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Aspectos da constituição do caboclo

No documento ANDERSON TEIXEIRA RENZCHERCHEN (páginas 59-64)

Neste capítulo consideramos os processos de formação do caboclo como um sujeito constituído. Investigamos os enunciados a respeito de suas características físicas e sociais, dos estigmas e do seu ímpeto de subsistência, as paisagens em que vive, o mundo que o rodeia, partindo do pressuposto de que o discurso tem como objetivo constituir sujeitos. Pressupomos que o conjunto de saberes mobilizados para construir os vereditos23 a respeito de um sujeito anteriormente inexistente pode estar atrelado à imposição de uma sociedade baseada no desenvolvimentismo. Mas também é uma construção que se origina de várias instâncias, até mesmo do meio popular, quando os alvos do discurso se insurgem contra tal imposição. As letras das músicas que tematizam o caboclo, por exemplo, podem ser um dos saberes por meio dos quais o sujeito é constituído. Mas o texto da canção se ampara em outras instâncias.

A moda de viola é um dos rudimentos associados ao mundo caboclo, à sua cultura, principalmente na região central do Brasil. O próprio estilo musical está imerso na lógica de engendramento deste sujeito, que o associa a uma paisagem, a um modo de vida, que é roça e sertão, que é interior brasileiro. Mas não apenas por causa da letra. Ou melhor, além da alusão verbal ao sujeito, a música é referencial, como que encarna a caboclidade. Imaginamos que essa mesma letra cantada num ritmo oriental ficaria meio deslocada. Embora não haja certeza se alguns ritmos como catira, cateretê, cururu sejam de origem indígena, seus nomes estão na língua dos nativos. Então a letra destas músicas está em português, mas certos ritmos em que são executadas têm nomes indígenas. A música mesmo reduplica o discurso do caboclo, pois é identificada como cabocla, ou seja, mescla da literalidade lusa com a sonoridade nativa. Em outras palavras, a letra está em português, embora se trate de um modo característico e regional

23 No sentido de discurso considerado como verdadeiro, ou pelo menos, coerente e útil para classificar, ordenar e

de utilizá-lo; a sonoridade é nativa porque inclusive recebe nomes nativos tais como o cururu, a catira e o cateretê.

As letras de algumas destas canções sertanejas como que desenham o cenário para a existência deste sujeito que está sendo constituído. Para ilustrar, a canção intitulada Brasil Caboclo, foi composta na década de 1960 e com o seguinte teor:

O amanhecê na minha roça, vem surgindo o clarão / roceiro deixa a paioça pra fazê as prantação / O carro de boi chorando no arto do chapadão / os passarinho cantando, começando um barulhão / Este é o Brasir caboclo, este é o meu sertão // Casinha de palha, lá no ribeirão / uma linda cabocla e um cavalo bão / O som duma viola alegra a solidão / Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão / Sino da capela dobra em oração / Cigarra cantando, tarde de verão / Cabocla sambando, noite de São João / Isto é o Brasir caboclo, este é o meu sertão. (Tonico, Tinoco e Walter Amaral. LP Data feliz (Chantecler em janeiro de 1964), TONICO; TINOCO, 1984, p. 142)

Trata-se de um cenário agrícola muito específico, cantado, podemos dizer, no contraponto ao discurso desenvolvimentista que, nestes meados da década de 1960, dava sustentação, entre outras coisas, às políticas públicas para o campo e à doutrina de Segurança Nacional. A estratégia dos grandes grupos econômicos internacionais consistia na implementação de projetos econômicos fortalecedores da dependência do Brasil aos EUA.

Esta foi institucionalizada com a Constituição de 1934 (governo de Getúlio Vargas) e manteve intacta a estrutura institucional do Estado Novo (1937- 1945) na Constituição de 1946, que garantiu as vias necessárias para a consolidação do capitalismo industrial através de um processo de modernização, ao mesmo tempo em que combatia as possibilidades de influência do comunismo na América Latina. Os países latino-americanos eram predominantemente agrários, países que tinham suas economias pautadas na exportação de produtos primários para os Estados Unidos e para a Europa. Assim, houve a necessidade, por parte do imperialismo, de desenvolver estes países, modernizá-los, pois foi imposta uma forma de pensar e entender as sociedades latino-americanas como países atrasados, subdesenvolvidos, devido ao predomínio agrário. Era imposta a ideia de que estes países se desenvolvessem através da industrialização e urbanização, para que assim pudessem alcançar o mesmo progresso das nações centrais. (BUENO, 2014, p. 48)

A letra da composição musical se coloca no avesso da racionalidade desenvolvimentista que se impunha à população brasileira. Ao invés de enaltecer a industrialização e a urbanização, ao contrário de exaltar a homogeneidade em relação aos países centrais, destacava-se o carro de boi, a roça, a palhoça e as plantações do roceiro. Referia-se a um modelo econômico movido à tração animal. Neste sentido, a letra de Brasil Caboclo pode

ser compreendida como invenção do cotidiano, como uma forma de consumo do discurso dominante no Brasil deste período.

O caboclo desta letra, deste Brasil bucólico, é morador de palhoça, de casa pequena feita de palha nas proximidades de um córrego, perto da mata povoada de pássaros. Ali, vive sua companheira, que é bela e mestiça, e que dança samba nas noites de festa de santo. Vale destacar que se trata de um sujeito situado num espaço constituído por sonoridades específicas: do carro de bois que pranteia ao longe, dos pássaros que fazem algazarra, da cigarra que prenuncia o verão, do sino que dobra, da viola que toa e dos tambores que sustentam o samba, que envolve a dama do sertão. Trata-se de uma paisagem eminentemente sonora, porque a própria musicalidade em que se engendra a composição é figura da mesma mescla.

Podemos considerar, então, que discurso é mais do que fala. Que o caboclo não se reduz a uma terminologia usada e criada para a produção de um saber. É, sim, resultado de um conjunto de procedimentos, que envolve a execução de instrumento musicais, a rima, a métrica, a sonoridade e o ritmo, uma situação e jogos de estratégias e táticas. Envolve também saberes a respeito da política econômica, da biologia, das teorias raciais, da antropologia e da academia, esta que estabelece até mesmo um saber crítico sobre a construção discursiva.

Ferrete (1985, p. 19) menciona que Capistrano de Abreu se referiu ao caboclo, em apenas um único sentido: o indígena que foi catequisado pelos jesuítas. Este tratamento se deu com base no desconhecimento relativo a essa expressão datada do fim do século XVI. Trata-se de uma derivação do termo tupi caá-boc (procedente do mato), que constitui, segundo o autor, citando Caldas, de “[...] um mestiço de branco com índia”, e que procedia do mato. A partir do final do século XVII, se tem esse mestiço como “homem que tem casa no mato”, sua grafia era utilizada como “cabocolo”.

Para Lima (1999, p. 9) existem duas etimologias para a definição de caboclo: a primeira condiz com a utilizada por Ferrete, ou seja, caa-boc (sem a acentuação do anterior) referente à “o que vem da floresta”. A segunda autora refaz essa etimologia de forma mais sutil, de maneira mais elegante, o que diferencia do autor anteriormente citado que impõe um maior teor de rusticidade no termo em relação a utilização da expressão “mato” na frase.

Outro modo de definição foi encontrado no Dicionário Aurélio B. Ferreira de 1971, que sugere uma derivação do tupi kari’boca, que tem o significado de “filho do homem branco”. A autora concorda que a primeira maneira de tratar esse termo foi a mais convincente, devido ao fato de, na Amazônia, caboclo era utilizado como sinônimo de tapuio, que possui equivalência à hostil, inimigo ou escravo. Era uma forma de desprezo empregada por outros grupos ao se referirem aos indígenas rivais. (LIMA, 1999, p. 9)

No Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Antônio Geraldo Cunha (2010, p.) se encontra a seguinte forma: “caboclo sm. ‘índio, mestiço de branco com índio’, ‘indivíduo de cor acobreada e cabelos lisos’ | 1781, cauouculo 1645, cabocolo 1648 tc. | do tupi kari’uoka (< kara’iua ‘homem branco’ + ‘oka’ ‘casa’).” (CUNHA, 2010, p. 108, grifo do autor)

A etimologia, a filologia e outros saberes acadêmicos articulam-se em um discurso que constitui um sujeito, um saber que é um poder, o poder de enunciar quem é tal sujeito.

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2012, p. 8-9)

É com base nas regras próprias destes saberes que se vai dizer com certo respaldo quem é o caboclo. Partindo dessa concepção, um discurso pode ser considerado enquanto rede de signos que se conecta a outros tantos discursos, em um sistema aberto que registra, reproduz e estabelece os valores de determinada sociedade, perpetuando-os ou modificando-os. O discurso, portanto, não é um encadeamento lógico de frases e palavras que pretendem um significado em si, mas, antes, ele se estabelecerá como uma importante ferramenta de organização funcional que pretende estruturar determinado imaginário social. Neste sentido, a reunião destes saberes, as suas articulações criam um conjunto de enunciados que dão materialidade, que permitem falar, que possibilitam escrever, classificar, fazer música, produzir textos, filmes, imagens, fazer narrativas sobre um sujeito anteriormente inexistente: o caboclo.

Podemos falar de alguns procedimentos para compreender parte da construção discursiva, em primeira instância o de exclusão, que se exercem de modo externo ao discurso. Eles colocam em jogo essas relações de poder e desejo. O tipo mais comum de exclusão é a interdição, que se apresenta em três tipos, que se cruzam, se reforçam e se compensam, estão em rede contínua de transformação, são: tabu do objeto, o ritual da circunstância e o direito privilegiado ou exclusividade do sujeito. Essas três interdições, Foucault as resume na seguinte frase. “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.” (FOUCAULT, 2012, p. 9). Assim, o que se pode dizer a respeito do caboclo fica restrito a determinado conjunto de enunciações, porque existem as chamadas vozes autorizadas. Uma pessoa que deixe evidenciar o seu desconhecimento sobre o tema, por exemplo, não terá direito reconhecido de palestrar sobre tal tema. Seria totalmente desacreditado um visitante vindo de um país distante que estivesse ouvindo pela primeira vez a palavra caboclo e se pusesse a

discursar sobre esse grupo, situando-os na Malásia, tendo como instrumento musical típico o oro congo e iglus como habitação. Seu discurso seria interditado. No caso haveria um rompimento com os procedimentos específicos da construção discursiva baseada na geografia, da etnologia, na história, na sociologia, na antropologia e etc.

O autor destaca que seu comentário é relacionado estritamente às nossas sociedades (ocidentais e contemporâneas). Refere que essa vontade tem se deslocado ao longo da história ao definir as formas, os domínios dos objetos e as técnicas de apoio pelas quais confere aos discursos a concernência de verdade por determinados períodos. Assim, queremos perceber os meios pelos quais o discurso sobre o caboclo adquire o status de verdade. Ao se amparar em suportes institucionais, a vontade de verdade é gerida por práticas discursivas que são, por sua vez, alentadas nesse jogo. O seu produto derradeiro, a verdade, ou melhor, a “verdade verdadeira”, também executa esse deslocamento imanente ao se vincular aos saberes e, assim, seguir os modos pelos quais esses são aplicados, valorizados, distribuídos, repartidos e atribuídos na sociedade. A vontade de verdade, portanto, a partir de instituições e de pontos de distribuição e apoio disseminados por toda sociedade, visa o exercício do poder de influência sobre outros discursos. (FOUCAULT, 2012, p. 19-20). Podemos ver a vontade de verdade nos discursos elaborados pelos desenvolvimentistas, pela academia, pelos compositores da chamada música caipira, além de outras instâncias agenciadoras do saber.

A relação de poder que se estabelece no discurso sobre o caboclo é de poder falar sobre ou falar tal sujeito. Uma de suas principais peças, podemos dizer, é o estabelecimento de uma espécie de hierarquia dos tipos humanos, algo como classificação social das etnias aproveitada ou ressignificada desde a chamada língua geral dos brasis: o guarani. Lima, (1999, p. 9) afirma que desde seu “a priori” a expressão “caboclo” referenciava uma relação de supremacia entre os próprios indígenas tupis que o utilizavam como sinônimo de tapuio, isto é, estrangeiro, para menosprezar indivíduos de outros grupos. Se havia tal conotação de superioridade nas classificações utilizadas pelos tupis é um tema a ser pesquisado, mas constata-se efetivamente um saber que se utilizou na constituição desse sujeito. A literatura é repleta de afirmações que situam o tapuio no interior e o tupi no litoral. Afirma-se que na época da ocupação portuguesa os colonizadores, incluindo aí os jesuítas, classificaram os nativos do Brasil em dois grandes grupos: os Tupis, povos de "língua geral", que viviam no litoral e os Tapuias, povos de "língua travada" que habitavam o interior. Na formação da representação do indígena deste período “Essa imagem é, fundamentalmente, a dos grupos de língua Tupi e, ancilarmente, Guarani. Como em contraponto, há a figura do Aimoré, Ouetaca, Tapuia, ou seja, aqueles a quem os Tupi acusam de barbárie.” (CUNHA, 1990, s/p)

Tomamos como base, por conseguinte, o discurso acadêmico como uma das peças constituintes do caboclo. A academia divide-o em três grandes grupos: o amazônico, o catarinense e o paulista. Trataremos assim, do caboclo e suas regiões.

No documento ANDERSON TEIXEIRA RENZCHERCHEN (páginas 59-64)