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ASPECTOS JURÍDICOS DA APLICAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE COMO

4 POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE COMO

4.1 ASPECTOS JURÍDICOS DA APLICAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE COMO

Ultimados os estudos acerca das penas em nosso ordenamento jurídico e das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95, fundamentais para a análise da legalidade da inovação penal que ora se propõe, há que se avaliar se, sob as perspectivas jurídica e humanitária, é possível e viável aplicar a doação de sangue como pena restritiva de direitos, bem como em que hipóteses tal novidade será admitida e se, de fato, terá o condão de trazer à sociedade os benefícios esperados.

4.1 ASPECTOS JURÍDICOS DA APLICAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE COMO MODALIDADE DE PENA RESTRITIVA DE DIREITOS

No decorrer deste trabalho bastante se discorreu acerca da necessidade de que o exercício do direito não se restrinja à aplicação pura e simples das normas positivadas, uma vez que, conforme já se afirmou no primeiro capítulo deste estudo, as mudanças sociais comumente antecipam-se à atuação do legislador.

Assim, é imperativo que a atuação dos operadores do direito tenha sempre como escopo a busca pela superação das normas ultrapassadas pelos avanços sociais através de inovações que façam com que nosso direito reflita, efetivamente, os anseios da sociedade e lhe traga benefícios reais.

Foi desta necessidade de modernização do direito, aqui especificamente no que toca às penas, que surgiu a ideia de transformar o benefício da transação penal, previsto no artigo 76 da Lei n. 9.099/95, em uma oportunidade de avolumar o número de doações de sangue em nosso país, fazendo com que a pena exerça de fato seu papel de utilidade social e possibilitando ao apenado o exercício da nobre tarefa de salvar vidas.

Para que tal inovação não fira os direitos e garantias fundamentais assegurados ao ser humano, entretanto, é necessário que sua aplicação se dê com restrições, atendendo ao requisito mais importante para a sua adoção: a voluntariedade.

Por esta razão é que, com amparo em toda a pesquisa realizada e sempre dedicando especial atenção ao princípio da humanidade, este trabalho visa à implementação da doação de sangue exclusivamente como uma das alternativas propostas ao suposto autor do fato em virtude do benefício da transação penal.

Isto porque, conforme já se afirmou, na transação penal a sanção alternativa só é aplicada com a expressa anuência e concordância do autor do fato, a quem é assegurado não só o direito de optar entre a aceitação do benefício e o prosseguimento da ação penal, mas também de escolher dentre as propostas que lhe são formuladas a que melhor se adequa às suas possibilidades de cumprimento, de modo que, nestes moldes, o autor do fato só realizará a doação de sangue se esta for a sua vontade, ou seja, de forma voluntária.

É forçoso mencionar que a inclusão da doação de sangue como pena restritiva de direitos dentre as penas alternativas propostas na transação penal já vem sendo aplicada desde o ano de 2010 na cidade de Sorocaba, estado de São Paulo, onde foi inicialmente idealizada pelo Juiz de Direito Jayme Walmer de Freitas, titular da 1ª Vara Criminal daquela comarca.

Importante, ainda, destacar que a inovação foi muito bem acolhida pelos demais magistrados da comarca, bem como pelos Promotores de Justiça, Defensores Públicos e Advogados que lá atuam, os quais passaram a dedicar-se para o sucesso da implementação de tal alternativa penal que desde então vem apresentando resultados surpreendentes, uma vez que esta passou a ser a modalidade mais adotada pelos autores de infrações de menor potencial ofensivo a quem é formulada a proposta de transação penal.

Nas palavras de Octavio Bueno, defensor público atuante na 1ª Vara Criminal de Sorocaba, “a grande maioria dos entrevistados opta pela doação de sangue, pois não despenderá valor algum e, ao mesmo tempo, fará um grande bem para seu semelhante, inclusive salvando vidas”. (FREITAS, 2011).

Destaca-se, ademais, que a doação de sangue não pode ser a única alternativa posta à escolha do autor do fato na audiência preliminar, porquanto restaria comprometida a voluntariedade do ato, de modo que deverão ser formuladas duas ou mais propostas de sanções alternativas, dentre as quais figurará a doação.

Aliás, é pertinente destacar a impossibilidade de adoção da doação de sangue como condição imposta para o período de prova da suspensão condicional do processo que, embora também seja uma medida despenalizadora prevista na Lei n. 9.099/95, tem aplicação bastante diversa da transação penal.

Isto em razão de que as condições a serem cumpridas no período de dois a quatro anos em que o processo fica suspenso, conforme já se afirmou neste trabalho, são impostas pelo juiz e não acordadas entre ele e o autor do fato, de modo que desta forma se comprometeria o caráter de voluntariedade da doação de sangue, o que inviabiliza a sua aplicação.

Ora, não sendo possível adotar a doação de sangue como condição do sursis processual tendo em vista a necessidade de que seja observada a voluntariedade no cumprimento de tal sanção alternativa, tampouco há que se admitir tal modalidade como substituta de penas privativas de liberdade impostas em sentença penal condenatória por uma simples razão: tais substituições também são impostas arbitrariamente pelo juiz, na forma do artigo 44 do Código Penal, de modo que mais uma vez não se observaria o principal requisito para a inserção da doação de sangue na esfera penal. (BRASIL, 1940).

A propósito, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal pela impossibilidade da aplicação da doação de sangue em substituição à pena privativa de liberdade imposta por sentença penal condenatória, ao julgar, em 27 de novembro de 1990, o Habeas Corpus n. 68.309, oriundo do Distrito Federal.

Com efeito, segundo se afirmou na referida decisão, se imposta, a doação de sangue poderá configurar pena cruel, vedada pela Constituição Federal, na medida em que a muitas pessoas a doação de sangue é capaz de causar sofrimento físico, como é o caso daqueles a quem qualquer procedimento médico causa temor, ou moral, como se dá dentre os sujeitos que, por convicções pessoais, não admitem tal prática como legítima.

Assim, mais uma vez fica clara a importância da voluntariedade do ato de doar sangue, ainda que este seja praticado em razão de benefício penal como ora se propõe, já que se o autor do fato assim escolher é porque, com certeza, tal prestação não lhe ferirá o sentimento de dignidade nem lhe causará intenso sofrimento físico ou moral, de modo que não terá a doação de sangue o caráter cruel vedado pela Constituição Federal às penas, o qual, aliás, é bastante subjetivo.

Desta forma, resta assentado que a inovação de que trata este estudo destina-se exclusivamente a integrar uma das propostas formuladas na transação penal, tendo em vista que esta é a única seara em que a adoção de tal sanção pode dar-se de forma inteiramente voluntária.

Pertinente pontuar, ainda, que não há que se admitir a sua aplicação aos delitos cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que, na forma do artigo 41 da Lei n. 11.340/06, a estes crimes, independente do quantum da pena, não se aplica a Lei n. 9.099/95. (BRASIL, 2006).

Não se aplica a doação de sangue, ademais, ao delito de porte de drogas para consumo pessoal, tipificado pelo artigo 28 da Lei n. 11.343/06, pois, embora tal infração permita a transação penal, as penas admitidas pelo referido tipo penal restringem-se àquelas previstas em seus incisos, quais sejam, advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de

serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Além disso, tratando-se o autor do fato de usuário de substâncias entorpecentes, já não se enquadraria nos requisitos para a doação, de modo que restaria inviável a doação de sangue ainda que lhe fosse juridicamente cabível. (BRASIL, 2006).

Uma vez demonstrada a possibilidade da inclusão desta nova modalidade de sanção alternativa na prática jurídica dos Juizados Especiais Criminais do país através da transação penal, há que observar que da mesma forma como não configura pena cruel, a doação voluntária de sangue também não fere o princípio da humanidade.

Consoante já se discorreu, consideram-se penas desumanas aquelas que criem deficiência física, como amputação, castração, esterilização e intervenção neurológica, ou que gerem uma consequência jurídica inapagável.

Que a transação penal não acarreta consequências jurídicas inapagáveis é inegável, uma vez que sequer consta de certidão de antecedentes criminais ou gera reincidência, de modo que não fere, sob nenhum aspecto, o princípio da humanidade.

Em relação à modalidade da doação de sangue também não se pode arguir a inobservância do princípio da humanidade, pois embora se dê através de pequeno procedimento médico mediante inserção de agulha para a coleta do sangue, não gera deficiência física nem causa riscos à saúde do doador.

Aliás, tal informação consta de forma clara e inequívoca do site do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina – HEMOSC:

A doação é a retirada de aproximadamente 450 ml de sangue, através de inserção de uma agulha em um dos braços.

A coleta é feita por pessoal capacitado e sob supervisão de um médico ou enfermeiro, garantindo o bem estar do doador.

Doar sangue não dói, nem prejudica a sua saúde [...].

Doar sangue é um ato simples, tranquilo e seguro que não provoca risco ou prejuízo à saúde. (HEMOSC).

É evidente, desta forma, que a adoção da doação de sangue como pena restritiva de direitos dentre as penas alternativas propostas na transação penal não viola o princípio da humanidade.

É importante tecer, ainda, um breve comentário apenas para afastar eventual entendimento de que tal modalidade de pena possa ferir o princípio da igualdade, visto que, embora nem todas as pessoas reúnam condições para doar sangue, seja por motivos de cunho moral, psicológico ou por impedimentos físicos, a estas pessoas não se obstará a escolha de outra sanção alternativa para o cumprimento da transação penal.

Além disso, mesmo as alternativas que atualmente são mais frequentemente oferecidas, a prestação pecuniária e a prestação de serviços à comunidade, nem sempre abarcam todos os beneficiados, que por vezes acabam não podendo cumpri-las em razão de não disporem dinheiro ou tempo.

Uma última observação que não se pode olvidar é o caminho jurídico pelo qual se poderá adotar a doação de sangue.

Conforme afirmado alhures, há divergência de entendimentos acerca da natureza jurídica da medida aplicada na transação penal, uma vez que enquanto alguns doutrinadores afirmam tratar-se de sanção penal, outros defendem que sequer trata-se de pena.

Assim, caso se adote o entendimento de que a medida aplicada em razão da transação penal configura pena, com seus requisitos e características, há que ser enquadrada a doação de sangue na pena restritiva de direitos consistente em prestação de outra natureza, sobre que dispõe o artigo 45, §2º, do Código Penal, ao determinar que “se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza”. (BRASIL, 1940).

Este é, assim, o caminho jurídico que melhor acolhe a inovação da doação de sangue sob a perspectiva de tratar-se de pena a medida ajustada entre as partes na transação penal, pois, conforme já se afirmou “[...] a ‘prestação’ pela qual a pena de ‘prestação pecuniária’ pode ser ‘substituída’ poderá ter qualquer outra natureza, menos a pecuniária, caso contrário, não será ‘de outra natureza’”. (BITTENCOURT, 2012, p. 658).

Aliás, frisa-se, mais uma vez, que a prestação de outra natureza configura hoje relevante avanço no que toca às sanções penais, uma vez que permite ao juiz, observados os princípios constitucionais, adotar uma sanção adequada ao caso e hábil a promover a ressocialização do apenado, ainda que não prevista em nosso ordenamento, como tem ocorrido com o pagamento de cestas básicas.

A propósito, recorre-se, mais uma vez, às palavras de Fernando Capez: “a prestação pecuniária poderá consistir em prestação de outra natureza, como, por exemplo, entrega de cestas básicas a carentes, em entidades públicas ou privadas. A interpretação,

aqui, deve ser a mais ampla possível”. (CAPEZ, 2008, P. 417, grifo inexistente no original).

Evidente, outrossim, o cabimento da interpretação ampliativa do artigo 45, §2º, do Código Penal para incluir nova modalidade de pena que trará benefícios não só ao próprio autor do fato, que deixará de ser submetido aos inconvenientes de sofrer um processo criminal, tendo, para tanto, apenas que praticar um ato de altruísmo que muito pouco esforço lhe demandará, mas também à sociedade, na medida em que proporcionará um aumento do

número de doações de sangue e da consciência das mais variadas camadas sociais acerca da importância de doar.

Por outro lado, caso se entenda que não se trata de pena, conforme defendem autores como Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes ao afirmarem que “na medida em que não existe reconhecimento da culpabilidade (na transação penal), não há que se falar em pena (logo, nada impede que um novo processo seja desenhado, desde que fundado na autonomia da vontade do suspeito ou imputado)” (2013, p. 487), os benefícios provocados por tal sanção penal alternativa serão exatamente os mesmos.

A justificativa jurídica de sua admissão é que diferirá, visto que, tratando-se de sanção alternativa, não há que se falar em restrição às penas previstas em nosso ordenamento jurídico, cabendo ao Ministério Público e ao Magistrado propor e homologar, respectivamente, desde que com a concordância do autor do fato, a sanção que melhor terá o condão de conscientizá-lo e educá-lo, além de beneficiar a sociedade.

Isto posto, seja através do entendimento de se tratar de pena ou de que configura sanção alternativa, o importante é que a medida seja aplicada sempre com o consenso do beneficiado, de modo que a doação de sangue se dê de forma voluntária, e que tal inovação seja efetivamente posta em prática a fim de que gere à sociedade e ao autor do fato os benefícios almejados.

4.2 ASPECTOS HUMANITÁRIOS DA APLICAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE

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