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4.2. Habitus religioso, identificação e estranhamento: uma aproximação com o VDA

4.3.1. Aspectos gerais do processo de consulta

Nossa imersão, no universo do VDA, nos possibilitou investigar fenômeno que seria justamente o momento crucial, pois, é naquele que o neófito que chega ao movimento, encontra as entidades espirituais, realizando consulta com os preto-velhos e os caboclos. Em nossa investigação, percebemos que este momento da consulta apresenta-se como um ritual de passagem, pois, é a partir deste momento que, a experiência anterior trazida pelo fiel passa a ser reordenada, e reconstruída, de modo que, ele é alçado a outro nível de experiência, que se constitui intersubjetivamente.

Ritual do Trono, Templo Dois Irmãos/Fonte: Deborah Ghelman.

Para este momento da investigação, além da observação etnográfica e das entrevistas, nos lançamos neste sistema simbólico como pacientes, passando pela consulta com os preto-velhos e os caboclo63. No templo de São Lourenço da Mata, apesar de possuir o espaço para consulta com as entidades, bem como ,o espaço para os passes, outro

63 Em todo o caso a condição de pesquisador foi sempre exposta, de modo a deixar claro que não estávamos

importante momento de contato com estas, o foco é muito centrado no ritual da Estrela Candente, no Turigano e Quadrante, nos quais entraremos em detalhes mais adiante, com especial destaque para o da Estrela Candente. Desse modo, centramos a investigação no que tange ao ritual do trono, no templo de Dois Irmãos.

O ritual do trono é um dos poucos trabalhos que ocorrem todos os dias, nos templos que possuem corrente mestra64, é considerado um dos trabalhos mais básicos realizados no VDA, justamente porque, é o momento de interlocução com as entidades. Neste momento além darem consultas, no sentido mais tradicional de escuta e de fala, eles também indicam o tratamento que o consulente deve seguir, apontando quais os rituais pelos quais o paciente precisa passar no Vale.

Também é neste momento ritualístico, normalmente, que alguns pacientes ficam sabendo que precisam desenvolver sua mediunidade, na medida em que é no contato com a entidade que é apontado como uma das causas, ou a causa, de seu (s) problema (s), questões de ordem espiritual que podem ser resolvidas com o desenvolvimento mediúnico.

O ritual do trono ocorre num espaço fechado, ao contrário de alguns rituais do VDA que ocorrem ao ar livre, geralmente num espaço que se assemelha a um galpão. Ao adentrar neste espaço, o paciente não enxerga imediatamente o interior do espaço, pois há uma parede que resguarda o interior de olhares curiosos. Normalmente há um médium doutrinador nesta entrada, disposto a fornecer informações, bem como encaminhar o paciente para o local onde este deve aguardar atendimento. Em dias de maior movimento, no caso, nos finais de semana, há normalmente mais de um médium doutrinador para tal tarefa. Além de auxiliarem no que tange ao deslocamento no interior do templo também, algumas questões de ordem mais prática também são postas, como, por exemplo, no que diz respeito às vestes no interior do templo, roupas curtas, ou decotadas, ou mesmo camisetas muito abertas não são permitidas, em sinal de respeito com as entidades, porém, quando um paciente chega ao templo para participar de algum trabalho, e está com vestes inadequadas, um médium doutrinador, normalmente, chama este paciente e lhe oferece vestes disponíveis no VDA para este fim. Observamos, como mais recorrente, o caso de mulheres com saias ou shorts curtos, que são cobertos com uma saia de tecido branco, com o símbolo do Jaguar em verde.

Na medida em que, o paciente entra no templo, ele se depara com toda a profusão de símbolos e de cores do VDA, ao fundo normalmente tocam-se músicas do hinário do

64 Nome dado aos templos que possuem atividades de caráter iniciático, e, desenvolvem algum tipo de ritual

movimento, que remetem sempre à figura do Pai Seta Branca. A entrada do templo se dá pelo lado esquerdo, normalmente segue-se no sentido horário o percurso dentro deste espaço, havendo nas laterais do templo salas menores, onde ocorrem trabalhos diversos, como o do Passe, Cura, Sudário. No espaço central do templo, encontra-se a chamada mesa evangélica, e o espaço reservado ao ritual do trono, ao qual nos ateremos neste momento.

O paciente normalmente espera em bancos fixos coloridos, externos ao espaço dedicado ao ritual, eles vão se amontoando na espera para consultar as entidades. Regularmente, fora os médiuns envolvidos diretamente no ritual – sempre organizados em pares, um apará que irá incorporar uma entidade, e um doutrinador que irá mediar a relação do paciente com a entidade, e do próprio apará com esta – há médiuns doutrinadores que organizam as consultas, chamando os pacientes por ordem de espera, quando se trata de um paciente mais idoso, com dificuldade de locomoção, normalmente este médium o acompanha, ajudando-o em seu deslocamento, e no próprio ato de se erguer ou se sentar.

O espaço reservado aos médiuns é formado por vários bancos de madeira, nas cores vermelho e amarelo, que inicialmente servia para distinguir os bancos nos quais estavam os caboclos e os preto-velhos, o que não mais ocorre no movimento, segundo os adeptos, as entidades “se misturam”, e não seria mais possível manter a separação. Tais bancos, lembram antigos bancos escolares, em que os aluno se sentavam em duplas, pois, em seu espaço cabe exatamente duas pessoas, na ponta esquerda senta-se o apará e ao seu lado direito senta-se o paciente, ao médium doutrinador cabe permanecer de pé, por trás do médium de incorporação.

Todos que estão na espera podem ver os outros pacientes recebendo suas consultas, no entanto, é impossível ouvi-los, devido à distância que se colocam, ao tom de voz em que os médiuns realizam suas consultas, e ao próprio barulho ao fundo, que é bastante intenso nos finais de semana, pois há uma série de outros trabalhos sendo realizados de forma concomitante.

Além do hinário do VDA, o odor de incenso compõe a atmosfera do local, que não lembra nada que o neófito já tenha visto, ainda que a sensação de déjà vu seja contínua. O clima vai se formando desde a espera, pois, além das aflições individuais aqueles que esperam veem outros pacientes sendo consultados, chorando, se emocionando, fazendo

sinais de agradecimento às entidades. Há uma atmosfera social, que propicia a entrega do corpo e da alma.

Para aqueles que chegam ao templo, já predispostos socialmente à crença, em torno da possibilidade de intervenção por parte das entidades em seu cotidiano, ao ver a cena dos demais pacientes recebendo suas consultas, passam a ter a certeza de que estas entidades, presentes no VDA, de fato têm algo de significativo a dizer, e de realmente podem ajudar em suas aflições, ou mesmo, dá-lhes conforto espiritual, ou ainda, dar cabo de sua busca espiritual, encontroando um lar para seu espírito, ou apenas ser mais uma experiência para aquele que é um frequentador esporádico, que está inscrito no circuito neo-esotérico.