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Para iniciar este capítulo, gostaria de destacar o caráter lúdico do exercício meditativo, sugerido, mas não desenvolvido, por Foucault. Em uma passagem da

Hermenêutica do sujeito, Foucault se refere à meditação como um “jogo”. Não um jogo qualquer:

Compreendamos ademais que esta idéia de meditação, não como jogo do

sujeito com seu pensamento, mas como jogo do pensamento sobre o sujeito, é, no fundo, exatamente o que Descartes realizou nas Meditações, sendo este precisamente o sentido que ele deu à ‘meditação’”174.

Infelizmente, Foucault não desenvolverá uma argumentação que explique em que medida o exercício meditativo possui um caráter lúdico. Contudo, podemos fornecer algumas características gerais do jogo sob as quais podemos enquadrar o conceito de meditação.

173 Ibidem, quatrième page de la couverture.

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Se tomarmos o termo “lúdico” na acepção dada por J. Huizinga, no ensaio Homo

ludens (1938), veremos que a meditação, como a reflexão filosófica em geral, apresenta traços lúdicos175. Huizinga enumera cinco características essenciais do jogo: a liberdade, seu caráter “extra-ordinário”, limitação espaço-temporal, a ordem e o desinteresse.

Primeiro. É a liberdade, como vimos no primeiro capítulo, o fator que distingue a atividade humana das atividades meramente naturais (mecânicas). Ou melhor: é um elemento que se integra à natureza, harmoniosamente, como um “ornamento ou uma roupagem”176. É aquilo que chamamos de “segunda natureza”. Se imposto, determinado por uma força coercitiva exterior, o jogo perde seu valor autônomo177. E não há prazer lúdico se não há liberdade. A intensidade do prazer intelectual cartesiano (final da terceira meditação) é diretamente proporcional à tensão que o sujeito meditante experimenta nas duas primeiras meditações. E só há tensão se há incerteza178. No mundo natural, ao contrário, o que predomina é a certeza da previsibilidade (a monotonia dos autômatos). A liberdade condiciona, portanto, o prazer lúdico. Liberdade e prazer, aqui, são intercambiáveis.

Segundo. O jogo também é considerado um evento extra-ordinário, uma evasão da vida comum e vulgar. Quem joga “faz-de-conta”: vai além da realidade imediata, recria a vida real durante um determinado período de tempo. É neste sentido que a meditação se aproxima do jogo: o meditador, como afirma Foucault, se põe seriamente numa situação

175 Homo ludens é o texto clássico sobre o conceito de jogo. A tese de Huizinga é conhecida. Ele procura mostrar que o jogo é o fundamento da cultura: “Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas elas têm suas raízes no solo primevo do jogo”. Homo ludens, cap. 1, p. 7. 176 Ibidem

178 É esta tensão que confere ao jogo um “certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habilidade e coragem (...) sua lealdade. Porque, apesar do seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo”. Huizinga, op. cit., p 14

103 fictícia; ele sabe que o exercício da duvida e seus obstáculos são provas qualificatórias, forjadas pelo sujeito com o intuito de obter uma primeira certeza inabalável. E pelas extravagâncias do “faz-de-conta” da dúvida metódica – fingir que se sonha, que há um Deus enganador e um Gênio maligno – que o sujeito obtém sua identidade subjetiva.

Terceiro. A limitação espacial e temporal é uma condição básica para a realização dos jogos. O essencial é que a delimitação de um tempo e um espaço constitui uma regra do modo de vida ascético. Do ponto de vista estritamente lógico pouco importa onde e quando se medita; aí o tempo e o espaço são neutros. Já sob o viés do exercício é diferente: um ambiente propício e o planejamento do tempo são capitais para a prática da meditação (falaremos disso na conclusão deste trabalho).

Quarto. O jogo “cria ordem e é ordem”179. Esta é quarta e “mais positiva” característica do jogo. Organizar é formar: dar contornos ao caos, delimitar a matéria, desenhar uma figura. O jogo é uma figuração. É por isso que, afirma Huizinga, o lúdico está estreitamente ligado ao domínio da estética: “Talvez este fator estético seja idêntico àquele impulso de criar formas ordenadas que penetra o jogo em todos os seus aspectos”180. Sabemos que esta ordem, em Descartes, é identificada com o método. Contudo, no jogo metódico não há lugar para a imprevisibilidade.

Finalmente, a última característica: o desinteresse. O jogo está situado para além do mecanismo da satisfação imediata dos apetites e desejo. Sua finalidade é irredutível aos interesses materiais ou a satisfação individual. “Ele [o jogo] se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação

179 Huizinga, J. Op. cit., p. 13. 180 Idem.

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que consiste nessa própria realização”181. Esta característica é questionada por alguns autores182. É legítimo afirmar que a busca da verdade cartesiana é desinteressada? Que o objetivo das Meditações, fundamentar a ciência em bases sólidas, já não traz consigo o desejo de conhecer e dominar a natureza? É possível afirmar que a “vontade de verdade” é neutra? Este “desinteresse” causa problema. Do ponto de vista estritamente cartesiano, concepção clássica por excelência, poderíamos afirmar que a busca pela verdade supõe um despojamento dos interesses pessoais e um engajamento por amor à verdade. Mas, se nos basearmos na filosofia de Foucault (que neste caso é fiel ao pensamento de Nietzsche), concluiremos que esta vontade de verdade supõe um conflito de forças; há um interesse em vencer o jogo.

Mas paremos por aqui. Se continuarmos com a argumentação é provável que encontremos inúmeros pontos em comum entre o conceito de meditação e o conceito de jogo. Contudo, neste caso é mais fácil estabelecer comparações arbitrárias que o espírito cartesiano não permitiria (pois em nenhum momento Descartes relaciona a meditação e o jogo). Algumas reflexões feitas neste capítulo, calcadas em uma estratégia comparativa, podem, admito, suscitar associações indevidas. Ao trazer à baila outras tradições e outros referenciais teóricos, procurei mostrar que o traço marcante da meditação cartesiana é articular as técnicas do exercício espiritual com as exigências do método intelectual. É por este motivo que as Meditações olha a um só tempo para o passado e para o futuro.