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O aspecto enunciativo da realização vocal da língua: uma nova possibilidade de

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (páginas 178-182)

5. O aparelho formal da enunciação – possibilidades de abertura do horizonte

5.1. O aspecto enunciativo da realização vocal da língua: uma nova possibilidade de

Quando Benveniste afirma que a enunciação pode ser estudada sob diversos aspectos, não deixa de ser intrigante o fato de o linguista colocar, como primeiro dentre os três aspectos por ele elucidados, o da “realização vocal da língua”. Não só isso: para o autor, este aspecto da enunciação é “o mais imediatamente perceptível e o mais direto” (PLGII, p. 82). De fato, a materialidade fônica é o meio mais direto de acesso à língua188, o que percebemos de imediato no seu uso, o veículo que transporta o sentido de cada enunciação de um parceiro a outro na instância de discurso. A ênfase aqui é dada, portanto, ao estatuto oral da enunciação, o que acarreta, no mínimo, dois problemas.

Em primeiro lugar, analisar a enunciação do ponto de vista de sua realização vocal implica em coadunar, na análise, as duas naturezas distintas do mesmo fenômeno:

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Tal como Benveniste, restrinjo-me, aqui, à língua falada. Não desconsidero a materialidade gráfica da escrita nem a materialidade gestual das línguas de sinais, as quais, acredito, não fogem ao estatuto de singularidade da enunciação. No entanto, interessa-me aqui unicamente o aspecto vocal da enunciação.

a natureza física e a natureza linguística, uma vez que a linguagem é, tal como afirma Benveniste em Vista d’olhos (1963), “uma entidade de dupla face” (PLGI, p. 30):

A linguagem é um sistema simbólico especial, organizado em dois planos. De um lado é um fato físico: utiliza a mediação do aparelho vocal para produzir-se, do aparelho auditivo para ser percebida. Sob esse aspecto material presta-se à observação, à descrição e ao registro. De outro lado, é uma estrutura imaterial, comunicação de significados, substituindo os acontecimentos ou as experiências pela sua “evocação” (idem, grifos meus).

Assim, a questão aqui gira em torno de como se articulam estes dois planos, ou ainda, de averiguar como a materialidade vocal constitui a enunciação, ao mesmo tempo a partir de um estatuto singular, tomada enquanto som, já que, “para o mesmo sujeito, os mesmos sons não são jamais reproduzidos exatamente” (PLGII, p. 82-83), e a partir de um estatuto mais estável, tomada enquanto forma sonora que configura o sistema linguístico. Tudo leva a crer que a condição da análise enunciativa da realização vocal da língua, esta se configurando como um elemento supra-segmental da linguagem, não pode ser feita sem levar em conta conjuntamente os seus elementos segmentais. Em outras palavras, abordar o nível vocal da língua, em uma perspectiva enunciativa, implica em relacioná-lo aos demais níveis de análise da língua, procurando averiguar como se dá essa relação entre os níveis, como eles interagem na produção de sentido, e o que tal relação revela a respeito do papel do locutor no funcionamento da língua. Este ponto se encontra, de certa forma, manifesto no texto de 1970, uma vez que Benveniste faz referência, mesmo que indiretamente, ao aspecto fônico da enunciação ao discorrer sobre as próprias funções sintáticas da língua. Desse modo, ao falar sobre a “interrogação”, o linguista afirma: “Todas as formas lexicais e sintáticas da interrogação, partículas, pronomes, sequência, entonação, etc., derivam deste aspecto da enunciação” (op. cit., p. 86, grifo meu). Da mesma forma, acerca da função sintática da “asserção”, Benveniste diz: “Em seu rodeio sintático, como em sua entonação, a asserção visa a comunicar uma certeza, ela é a manifestação mais comum da presença do locutor na enunciação” (idem, grifo meu). Portanto, se a análise da enunciação a partir de seu aspecto sintático implica a consideração conjunta dos diferentes níveis de análise da língua, dentre os quais o da “entonação”, elemento de natureza fônica, o

mesmo também ocorre no inverso, isto é, a análise da enunciação a partir do aspecto da realização vocal da língua supõe uma interação entre os níveis de análise189.

Em segundo lugar, percebemos que, em O aparelho, a ênfase é dada não só à enunciação fônica enquanto emissão, mas também enquanto recepção, afinal, Benveniste fala, no texto de 1970, sobre os “sons emitidos e percebidos” (op. cit., p. 82). Isso mostra que a intersubjetividade é também aqui um fundamento de análise, ao mesmo tempo em que coloca um impasse: seria a consideração à realização vocal da língua distinta nas instâncias de emissão e de percepção dos sons? Ou ainda, se a enunciação supõe o estabelecimento de referência pelo locutor e de co-referência pelo interlocutor, no e pelo discurso, essa co-referência atribuída pelo outro consistiria numa nova enunciação? Tais questões se impõem de forma ainda mais incisiva quando o problema gira em torno da análise enunciativa, em especial no que diz respeito à transcrição dos dados de fala, a qual se configura, da mesma forma, como uma instância de escuta.

Todas essas questões têm dado lugar a inúmeras pesquisas, realizadas em especial na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que buscam articular a teoria enunciativa de Benveniste ao estudo dos distúrbios de linguagem.

No que diz respeito à última destas problemáticas, há atualmente pesquisadores (dentre os quais estou incluído), pertencentes aos campos da linguística e da fonoaudiologia, que indagam sobre o estatuto da transcrição a partir da perspectiva enunciativa. Para eles, pensar a transcrição sob a ótica da enunciação é, em primeira instância, reconhecê-la também como um ato enunciativo. Dito de outra forma, a passagem do meio oral ao meio escrito, isto é, a escrita da fala, não se dá de forma autônoma, uma vez que essa escrita é produto da observação de um fato de linguagem, e, sendo a observação já em si um princípio de descrição, feita através de um determinado ponto de vista, a transcrição necessariamente levará consigo as marcas daquele que a produziu. Isso significa dizer que a transcrição, na perspectiva enunciativa, envolve duas instâncias enunciativas, configurando-se sempre como uma

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A esta particularidade da análise enunciativa, Flores (2009; 2010) e Cardoso (2010) dão o nome de transversalidade enunciativa. Assim, a enunciação não se configura como mais um nível de análise da língua; ela é transversal a todos os níveis, perpassando-os e engendrando-os no uso da língua pelo locutor, e isso se reflete no processo de análise. Tal conclusão é resultado de um projeto de pesquisa interdisciplinar vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulado Enunciação e distúrbios de linguagem: sobre os níveis de análise da fala sintomática, e composto por linguistas, fonoaudiólogos e psicanalistas.

enunciação sobre outra enunciação190. Portanto, conceber a transcrição como uma modalidade de enunciação implica em dizer que ela não foge à singularidade da enunciação, sendo, portanto, única e circunscrita apenas ao propósito de sua produção.

Tal constatação implica ainda em uma outra, que diz respeito ao estatuto enunciativo da fala transcrita191. Ora, é necessário haver a consciência de que a fala, ao ser transcrita, sofre necessariamente uma mudança em sua condição original, já que essa passagem do oral ao escrito se dá através de um outro dizer e por um outro indivíduo. Depreende-se daí, consequentemente, que, na transcrição, algo sempre fica de fora, uma vez que o sujeito – nesse caso, o transcritor – é impossibilitado de dizer tudo192. Trata- se, assim, de reconhecer que a transcrição é sempre fruto de uma escuta do transcritor, e que esta é, por sua vez, guiada por um propósito específico de análise. É nesse sentido, portanto, que podemos afirmar que a transcrição é, desde já, um começo de análise. Assim sendo, em que medida a transcrição de dados de fala pode dar conta do aspecto vocal da enunciação? Poderíamos sequer sustentar a afirmação de que este aspecto enunciativo pode ser apreendido e mostrado através de uma transcrição escrita? O impasse está colocado.

Além disso, no que diz respeito especificamente ao aspecto enunciativo da realização vocal da língua, o mesmo grupo de pesquisa, composto por linguistas, fonoaudiólogos e psicanalistas, tem também se dedicado ao estudo de tal aspecto no âmbito dos distúrbios de linguagem193. Assim, se a enunciação, tal como afirmei anteriormente, perpassa todos os níveis da língua, configurando-se como um ponto de vista transversal à língua, como isso se dá nos casos em que a fala é comprometida por impedimentos de ordem orgânica que afetam a própria fonação? Em que medida os outros níveis que não o fônico são afetados pelo distúrbio, e como estes se organizam,

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Como afirma Flores (2006), a transcrição é “vista como ato enunciativo, como um mostrar de um dizer que comporta, ela mesma, um outro dizer” (FLORES, 2006, p. 74, grifos do autor). Consequentemente, ainda segundo o autor, “cada transcrição é sempre única, singular e não linearmente extensível” (idem).

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Conforme Surreaux (2006), há de se perceber que “no contexto oral aquele que enuncia está ali, no contexto escrito quem enunciou não está mais presente. E, na realidade, no caso da transcrição, estão em jogo dois enunciadores: o que fala e o que transcreve – por isso deve-se levar em consideração sempre o fato de que a transcrição implica o transcritor, que enuncia de forma muito particular essa passagem do oral para o escrito” (SURREAUX, 2006, p. 138).

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Surreaux (2006) reitera esta constatação, ao afirmar que “parece fundamental ter presente a impossibilidade de apreensão total da fala de um sujeito” (SURREAUX, 2006, p. 134).

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Faço referência, aqui, ao projeto de pesquisa intitulado O aspecto vocal/fônico da enunciação nos distúrbios de linguagem: um estudo enunciativo dos distúrbios articulatórios com etiologia orgânica definida, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

em seu conjunto, no funcionamento da linguagem neste tipo particular de caso? Portanto, trata-se, aqui, de investigar a enunciação em sua materialidade vocal numa implicação do que é de ordem articulatória com o que é de ordem linguística, com vistas ao sentido através do qual se singulariza propriamente o locutor. Novamente, a questão do método aqui se impõe com rigor, e constitui um problema: embora o texto de 1970 introduza, como nova possibilidade de análise da enunciação, o aspecto de realização vocal da língua, esta introdução não expõe o modo pelo qual este tipo de análise se realizaria. O que vemos é tão somente a problematização do método empregado pela prática linguística ao se considerar os sons emitidos e percebidos da língua sob o ponto de vista enunciativo. Elaborar um modus operandi para a análise da enunciação a partir deste aspecto constitui, dessa forma, uma das tarefas necessárias ao desenvolvimento de tal perspectiva. No entanto, é já um consenso, dada a interdependência entre os níveis linguísticos na análise da enunciação, que se deve levar em conta, no estudo do aspecto vocal da enunciação, as relações sintático-prosódico-enunciativas que se estabelecem a cada instância de uso da língua.

Enfim, acredito que estes exemplos sejam, por si só, suficientes para elucidar as potencialidades de análise que a perspectiva enunciativa sob o aspecto da realização vocal da língua, aberta por Benveniste no texto O aparelho, possibilita.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (páginas 178-182)

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