem, também, pelo universo educacional, nosso principal campo de análise no contexto aqui problematizado não ser uma ilha.

MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS E POLÍTICAS AFIRMATIVAS NAEDUCAÇÃO

O processo de institucionalização da Educação no Brasil ocorreu lentamente e de forma excludente. Desde o período colonial até nossos dias, em pleno século XXI, ainda presenciamos o preconceito racial nas instituições de ensino. Ouvimos queixas dos nossos filhos, compartilhamos dos seus sofrimentos e das suas inquietações.

Essa realidade é muito cruel, porque observamos e vivenciamos o racismo estrutural que continua permeando as instituições que deveriam acolher, proteger e educar a população. Contudo, não podemos jamais ignorar o processo de resistência e luta dos que contribuíram ativamente com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Para alcançar concretamente essa sociedade, entendemos que as crianças, principalmente as crianças negras, devem ser educadas para que compreendam que pertencemos todos à mesma humanidade; devem ser fortalecidas, de modo que não se fragilizem diante das discriminações e preconceitos existentes na sociedade; devem entender que a cor da sua pele e seu cabelo são características genéticas que não significam um determinismo de fragilidade intelectual ou moral.

Independentemente dos fenótipos, todos são agentes transformadores de sua própria

história. Daí emerge o lugar e o papel fundamentais do espaço escolar como argumenta Nilma Lino Gomes (2002):

Por isso, a escola brasileira tem que se haver com o processo histórico do racismo, com as práticas de discriminação racial, com o preconceito, com a constituição e propagação do mito da democracia racial e com a inculcação da ideologia do branqueamento. E ter que se haver com tudo isso implica posicionar-se politicamente – e não só ideologicamente – contra processos excludentes. Implica construir novas práticas pedagógicas, novos materiais didáticos, abrir debates, estabelecer diálogo com a comunidade negra, com o movimento negro, com os grupos culturais de tradição africana. Talvez assim possamos conhecer o que os negros pensam sobre a escola e, para isso, não há outra saída senão tomar o negro como sujeito e tentar compreender como ele pensa a educação e a cultura nos seus próprios termos e não a partir de impressões ou especulações alheias (GOMES, 2002: 24).

Em diálogo com o pensamento de Gomes, é possível perceber que, em 2001, as primeiras políticas de ações afirmativas foram tomadas pelo Governo brasileiro, no sentido de promover um melhor acesso de negras e negros às universidades e faculdades do país. Em 2002, além da multiplicação de organismos regionais e federais de promoção da igualdade racial, foram sedimentadas as bases para a promulgação da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece o ensino obrigatório da história africana e dos afro-brasileiros no currículo das escolas primárias e secundárias. Essas medidas de políticas públicas são avanços resultantes da persistente ação pragmática do Movimento Negro. Superando o ostracismo imposto pela mídia, o Movimento conseguiu ser ouvido e reconhecido nas reivindicações.

No universo da Educação Superior, surgiram, a partir do ano 2000, legislações para a promoção da diversidade. Em 2002, foi implementada a primeira lei de incentivo às ações afirmativas nas Universidades Públicas – Lei 10.558/2002, criando o

“Programa Diversidade na Universidade” (PDU) –, que tinha como objetivo a promoção do acesso das populações negra e indígena (PLANALTO, 2002). No ano de 2003, foi regulamentada a Lei 10.639/2003, que passa a incluir, no currículo escolar, os conhecimentos sobre a história e cultura afro-brasileira. Assim, os conteúdos da História da África e seus povos, a cultura negra brasileira, a luta dos negros no Brasil e o negro na formação da sociedade brasileira passam a ser temas obrigatórios (PLANALTO, 2003). No mesmo ano, em 2003, é constituída a “Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial” (PNPIR), com o propósito de reduzir as desigualdades raciais, fazendo valer os direitos e as ações afirmativas nas questões

de raça e gênero (JUSBRASIL, 2003).

Em 2009, foi aprovado o decreto que diz respeito ao “Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial” (PLANAPIR), atuante nos eixos da educação, cultura, diversidade, trabalho e segurança pública (BRASIL, 2009). A Lei federal 12.711, aprovada em 2012, estabeleceu que as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação (MEC) devem destinar em cada processo seletivo 50% das vagas aos estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas (BRASIL, 2012).

Convém salientar que tais medidas acabaram se concretizando mediante alianças políticas e institucionais nem sempre claras, que criaram laços e canais de diálogo entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro, sem esquecer a teia de personalidades e responsáveis por instituições privadas nacionais e estrangeiras que apoiaram esse movimento social.

Embora as ações afirmativas tenham garantido a inclusão de centenas de mulheres negras à universidade, gerando um impacto social no país, ainda assim há um contingente de mulheres negras que não conseguiram permanecer e concluir a graduação e permanece a desigualdade econômica mesmo com o diploma de certificação. As barreiras invisíveis como o racismo afetam o psiquismo em muitas dessas mulheres pela violência simbólica a qual são submetidas e que ainda persistem em seu cotidiano. Com vinte anos da implementação da Lei das Cotas (Lei no 12.711/2012), que prevê o ingresso de pelo menos 50% de negros, pardos e indígenas nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), ainda há um balanço e pesquisas que apresentam dados de inclusão de mulheres negras nas universidades e sobre quais os impactos do ensino superior em suas vidas. Será que as políticas de Ações afirmativas foram suficientes para as mulheres negras? Quais as dificuldades e desafios impostos? E quais estratégias para enfrentá-las?

MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS, EDUCAÇÃO E TRABALHO

No decorrer da prática profissional desenvolvida ao longo dos anos, através dos atendimentos realizados nos programas sociais, pesquisas e projetos, foi possível identificar um perfil bastante relevante de mulheres negras, os quais se organizam em duas categorias com base na prevalência: a) provedoras de suas famílias, mães solteiras que deixaram seus sonhos em prol dos seus filhos; b) mulheres negras

profissionais com Ensino Superior. Entendo que todas elas tiveram uma longa e difícil jornada que pode ser aqui analisada e compreendida enquanto movimento histórico e dialético de estar no mundo. Isso porque, historicamente, as mulheres negras são a parcela mais pobre da sociedade brasileira e, consequentemente, são desprovidas de direitos fundamentais como habitação, saúde, alimentação, educação e emprego. São essas mulheres as mais vulneráveis a toda forma de violência.

Angela Davis (2018) e Sueli Carneiro (2011) reconhecem que as desigualdades estruturais de gênero se interseccionam com as desigualdades de classe e raça. A

“interseccionalidade” compreendida aqui como um conjunto de ideias e práticas que sustentam que gênero, raça, classe, sexualidade, idade, etnia, status de cidadania e outros marcadores não podem ser compreendidos de forma isolada, sendo que estes articulam dinâmicas de poder que produzem realidades materiais desiguais e experiências sociais distintas coletiva e individualmente. Nesse sentido, essas múltiplas articulações não somente apontam a existência de desigualdades históricas e sociais na vida das mulheres, em particular das mulheres negras, mas de relações de poderes em detrimento dessas últimas (GELEDES, 2019). É essencial que se utilize essa perspectiva, tendo em vista que nas palavras de Crenshaw (1989: 140):

“como a experiência interseccional é mais complexa que a soma de racismo e sexismo, qualquer análise que não leve a interseccionalidade em consideração não pode abordar suficientemente bem a maneira particular pela qual as mulheres Negras são subordinadas”.

O pensamento de Angela Davis (2016) nos coloca, enquanto mulheres, principalmente negras, como agentes transformadoras da nossa própria história. As mulheres embora tenham participação ativa em todo processo histórico das sociedades, elas sempre foram invisibilizadas, apagadas como se nunca existissem.

A luta organizada para conquistarem seus direitos e romperem com a opressão de gênero como, por exemplo, a conquista pelo sufrágio universal, pela participação na política, na economia e pela própria autonomia de fazer suas próprias escolhas como direitos reprodutivos e sexuais. Um processo histórico árduo de combate sem tréguas contra o machismo, o sexismo e a opressão de classe.

Angela (2016) discorre em sua obra Mulheres, raça e classe que essas opressões as quais as mulheres negras enfrentam e são atravessadas de um modo que inviabiliza uma análise específica. Quando introduzimos a variável “raça/cor”, observamos que a violência é ainda maior, pois as mulheres negras são as mais

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