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PARTE II. A LEI DO FEMINICÍDIO

2.1 A teoria feminista aplicada ao Brasil

2.1.2 Asking the Woman Question no Brasil

A análise da exclusão da realidade feminina em normas positivadas pode ser observada em outros dispositivos brasileiros. Para tal, podemos utilizar o método asking the woman question apresentado anteriormente, partindo de um ponto de vista crítico a respeito da suposta neutralidade do norma, de forma a revelar se, e como, ela exclui o ponto de vista feminino. O primeiro exemplo que pode ser usado é a Lei No. 9263, de 12 de janeiro de 1996, chamada “Lei do Planejamento Familiar”. Em seu Art. 10, § 5º, ela versa que: “Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: (…) Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.”.

Em uma primeira análise, a lei parece respeitar perfeitamente a igualdade formal. Afinal, homens e mulheres estão igualmente restringidos em sua capacidade de tomada de decisão, e enfrentam o mesmo requisito legal. No entanto, uma análise mais profunda é capaz de revelar as consequências desiguais - e, mais ainda, desproporcionais - a homens e mulheres.

Inicialmente, é importante ressaltar que, como é amplamente sabido e como foi demonstrado nos dados apresentados acima, as mulheres, por receberem menos do que os homens, por discriminação salarial, necessidade de cuidado com os filhos e diversas outras razões, muitas vezes dependem dos cônjuges financeiramente, o que retira boa parte de sua independência. A realidade tem sido esta desde o Brasil colônia, como aponta Susan K. Besse em seu livro “Restructuring Patriarchy: The modernization of gender inequality in Brazil, 1914- 1940104”. Dessa forma, não é realista o pressuposto de que os cônjuges partem da mesma posição, dentro da sociedade marital, para autorizarem as ações uns dos outros.

A segunda problemática dessa norma é a de que ela não considera que a consequência da restrição, um número maior de gravidezes indesejadas, afeta muito mais as mulheres do que os homens. Isso porque, como explicado acima, mulheres são vistas pela sociedade como as primeiras responsáveis por seus filhos e demais familiares. Dessa forma, a mulher é, historicamente, a pessoa do casal que abdica da vida profissional em prol da educação dos filhos. Diante desse cenário, é possível perceber que esta barreira ao controle de natalidade prevista em lei afeta as mulheres de maneira desigual: uma gravidez onera muito mais a vida da mãe do que a do pai. Logo, uma norma que respeita a igualdade formal ao restringir

104BESSE, Susan. Restructuring Patriarchy: The modernization of gender inequality in Brazil,

37 igualmente homens e mulheres não atinge a igualdade material, pois onera um dos gêneros de maneira desproporcional.

Um outro exemplo de norma teoricamente neutra que pode ser apresentado é a legítima defesa, tida como um excludente de ilicitude no ordenamento brasileiro. Tal argumento já foi trazido por diversas feministas que possuem tal figura em seus códigos penais nacionais. Segundo o Art. 23, II, do Código Penal, “Não há crime quando o agente pratica o fato: II - em legítima defesa”. Segundo o Art. 25 do mesmo Código, “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Analisando o texto legal, pode-se perceber que a legítima defesa possui três requisitos: proporcionalidade dos meios, agressão injusta e atual ou iminente.

Segundo Rogério Greco, considera-se como atual a agressão que já esteja efetivamente acontecendo; iminente, a seu turno, é aquela que está preste a acontecer105. No mesmo sentido vão a doutrina e a jurisprudência. Conforme argumenta Cezar Roberto Bittencourt, qualquer atuação após cessada a situação de perigo proveniente da agressão injusta é caracterizada como vingança, que não pode ser protegida pelo Direito Penal106. Dessa forma, não existiria legítima defesa contra agressão futura ou passada, sendo cabível, nessas hipóteses, a ação da justiça, e não do ofendido. Para tal efeito, existiriam outros remédios legais, como a medida preventiva.

Embora existam autores que defendam a possibilidade da aplicação da legítima defesa em casos de violência doméstica sistêmica, como Francisco Dirceu Barros, dados fatores como a certeza da agressão futura, ausência de proteção estatal e impossibilidade de fuga da vítima107, por exemplo, tal figura não incluiu, originalmente, a experiência feminina. Isso porque, conforme se tira do tipo penal e da doutrina majoritária a seu respeito, tal configuração surgiu como remédio para as agressões inesperadas, violentas e momentâneas. No entanto, dados mostram que esta é a realidade masculina, e não feminina. Homens são as grandes vítimas dessas agressões. Como será demonstrado com mais detalhes posteriormente, mulheres morrem em casa, de maneira lenta e sistêmica.

De acordo com o Mapa da Violência de 2015, apenas 10% dos homicídios masculinos acontecem dentro do domicílio, e quase a metade deles acontece na rua. Já a porcentagem das

105

GRECO, Rogério. Código penal Comentado. 2ª ed. Niterói. RJ: Impetus, 2009.

106BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.

375.

107BARROS, Francisco Dirceu. Severina: Assassina ou santa? O sertão que não tem o cordel encantado.

38 mulheres que morrem no próprio domicílio se aproxima de 30%108. Além disso, a pesquisa também mostra que, enquanto nos homicídios masculinos prepondera fortemente o uso de armas de fogo, totalizando 73,2% das mortes, todos os outros meios apontados pelas pesquisas foram mais utilizados nos homicídios femininos:

Tabela 1: Meios utilizados (%) nos homicídios, por sexo. Brasil. 2013

Meio / Instrumento Fem. Masc.

Estrangulamento/sufocação 6,1 1,1

Arma de fogo 48,8 73,2

Cortante/penetrante 25,3 14,9

Objeto contundente 8,0 5,1

Outros 11,8 5,7

Fonte: Mapa da Violência 2015. O Homicídio de mulheres no Brasil.

Pode-se perceber, ainda, o caráter mais íntimo dos outros meios utilizados; principalmente “estrangulamento/sufocação”, que se coloca como um meio utilizado em crimes passionais, e dificilmente advirá de um assalto na rua, por exemplo. Diante do exposto, fica claro que a figura da legítima defesa, remédio para agressões injustas, normalmente inesperadas e momentâneas, não engloba a realidade da violência contra a mulher, íntima e lenta.