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O aspecto secundário da perspectiva na análise de “Las Meninas”

No documento Entre o corpo da obra e o corpo do observador (páginas 188-196)

O CORPO, UM FASCÍNIO PERMANENTE

188 Calicrates e Ictinos

1 É desejo do autor publicar o conteúdo desse ensaio em um pequeno livro cujo título original é: “O

2.2.4 O aspecto secundário da perspectiva na análise de “Las Meninas”

Ainda que, a princípio, este item soe contraditório, dado o espaço que dedicamos até agora à perspectiva do quadro de Velázquez, já em nosso texto introdutório apontávamos o seu aspecto secundário. Também no primeiro e segundo itens, dedicados aos equívocos que se sucederam nas análises que tomaram o sistema de representação espacial desenvolvido no Renascimento14 como chave para entender “Las Meninas”,

mencionamos suas restrições em relação à natureza teatral do espaço barroco. Diante disso, parece-nos esclarecedor retomar a contraposição entre obras do Renascimento e do Barroco como fizemos no seminário de 1997 e mais recentemente em profícuas discussões com o professor Jorge Coli15.

Para efeito de contraposição, podemos tomar a versão do “David” (fig. 11), de Donatello, realizada por volta de 1440 e o “David” (fig. 12 – 13), de Bernini, de 1623-1624. Em Donatello, o jovem idealizado leva uma pedra na mão esquerda e a espada em sua mão direita. Sob seu pé esquerdo repousa a cabeça decepada do gigante Golias. O delicado corpo em sutil contraposto não expressa qualquer tensão e se não nos detivermos, sequer percebemos a violência do ato que acabara de ser consumado. O observador permanece distanciado em seu espaço, identificando a narrativa bíblica que lhe é apresentada por inteiro e de um só golpe.

14 No livro “Il Grande Racconto dela Geometria Moderna: Una via di fuga” Piergiorgio Odifreddi, entre outros assuntos, trata das relações entre ótica e perspectiva definindo-as do seguinte modo: “Se a ótica determina o cone da visão formado por um objeto com relação a um olho, a perspectiva estuda ao contrário a interseção deste cone com um plano, pensado como uma tela sobre a qual representar a imagem vista pelo olho. Se trata, isto é, de considerar a tela como uma janela através da qual se vê,

olhando com um único olho, o mundo externo. E assim fizeram os pintores renascentistas, usando

vários artifícios descritos em 1525 por Dürer, no Trattato sulla misura con riga e compasso.” (ODIFREDDI, 2012, p. 54, tradução nossa, grifo nosso)

15 O pensamento visual de Aby Warburg expresso no seu “Atlas Mnemosyne” é nossa principal referência, sustentando a relevância do procedimento de livre associação de imagens.

11 (ao lado)

Donatello

“David”, c. 1440 Bronze. Museo Nazionale del Bargello, Florença

Fotografia de Ricardo Coelho

12 - 13 (abaixo)

Gian Lorenzo Bernini

“David”, 1623 - 1624 Mármore. Galleria Borguese, Roma Fotografias de Ricardo Coelho

Em Bernini há uma construção espaçotemporal muito distinta, assim como uma nova e inesperada implicação do observador. O corpo em violento contraposto suspende o tempo na tensão do movimento. Ambas as mãos do atlético Davi estão conectadas pelas extremidades da funda (fig.12), instrumento rudimentar e que “surpreenderá” o gigante guerreiro. A mão esquerda segura a pedra que “será” lançada pela mão direita, pelo braço direito, por todo o corpo do jovem David em violenta

rotação, cuja feição cerrada com os lábios suprimidos pelo esforço físico intensificam ainda mais a potência de seu gesto. A narrativa “está em pleno desenvolvimento” e ao observarmos a cena (escultura), sem nos darmos conta, passamos a ocupar virtualmente o espaço destinado a Golias (fig. 13), o que desestabiliza os limites entre a realidade e a representação claramente definidos no Renascimento.

Uma segunda contraposição entre a “Escola de Atenas” (1506 – 1510) de Rafael (fig. 14) e o próprio “Las Meninas” (1656) de Velázquez (fig. 15) ajudará a evidenciar ainda mais a distinção entre a natureza do espaço Renascentista e do espaço Barroco, bem como reforçará a ideia de que a precisão de perspectiva exigida e evocada por diversos autores que analisaram a obra prima do espanhol só poderia resultar em análises de caráter superficial ou em interpretações equivocadas.

O trabalho de Rafael (fig. 14) apresenta algumas das características marcantes do Renascimento: espaço harmônico organizado geometricamente; simetria quase absoluta; ponto de fuga central e utilização da arquitetura real como parte da representação. No entanto, apesar da utilização do formato arqueado da sala como uma extensão natural da pintura, bem como do intenso ilusionismo alcançado pelos elementos esculturais do primeiro plano que envolvem a cena (arco e friso na base), a sensação que se tem é que o espaço de Rafael é idealizado, distante, não sendo possível estabelecermos relação entre o espaço representado e o espaço do observador, seja ele do Renascimento

ou contemporâneo. Como nos disse Maurice Merleau-Ponty (2013, p. 74) ao analisar o significado da perspectiva em “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”: “O quadro inteiro está no modo do passado ou da eternidade; tudo adquire um ar de decência e discrição; as coisas deixam de me interpelar e já não sou comprometido por elas.”

Em síntese, poderíamos dizer que Rafael produz um espaço ideal para uma contemplação distanciada, onde o observador tem seu lugar definido com grande precisão fora do plano onde se desenrola a cena: um espaço não ilusório, abstrato, filosófico e rigoroso, no qual não há observador pressuposto numa continuidade de espaço.

Em muitos trabalhos do século XVII, inclusive em “Las Meninas” (fig. 15), o uso da perspectiva é muito distinto, com um enquadramento que deixa o observador num plano muito próximo dos “atores”, sem que seja possível uma identificação muito clara do espaço representado. A iluminação é difusa, reduzindo também a clareza dos contornos mesmo quando os modelos são retratados em todo o seu realismo e solidez volumétrica, caso, por exemplo, do cão dormindo em primeiro plano. Esses recursos expressivos utilizados, em particular a composição, com figuras que explodem/estendem virtualmente os limites do plano do quadro, potencializam certa ambiguidade, tornando-nos parte da cena representada, dada a proximidade que o ponto de vista e o recorte produzem. Há um abalo no espaço antes destinado à contemplação, como se a cena estivesse ocorrendo agora em um teatro real, do qual passamos a fazer parte de maneira ainda mais intensa graças ao inquietante jogo de olhares que perturba a confortável posição do observador. Apesar de sabermos que se trata de uma representação, a organização espacial constantemente burla esse distanciamento que é perene em Rafael, isso porque estamos diante de um espaço que nos convida/induz a um tipo de imersão virtual.

Como a noção de teatro e suas implicações conceituais parecem uma chave fundamental para entendermos parte significativa da produção do Barroco16, poderíamos dizer que nesse período os artistas conseguem

um novo tipo de implicação do observador, abrindo espaço para a nossa identificação, em uma espécie de catarse perceptiva. Quando se consegue essa identificação como, por exemplo, em “Las Meninas”, o limite entre o espaço real e o espaço da representação se dilui de maneira drástica. É possível, inclusive, como sugere Foucault de maneira poética, uma

16 Muitos autores analisaram os aspectos teatrais do Barroco, inclusive em suas manifestações no Brasil colonial. Entre os textos com os quais tivemos contato gostaríamos de indicar “Do século XVI ao início do século XIX: Maneirismo, Barroco e Rococó” de Benedito Lima de Toledo, em particular o item “3.4 – A civilização Barroca.” Também no campo das artes cênicas Anatol Rosenfeld aborda esse aspecto particular do Barroco europeu com grande clareza no livro “O teatro épico”. “O fato é que todos os recursos cênicos inventados no Renascimento para conquistar e dominar a realidade terrena são agora mobilizados para obter precisamente o efeito contrário: não para consolidar e sim para abalar a realidade, não para ‘emprestar realidade à aparência e sim para transformar a própria realidade em aparência’.” (ROSENFELD, 2002, p. 59)

14

Rafael Sanzio

“Escola de Atenas”, 1506 - 1510 Afresco. Palácio Apostólico, Vaticano Fotografia de Ricardo Coelho

inversão de sentido, quando passamos (inconscientemente) a entender/ perceber o espaço real que ocupamos durante a observação como a continuidade do espaço da representação.

Na obra de Rafael a arquitetura é aproveitada em sua forma real como moldura/entrada para o espaço idealizado da representação. Há uma relação ou um sentido que parte do observador para a obra. Já em “Las Meninas” o espaço da representação é o ponto de partida em uma

estranha inversão de sentido que agora vai da obra e se estende até o corpo do observador. De observadores passivos e distanciados, passamos

a uma implicação ativa, quase física. Temos que nos esquivar para evitar que a pedra lançada pelo David de Bernini nos atinja, pois, diante dessa obra assumimos o lugar de Golias, o lugar temporário dos reis em “Las Meninas” e, temporariamente, o próprio lugar de Velázquez como veremos mais à frente.

Se a natureza idealizada do espaço Renascentista e o espaço essencialmente teatral do Barroco, bem como a importância relativa da perspectiva em cada momento ainda não nos parece suficientemente claros, podemos evocar duas obras produzidas por um dos mais originais artistas contemporâneos e que, consciente ou inconscientemente, vale- se de ambas as concepções na realização de muitos de seus trabalhos. Estamos falando de Bill Viola e de duas obras produzidas no mesmo ano: “Emergence” (2002) e “Observance” (2002).

No processo de elaboração do primeiro trabalho Bill Viola vale-se de algumas referências do Renascimento Italiano, até que localiza a ilustração de um afresco de Masolino da Panicale (fig. 16) representando um “Cristo em Pietá” (1424)17. Nesse trabalho “[...] vemos o cadáver de Cristo morto

em sua tumba, sustentado por sua mãe Maria e por São João Evangelista” (WALSH, 2004, p. 43, tradução nossa). Nas palavras do próprio Viola, não lhe interessa reencenar quadros históricos, fato que o faz alterar sutilmente elementos como o enquadramento e substituir a figura de São João por outra mulher. Para além das muitas interpretações que se possa ter sobre a obra que nos remete à morte e também às cenas de ressurreição, a grande escala da imagem projetada como um retábulo de altar, inevitavelmente está vinculada ao espaço idealizado do Renascimento, diante do qual,

17 Após mencionar representações anteriores que sugerem a perspectiva na ́ndia e na China, bem como apontar as duas pranchas perdidas de Brunelleschi como as primeiras realizações conscientes que uniram estudos de ótica e perspectiva, Odifreddi relaciona os mais antigos trabalhos de perspectiva que permaneceram: “O San Giorgio libera la principessa de Donatello em 1417, o Cristo in Pietà de

Massolino da Panicale em 1424, a Trinità de Masaccio em torno de 1426, e L’adorazione dell’agnello dos

irmãos Jan e Hubert Van Eyck em 1432.” (ODIFREDDI, 2012, p. 56, tradução nossa, grifo nosso)

15 (página ao lado)

Diego Velázquez

“Las Meninas”, 1656

Óleo sobre Tela. Museo Nacional del Prado, Madri

17 - 18 (à direita, cima p/ baixo)

Bill Viola

“Emergence”, 2002 Videoinstalação com alta definição. Imagem retroprojetada em sala escura (2 x 2m)

permanecemos como observadores distanciados sem qualquer implicação de cunho ilusionista (fig. 17 – 18).

Em “Observance” Viola parte de um díptico de Dürer (fig. 19 – 20) intitulado “Os quatro apóstolos” (1526). “Primeiro imaginou duas composições estreitas e altas nas quais alguns atores se moveriam para a câmara mostrando uma intensidade de expressão semelhante à dos apóstolos...” (WALSH, 2004, p. 41, tradução nossa). Durante as filmagens abandonou a ideia inicial inspirada em Dürer, optando por uma fila única com um enquadramento mais estreito, o que fazia com que as pessoas, durante sua lenta e silenciosa caminhada, ultrapassassem os limites laterais do enquadramento, chegando até um ponto que situava o corte do primeiro plano entre a região da cintura e os joelhos dos atores (fig. 21 – 23). “Seus olhares estão fixos em um objeto desconhecido que está em um ponto que

16 (ao lado)

Masolino da Panicale

“Cristo in pietà”, 1424 Afresco. Museo della Collegiata

19 - 20 (acima, à esquerda)

Albrecht Dürer

“Os quatro apóstolos”, 1526 Óleo sobre painel de madeira. Alte Pinakothek, Munich

21 - 23 (acima, à direita)

Bill Viola

“Observance”, 2002 Vídeo em cores de alta definição exibido em rela

de plasma fixado em parede (120,7 x 72,4cm)

24 (ao lado)

Michelangelo Merisi da Caravaggio

“Salomé com a cabeça de João Batista”, 1609 Óleo sobre tela. Palacio Real, Madri

25 (ao lado, à direita)

Michelangelo Merisi da Caravaggio

“Davi com a cabeça de Golias”, c. 1610 Óleo sobre tela. Galleria Borguese

não podemos ver, sob o limite do enquadramento inferior” (VIOLA, 2004, p. 92). Um ponto que não podemos ver, mas que, justamente pela opção do recorte, pertence ao nosso espaço que passa a ser o espaço estendido da solene representação.

Ao que tudo indica, Bill Viola, de maneira intuitiva18, abandona o

espaço Renascentista optando por um enquadramento similar a muitas representações do Barroco europeu. Guardadas as devidas diferenças, parece-nos difícil não recordarmos de “Salomé com a cabeça de João Batista” (1609), de Caravaggio (fig. 24), ou o próprio “Davi com a cabeça de Golias” (1610), do mesmo autor (fig. 25), obra cuja temática abriu nossas associações nesse item.

Se a perspectiva no Renascimento “é a invenção de um mundo dominado” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 74), um verdadeiro instrumento de reflexão como princípio metafísico que sustenta o sensível, no Barroco essa construção idealizada do mundo cede a uma concepção mais fenomenológica19, “impondo a nossos sentidos um espetáculo irrecusável”

(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 71). Nesse espaço, essencialmente teatral e que se estende virtualmente além dos limites físicos da representação, artistas como Velázquez adotam estratégias e recursos expressivos destinados a iludir e maravilhar os sentidos do observador.

2.2.5 “Las Meninas” de Foucault

A partir de agora desenvolveremos outra interpretação para o enigma criado por Diego Velázquez em “Las Meninas”, tendo como referência principal a interpretação de Michel Foucault em ensaio homônimo (cuja leitura aconselhamos) presente no livro “As palavras e as coisas” (1999). Dessa interpretação, porém, nos distanciaremos em quase toda a sua estrutura. É a partir de impossibilidades na descrição, de brechas e dúvidas do próprio Foucault, que iniciamos esse item.

Ao descrever o quadro, Gombrich (1993, p. 321) usa o mesmo eixo da leitura de Foucault, atribuindo ao espaço externo o tema da pintura20. Vemos o 18 É provável que essa decisão seja a retomada inconsciente de um interesse que o próprio artista já havia demonstrado por uma das características do barroco espanhol. A partir das palavras do próprio Bill Viola John Walsh afirma o seguinte: “Durante sua leitura do livro de Stoichita sobre as experiências visionárias na arte espanhola, Viola se sentiu atraído pela ideia de que os artistas do século XVII como, por exemplo, José Ribera, pintavam aos Santos em momentos em que estes estavam tendo visões que eles podiam ver, mas os observadores do quadro não.” (2004, p. 31, tradução nossa) O livro ao qual Bill Viola se refere com entusiasmo é “Visionary Experience in the Golden Age of Spanish Art”, London: Reaktion Books, 1995

19 “O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente, que esteja contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo, enquanto vivo, tenho diante de mim o sentido, sem o que não o viveria e não posso procurar nenhuma luz concernente ao mundo a não ser interrogando, explicando minha freqüentação do mundo, compreendendo-a de dentro.” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 41) 20 Também apontam o tema da pintura como externo ao quadro, em 1980, John R. Searle no texto “Las Meninas y las paradojas de la representación pictórica” (MARIAS; 1995, p. 103 – 112), em 1985, Victor I. Stoichita com “Imago Regis: Teoria del arte y retrato real en Las Meninas de Velázquez” (MAŔAS;

que os reis viam, e o motivo do quadro que Velázquez executa no grande salão, na tela da qual vemos apenas o verso, são os próprios reis. O tema da pintura, numa jogada ardilosa de Velázquez, é inserido/revelado num reflexo ao fundo da sala num espelho que, segundo o próprio Foucault e outros autores, não pode existir como reflexo do espaço real. Gombrich se pergunta e nós podemos tomar como nossa a sua dúvida:

O que significa exatamente tudo isso? É possível que nunca o saibamos, mas eu gostaria de imaginar que Velázquez fixou um momento real de tempo muito antes da invenção da máquina fotográfica. Talvez a princesa tenha sido trazida à presença de seus régios pais a fim de aliviar o tédio da longa pose para o quadro, e o rei ou rainha comentasse com Velázquez que ali estava um tema digno do seu pincel. As palavras proferidas pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que devamos essa obra prima a um desejo passageiro que somente Velázquez seria capaz de converter em realidade. (GOMBRICH, 1993, p. 321)

O desejo passageiro pode ter sido do próprio Velázquez. Como disse Gombrich, é possível que nunca o saibamos. Em vários momentos os termos da dúvida, os tempos verbais do provável ocupam, também, as descrições e suposições da interpretação de Foucault. Isto nos habilita à criação de outras hipóteses; a discussão não pode ser fechada e o próprio filósofo em sua conclusão corrobora a possibilidade da criação de outras leituras ao frisar a autonomia desse quadro, desta representação em relação ao conceito clássico de representação que se funda numa noção de mimesis, de imitação da realidade: “E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.” (FOUCAULT, 1999, p. 21)

Tendo já introduzido a conclusão de Foucault, faremos uma breve descrição dos problemas levantados por ele em sua análise. Antes de qualquer coisa é fundamental determinar a estrutura ou o eixo da leitura. Para Foucault o tema do trabalho está na parte externa: são os reis os modelos executados na grande tela da qual vemos apenas o verso, e isto nos é revelado pelo estratagema do espelho ao fundo da sala21. As

meninas – a princesa e suas damas de honra – e os outros visitantes são trazidos para distrair os reis durante sua longa pose.

Toda a descrição de Foucault parece extremamente clara, parece derrubar dúvida após dúvida, mas, ao final, constata-se um lugar que permanecerá para sempre vazio. O pintor não pode estar representado ao mesmo tempo

1995, p. 181–203). No ano de 1982, Bo Vahlne em “Las Meninas de Velázquez: Observaciones sobre la escenificación de un retrato real” (MAŔAS; 1995, p. 163 – 169) afirma que as personagens retratadas estão à espera dos reis, assim como, de maneira similar, em 1994, Juan Miguel Serrera no ensaio “El Palacio como Taller y el Taller como Palacio” (MAŔAS; 1995, p. 231 – 246) define o tema central de “Las Meninas” como a visita dos reis à oficina de Velázquez. Contrários a essa interpretação estão, por exemplo, Joel Snyder, em 1985, com “Las Meninas y el espejo del Príncipe” (MAŔAS, p. 129 – 152) e o próprio Fernando Marías em “El gênero de Las Meninas: Los servicios de La Familia” (1995; p. 247 – 278) 21 Foucault ignora ou simplesmente deixa passar a impossibilidade da imagem do espelho ser o reflexo dos reis em pessoa. Outros autores se encarregaram de tratar dessa impossibilidade, quase sempre produzindo textos com muito menos interesse que o autor francês.

em que o soberano, ainda que toda imagem/situação seja refletida num grande espelho22.

Foucault estabelece o foco da composição como externo ao quadro, a partir da estrutura interna da grande tela. Em uma análise bem estruturada, define como centros da composição o olhar da menina e o olhar dos reis no espelho, e a partir das linhas que se desprendem desses olhares estabelece efetivamente o centro da composição como exterior ao quadro. Tudo parece resolvido, mas nos esquecemos das observações feitas por Foucault, ainda na primeira parte de seu ensaio, a respeito do espelho: “Em sua clara profundidade, não é o visível que ele fita.” (FOUCAULT, 1999, p. 9).

A falsidade do espelho é, em vários momentos, apontada por Foucault e também por vários outros autores, como veremos mais à frente. Não seria necessário que o fizessem, pois o próprio Velázquez já havia utilizado livremente o recurso de uma superfície especular a fim de iludir o observador comum e também os grandes especialistas, aprofundando, de maneira original, um tema já revisitado por Peter Paul Rubens entre 1606 e 1611 (fig. 26) a partir da pintura “Vênus e Cupido” (c. 1555) de Ticiano Vecellio (fig. 27). Estamos falando da “Vênus do Espelho” (c.1647- 1651), pintura descrita por Norbert Wolf (2012, p. 68) como uma das mais perfeitas da história da arte europeia23, não apenas por suas qualidades

plásticas, mas também como uma análise empreendida por Velázquez da relação que se dá entre a realidade, a imagem e o quadro.

As palavras desse autor tem para nós duplo interesse, primeiro, porque ele utiliza o termo “perfeição”, inevitavelmente remetendo a uma precisão anatômica, de proporções e de meios técnicos; segundo, porque, de fato, toca num ponto que põe em xeque a própria afirmação da verdade, a qual, na obra de arte, constrói-se nessa relação entre a realidade e a representação. Estamos diante de uma obra prima, fato que não impede a subversão do real em função dos objetivos que o mestre pretendeu lograr em sua representação.

22 Em ensaio publicado no caderno “Folha Ilustrada” do jornal “Folha de São Paulo”, do dia 07 de dezembro de 2002, p. E4, o poeta e ensaísta Ferreira Gullar apresenta o quadro “Las Meninas” de Velázquez como o reflexo de um grande espelho. Posteriormente, o mesmo ensaio seria publicado no livro “Relâmpagos” (Cosac & Naify, 2003). Bastaria uma simples análise do quadro para rebater o argumento ingênuo do extraordinário poeta brasileiro, mas já em 1980, John R. Searle no Ensaio “Las Meninas y las paradojas de la representación pictórica” havia apontado, num texto um tanto quanto

No documento Entre o corpo da obra e o corpo do observador (páginas 188-196)