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4 ESTUDO DE CASOS

4.1 Aspectos metodológicos

Conforme apresentado na introdução deste documento, em termos estruturais a tese pode ser compreendida em duas partes:

→ A primeira parte, posterior a introdução, corresponde os capítulos 2 e 3, trata da fundamentação teórica da pesquisa e é formada, por sua vez, pelos dois primeiros capítulos. O segundo capítulo é de levantamento teórico preliminar e geral de conceitos não diretamente relacionados ao campo da arte, mas que vão embasar determinadas práticas contidas dos projetos artísticos, especialmente nos processos que se projetam no cotidiano criando momentos e espaços singulares. Já o terceiro capítulo é destinado à revisão do conceito de Situação Construída e apresenta um breve apanhado de autores e de ações artísticas representativas dessa noção.

→ A segunda parte, que compreende o quarto capítulo, retoma a base teórica apresentada na primeira parte, aplicando conceitos discutidos na análise de projetos artísticos expostos como casos. Nesse momento, houve especial interesse em assimilar conceitos situacionistas e suas revisões que corroborassem com a criação de parâmetros autorais para análise dos casos. Esse exercício teórico se deu a partir de um entendimento daquilo que compõe do preceito da Situação Construída situacionista e das discussões acerca de um contexto social e cultural contemporâneo que os comentadores dessa noção fizeram suscitar.

Abaixo, destacamos os elementos básicos que compõem e interagem continuamente na ideia prática da Situação Construída situacionista, verificados a partir dessa pesquisa.

1. “Cenários materiais da vida” – Refere-se ao meio urbano e a possibilidade de utilização dos meios técnicos da arquitetura e do urbanismo para aplicação de conteúdos políticos com fins de realização da revolução social. Visava-se à construção artificial de ambiências completas (“Urbanismo Unitário”), efêmeras e nômades,

para realização de um “novo teatro de operações cultural” a ser vivido coletivamente.

2. “Comportamentos que ele provoca e que o alteram” – Refere-se a um comportamento experimental e coletivo que busca promover “um jogo lúdico de acontecimentos” construtivos, a ponto de constituir um novo momento que emerge da vida normatizada, libertando assim, o individuo de sua alienação cotidiana.

A partir desses elementos, e de suas implicações, observaremos não apenas suas ocorrências ou ausências, mas, sobretudo, o modo como se manifestam (ou não) articulados num contexto de arte contemporânea recifense, de modo a indicar novas categorias de análise para do tema. Além disso, recorremos implicações surgidas a partir da uma revisão que almeja situar tais preceitos num contexto de produção cultural atual. Nesse ensejo, na última seção do capítulo anterior – 3.3 A Situação Construída hoje –, fizemos um levantamento do estado da arte da noção de Situação Construída e encerramos esse bloco com um breve mapeamento de projetos artísticos representativos desse preceito na arte contemporânea produzida a partir da década de 1980 no Brasil e em Recife.

A partir do referencial teórico levantado, verificamos no livro Constructed situations: A New History of the Situationist International (2014), de Frances Stracey, abordagens e intuitos comuns com a presente pesquisa. Ou seja,

examinar a noção de Situação Construída em suas propriedades contextualizadas na atualidade, como base para análise de projetos artísticos contemporâneos102.

Desse modo, para estabelecer um panorama inicial naquela subdivisão da tese, recorremos às “lições” situacionistas estabelecidas pelo autor para uma possível atualização da ideia de Situação Construída. A partir de suas categorias de análise, anteriormente apresentadas (“Resistência digital”, “Recuperação das ruas” e “Nunca trabalhe”), estabelecemos um critério de levantamento de ações adaptado ao contexto local. Ainda optamos por abordar os projetos realizados

102 No caso de Stracey, além de analisar a noção de Situação Construída em projetos artísticos,

por agentes que se identificam como artistas, ou dentro de um sistema de arte. Assim conduzidos, promovemos aproximações cabíveis às sínteses propostas por Stracey para traçar critérios de análise iniciais, a serem mais elaborados e ampliados na discussão do estudo de casos investigados em processos artísticos contemporâneos no Recife.

A intenção é conhecer os projetos de alguns artistas e grupos realizadores de ações artísticas públicas na cidade do Recife que transformam temporariamente determinados espaços e comportamentos, de modo a transformar a experiência cotidiana automatizada. A partir da teoria e da prática situacionista, trata-se, pois, de examinar as possibilidades e limitações de se pensar a realização da arte que promova um “lugar outro” na vida cotidiana – inclusive num campo mais estrito da arte.

Embora os projetos selecionados para estudo de caso aconteçam de maneira efêmera e em condições limitadas quanto ao objetivo situacionista – visto que não prezam por uma discussão do espaço urbano dado e estejam, em certa medida, mais submetidas ao sistema da arte –, operam quebrando determinadas normas dos espaços construídos e nos modos de fazer arte. São propositores, portanto, de utopias situadas, no limiar entre arte e vida cotidiana, articulados em espaços físicos, virtuais, nos corpos e na constituição de subjetividades.

Como hipótese, pretende-se verificar em que medida as práticas da arte contemporânea produzidas na cidade do Recife, são provocadoras de transformações no âmbito da cotidianidade social e cultural; de ações políticas

éticas e estéticas.

E como tese, é proposto somar aspectos de atualização da noção de Situação Construída e sugerir novas possibilidades de investigação do tema, pensando em um contexto local e contemporâneo. Para tal propósito, na discussão dos casos, faremos aproximações e distanciamentos do ideário situacionista até início da década de 1960, quando essa noção de Situação Construída é abandonada das pautas do grupo (GROSSMAN, 2006, p. 83).

Os projetos que selecionamos para estudo de caso não usam exclusivamente o espaço público urbano como mote para critica e ação de transformação do cotidiano. E isso acontece por duas razões. Uma, assimilada a partir das análises de Stracey, quando aponta para transformações ocorridas

no cotidiano atual, marcado pelo advento de uma vida social digital e pelas

mudanças nas relações de trabalho – e a partir daí compreendemos que a

própria noção de espaço urbano na atualidade é ampliada.

E outra, refletida a partir de escritos103 dos próprios situacionistas, pós- dissolução do grupo e reconhecimento de alguns fracassos, no qual indicam como sujeitos capazes de realizar uma ação situacionista contemporânea aqueles cuja existência é dissidente, ou seja, aqueles vulneráveis aos efeitos de problemas macropolíticos no próprio corpo (sob determinadas circunstâncias sociais e históricas, negros, homossexuais, mulheres, crianças, entre outros). E nesse ponto indicamos que para uma revisão atual do principio de Situação Construída é necessário haver uma mudança de paradigma quanto à possibilidade de ação estética que vislumbra alguma transformação social; e ele nos indica a ação mínima da escuta, do corpo e de seus afetos. Esse gesto mínimo de disponibilidade seria a fagulha para construção de encontros e a formação de um corpo coletivo, aberto a estar com e a estar em devir. Um corpo público e heterogêneo que potencializa uma infinidade de relações “proibidas” ou inesperadas que, por fim, conformam o urbano e a própria vida.

O estudo de caso é uma ferramenta de pesquisa usada para abordar fenômenos amplos e complexos que não podem ser estudados fora do contexto no qual ocorrem. Tem por objetivo avaliar e aprofundar conhecimentos ainda pouco consolidados. Nesta pesquisa, o estudo de caso foi adotado como estratégia metodológica por consistir, então, em uma forma de aprofundar uma noção-ação ampla (de uma prática com objetivo de revolucionar aspectos da vida inteira), ainda pouco estuda no recorte proposto. Ou seja, na indicação de possibilidades e limitações de aplicação do conceito de Situação Construída situacionista, em análise dentro de um contexto reduzido, isto é, em três projetos de arte contemporânea produzidas em Recife, a saber, “Risco!”, (desde 2013),

“Plus Ultra” (de 2006 a 2013) e “Casa como convém” (2007 a 2012).

De pronto, o subtítulo de cada caso sinaliza possibilidades de constituição de novos parâmetros de analises dos preceitos da Situação Construída. No primeiro caso é estudado a prática metodológica do grupo aberto de estudos em

103

Cf. DEBORD; SANGUINETTI. The Veritable Split in the International. Chronos Publications: London, 1990.

desenho e performance “Risco!”, com o subtítulo ‘modelo vivo como roteirista

de novas sessões’. Nele pretendemos investigar como a atualização da

tradicional prática de estudo artístico com modelo vivo, entendida em sua autonomia estética, é capaz de construir novas situações a partir de uma inversão do papel do modelo vivo.

No segundo caso, ‘“Plus Ultra”: situações construídas na hermenêutica

de uma artista-atleta’ – projeto artístico de Oriana Duarte –, investigamos como

o dispositivo performático que constitui um novo sujeito social, entre ser artista e ser atleta, é capaz de suscitar novas situações naquele ambiente de prática esportiva (“impróprio” para arte), atravessado pelo sujeito artista (“impróprio” para o esporte).

No terceiro caso, ‘“Casa como convém”. Ponto de chegada = Ponto de

partida’ é abordada como se dá a construção de situações na convivência entre

um grupo de amigos (artistas e outros agentes no campo das artes) que tornam momentaneamente públicos seu modo de vida experimental, em ações caseiras e urbanas.

Utilizamos como fonte de dados para pesquisa dos projetos artísticos analisados, o contato direto com trabalhos artísticos – quando cabível uma vivência dos processos –, entrevistas com artistas e grupos realizadores (e demais facilitadores indiretos da realização das ações) dos projetos, pesquisas em plataformas online, redes sociais virtuais, leitura de textos e imagens em material de divulgação, livros e catálogos, além de visita a acervos que continham índices, entre outros registros das intervenções em coleções particulares, galerias comerciais e museus.

Para ordenação de análise dos casos, seguimos dois critérios, um cronológico e outro de proximidade a um sistema das artes visuais; dos mais recentes aos mais antigos e dos que mais utilizam processos de um fazer artístico mais tradicional aos que rompem, momentaneamente, com esse sistema. Desse modo, analisamos primeiramente os processos mais recentes que continuam em atuação, do grupo “Risco!” – que se debruça em técnicas artísticas mais convencionais, como o desenho de observação.

Em seguida, aqueles em que seus atores encerraram (ou adormeceram) determinada prática, o projeto Plus Ultra da artista Oriana Duarte, que utiliza muito mais recursos do cotidiano, no caso esportivo, mas que é viabilizado

através de fomento à cultural e, portanto, lidam com a burocratização do “sistema da arte”, e por fim, a “Casa Como Convém”. Nesse último, as ações acontecem plenamente com recursos do cotidiano, por vezes mesmo num âmbito privado, com ou sem vínculo com o campo da arte, e os participantes continuam convivendo (esporadicamente, e de modo diferente de sua conformação original) e operando parcerias em trabalhos artísticos, mas sem o entendimento dessas experiências como ações da “Casa”.

Ponderamos na análise dos casos mais recentes, e ainda em processo de realização, que nossa reflexão assume os riscos de precipitações ou inferências pouco conclusivas, embora se entenda que estas ações são impregnadas de reflexões e intenções de significado relacionadas às hipóteses dessa pesquisa, independente do seu momento de vida útil. Considerando a análise de projetos na qual a autora está intimamente envolvida nos seus processos de instauração, no caso, do grupo “Risco!”, esta pesquisa poderia ser qualificada, em parte, como pesquisa em arte, o que pressupõe parâmetros metodológicos que se distinguem da pesquisa científica, e que também se diferenciam da pesquisa de outras áreas das humanidades mencionadas, como até mesmo se diferenciam da pesquisa sobre arte104 concebida a partir da obra finalizada.

A pesquisa em arte constitui-se numa modalidade específica de pesquisa com características muito próprias de seu campo. Pressupõe uma abordagem específica do objeto artístico e requer questões metodológicas também específicas. Nesse parâmetro de pesquisa, um dos problemas que fará parte do debate comum dos casos é a variedade de “negociações” próprias do processo de instauração dos projetos analisados enquanto obras, dentro de um contexto

104 É bastante comum haver uma diversidade extensa de maneiras de subdivisão da área de

artes enquanto pesquisa acadêmica no Brasil, que variam em diferentes programas de Pós- Graduação. Essa diversidade pode ser reflexo do histórico de sua inclusão no campo acadêmico- científico, e no sistema nacional de Pós-Graduação, que aconteceu de maneira tardia e polêmica (basta lembrarmos que até meados de 1980 não dispunha de uma área junto ao CNPq). Diante desse panorama, parece-nos adequado considerar uma divisão mais ampla de subáreas como a do programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS que estabelece dois braços de pesquisa no campo da arte: uma “em” arte e outra “sobre” arte. A pesquisa em artes foca no estudo dos processos de criação da obra e é realizada por um artista-pesquisador. Dessa forma o pesquisador debruça-se “sobre” sua própria prática poética. Já a pesquisa sobre arte, promove o estudo da obra de arte a partir do produto final, seus processos de significação e seus efeitos em contexto social (processos e meios de legitimação e circulação). Atua especialmente nos campos da História, Teoria e Crítica.

de fazer artístico que preza pela manipulação e realização no cotidiano, mas que, ao mesmo tempo, é promovido predominantemente por agentes que fazem parte do campo da arte e por vezes são realizados com recursos ou nos espaços especializados da arte.

Por essa ocasião, recorremos aos três regimes de identificação da arte proposto pelo filósofo francês Jacques Rancière (1940 –), parte de uma pesquisa mais ampla desse autor sobre as relações entre arte e política e expõe o conceito de “Partilha do Sensível”105. Pela complexidade e diversidade de práticas, objetivos e espaços de difusão, entendemos que os projetos aqui analisados indagam as ideias de regimes propostas por Rancière (2012), na medida em que provocam lugares estanques de uma concepção modernista de arte, ou seja, em sua autonomia, com claras divisões entre artista e público e entre processo e resultado.

É válido pensar que essas instâncias refletidas são um recorte bastante reduzido dentro do leque de possibilidades de ações, e de interpretações, que poderiam ser representativas do ideário situacionista sob a ótica da noção de Situação Construída. Mas é justamente através de um provável “afastamento” da teleologia situacionista que realizamos inferências próprias e inovadoras a partir de uma revisão dessa noção. Tal revisão implica reconhecer limites e possibilidades de aplicabilidade desse conceito num estudo estético da arte contemporânea do Recife.

Para tal, no momento de discussão e comparação dos casos estudados, pretendemos elencar processos, elementos e tipos a partir da teoria e da prática do grupo situacionista, atravessada por outros conceitos / autores discutidos desde o segundo capítulo da tese. O somatório dessas bases teórico-práticas nos auxilia a perseguir em todos os trabalhos, de que modo eles provocam a ideia de uma ética criativa – a transformação e ressignificação da vida cotidiana (e também do campo da arte) – enunciada como aspiração da Internacional Situacionista que tange, de algum modo, todos os projetos aqui estudados.

105 “Eu chamo de Partilha do sensível este sistema de evidências que dá a ver ao mesmo tempo

a existência de um comum es as divisões que definem os lugares e as partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa ao mesmo tempo um “comum” partilhado e partes exclusivas. Esta repartição das partes e dos lugares se funda sobre uma partilha dos espaços, dos tempos e das formas de atividades que determinam a maneira mesmo na qual um comum se presta a participação e na qual uns ou outros são parte desta partilha”. In: 1 RANCIÈRE, Jacques. A

Como proposto anteriormente, nossa ideia é ampliar aqueles critérios de análise norteadores de um panorama inicial de ações artísticas, focando, num âmbito local, projetos de novas situações plenamente realizadas que ora se aproximam, ora se distanciam dos elementos que compõe a noção de Situação Situacionista e, portanto, complexificam o uso desse conceito no campo da crítica estética e social. Para tal, houve ocasiões em que o referencial teórico estabelecido na primeira parte da tese foi ampliado.

Desse modo, dentro do corpo de análise de cada um dos casos e no momento de discussão comparativa entre eles, quando necessário, novos autores e conceitos são levantados, ou outras contribuições teóricas de autores anteriormente citados são remontadas nas apreciações de cada caso, como veremos a seguir.

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