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Aspectos da recomposição territorial

PARTE II AS RESEX E OS ATORES, NA TERRA E NO MAR DA AMAZONIA

CAPÍTULO 4 CURURUPU, RESEX DE ILHAS E DA MOBILIDADE

4.2 Aspectos da recomposição territorial

Com o decreto assinado, nasce oficialmente uma Resex. Com o decreto em mãos, membros da Amremc, técnicos do CNPT/Ibama e prefeito retornam a Cururupu com a missão de “validar”93 a Resex. Provavelmente, cada um com uma interpretação

pessoal do compromisso e dos desafios que acabaram de selar. Em termos práticos e, no sentido aqui adotado, inicia-se um processo de “institucionalização e recomposição de um novo território” que muda em diversos aspectos as feições do território tradicional, em particular das relações e interações sociais que os atores locais desempenhavam quotidianamente.

No sentido aqui analisado, a criação de uma Resex representa, em termos de ação pública local, a emergência de um novo território, tal como formulado por Teisserenc (2009; 2013). No caso da Resex de Cururupu, a criação desse “novo território” se deu aos poucos e ainda se encontra em fase de construção. A criação da Resex passa a representar um marco de mudanças e de novas configurações das relações sociais, políticas e ambientais, que os atores locais passaram a estabelecer entre si e com seus territórios tradicionais. Uma das primeiras alterações das relações com o território surgiu logo no início com a ilha de Mangunça, no processo de regularização fundiária, uma das primeiras etapas do processo de “validação” da Resex, realizado pelo CNPT/IBAMA.

A área da Resex, mesmo que ocupada, não possuía situação fundiária regularizada, o que provocou no início constantes ameaças aos moradores por parte de pessoas que se diziam proprietárias das terras. Este é o caso da ilha de Mangunça que, antes da criação da Resex, era reconhecida e legitimada pelos moradores como

93Os termos “validar a Resex” e “validação da Resex” são empregados nos documentos oficiais do

“uma ilha que possuía dono”, no sentido de ser propriedade de alguém. O fato de passar a compor uma Reserva Extrativista protegida por lei e sob a égide do Governo Federal fez surgir seus supostos “proprietários” desencadeando conflitos e reposicionando a ação de alguns atores. Este fato nos dá um indício de como as relações e as percepções do território tradicional são alteradas na construção do “novo território”

Como exemplo, seu Zequinha, 70 anos, nascido na ilha de Mangunça, à época presidente do Sindicato dos Pescadores, conta que “quase foi preso por conta disso”, pois ao ter assinado documentos pelo sindicato solicitando a criação da Resex, passou a ser visto pelos herdeiros do suposto proprietário como “um põe fogo”, como “um animador para que tomassem a ilha deles”.

Outro exemplo da alteração dessa percepção é a desconstrução da percepção de um território tradicional formado por ilhas relativamente “isoladas”94, algumas com

características relativamente próprias, no que diz respeito a práticas associativas, regras de uso e modalidades dos apetrechos de pesca, que vai cedendo lugar à construção de uma nova percepção do território, a Resex, o “novo território” composto pelo conjunto de ilhas.

A incorporação dessa nova percepção pode ser demonstrada pela presidente da Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Marinha de Cururupu (Amremc) quando fala da representação da Resex em eventos organizados pelo poder local, particularmente dos motivos de rompimento das relações entre membros da Amremc e a Prefeitura Municipal na gestão do prefeito Jose Francisco Pestana:

a gente vai, eu ainda vou muito representar a reserva em Cururupu, mas começou a chatear as coisas pra gente quando em seminários ele [refere-se

94 Relativamente isoladas, pois atividades de iniciativa conjunta como torneio de futebol envolvendo

diversas ilhas já existiam antes da criação da reserva conforme relatado por moradores das ilhas de Lençóis e Mirinzal.

ao prefeito] nunca falava da Resex, em seu discurso falava ‘comunidade praiana’, ‘zona praiana’, ‘as ilhas’, mas nunca “reserva extrativista marinha”, aí a gente foi se aborrecendo com ele” (informação verbal).95

Apesar do termo Resex ser utilizado por alguns moradores, entre eles os que participam diretamente das atividades de gestão da reserva, constatamos o termo “Resex”, enquanto percepção de um “novo território” se encontra em construção, pois não é amplamente “autoatribuído” pelos moradores “de dentro” e nem “atribuído” ou “reconhecido” pelos “de fora”. Mesmo a presidente da Amremc, em algumas ocasiões, usa o termo “unidade”, que é utilizado pelos gestores do ICMBio.

A percepção de um novo território também se faz presente pela incorporação de novas regras de uso do território, configurando-se em um dos desafios de uma Resex, sobretudo com as dimensões territoriais da Resex de Cururupu. A elaboração e adoção dessas regras se mostram como um processo complexo e delicado, visto que exigem abertura, diálogos, trocas, adoção de novas práticas, construção e reafirmação de identidades coletivas e individuais exigindo o que Pierre Teisserenc (2013) chama de “aprendizagem coletiva”.

A dimensão desse desafio pode ser percebido na fala do atual chefe da reserva ao abordar a retomada em 2011 da reelaboração do Plano de Uso:

a Resex, ela é formada por treze ilhas, cada uma com a sua cultura e seu costume. Mesmo elas sendo próximas ali quilômetros uma das outras, elas são ilhas, o nome já diz, são muito isoladas. Então, em termos de ICMBio, o Mirinzal (se refere a ilha de Mirinzal) que é lá no norte tem que ter e assumir as mesmas normas de convivências que Mangunça que está no sul, que não tem nada a ver assim em termos de sustento, a maneira que eles extraem os recursos, quais as modalidades que usam, que são diferentes. Então é muito dificil o ICMBio dar normas. Na verdade, a gente não dá normas. A gente só está lá relatando o que eles trouxeram para construir uma norma. Todas normas são vindas deles. Mas o problema é esse, chegarmos a um consenso, onde a mesma norma vai atingir todos, mas ela é trazida especialmente por algumas comunidades. Elas são trazidas, a gente vai absorvendo e expondo aos outros. E aí a gente faz um esforço para os outros entenderem, porque essa é a dificuldade (informação verbal).96

95 Entrevista concedida pelo Presidente da Amremc em 29.05.2011.

A dificuldade de consenso na adoção de novas regras do uso do território é relatada pela ótica dos moradores por meio de um trecho da fala do secretário geral do Sindicato dos Pescadores de Cururupu, em 2011, quando justifica o motivo de ter deixado de participar das atividades da Resex há mais de quatro anos:

fazem mais de quatro anos que deixei de acompanhar a reserva; até nós daqui do sindicato deixamos de acompanhar, que eu tive conhecimento de Kátia e Mary Jane, filha de um grande conhecido meu, Miguelzinho, e eu era presidente do sindicato nessa época, a gente teve um bom conjunto de trabalho. Mas o que foi que aconteceu? Como presidente do sindicato querendo levar pautas as reuniões houveram muitas coisas que eu não concordei. Por exemplo, eles diziam: ‘olha vamos ter uma reunião lá na praia de Lençóis, cada praia deveria levar oito pessoas para tratarmos de temas para vocês viverem melhor’, mas quando a gente chegava lá já havia uma lista de coisas do jeito deles do pessoal do IBAMA junto com reserva, então eu não concordava com algumas coisas. Tivemos diversos confrontos a respeito de madeira. Eu não posso querer que na minha praia se viva de fazer carvão, mas posso fazer uma carvoeira para meu uso, nem todo mundo lá pode ter um fogão com botijão. Outra coisa eu tenho uma casa lá em Mangunça, é uma praia que tem muita maçaranduba, eu tenho uma casa lá que tem 10 esteios e eu não poderia tirar uma madeira lá? Então essas coisas eu vinha discordando com eles. Colocaram áreas de redes, de Malhadeira, Curral. Eu concordei com malhadeira com zangaria, agora a malha eu não concordei porque colocaram uma malha muito grande que não pega nem piré, camarão cascudo, não pega nenhum, então como é que o pessoal ia sobreviver? Aí o que aconteceu? Eles [se refere aos técnicos do CNPT/IBAMA] passaram a me deixar com bolsa pronta esperando e não vieram mais me buscar para me levar para as reuniões. Aí chegou a tempo das eleições para diretoria do Sindicato que foi a Mocinha que se elegeu presidente, foi o Marcelo que veio como Chefe da reserva, aí foi mesmo que eu me afastei, tomei essa decisão e não tive mais contato com eles (informação verbal).97

Os depoimentos do secretário geral do Sindicato dos Pescadores e do gestor da Resex mostram a dificuldade de consenso no estabelecimento de novas regras que fazem parte da “contratualização” para gestão sustentável do território. E da exigência de aprendizagens coletivas, com o risco da retirada de alguns participantes na formalização dos acordos, revelando controvérsias sociotécnicas entre peritos e experts do governo e populações locais.

97 Entrevista concedida pelo Secretário Geral do Sindicato dos Pescadores de Cururupu, em

Analisados a partir do prisma da ação local, os desafios das “aprendizagens coletivas” se fazem ainda maiores quando vistos a partir da composição e ação dos conselhos deliberativos das Resex, que de acordo com Pierre Teisserenc aparecem como uma forma de institucionalização dos conflitos que conhecem o território depois de numerosos anos, configurando-se como uma nova instância dotados de recursos próprios advindos do governo federal que lhe dá apoio e legitima seu poder (TEISSERENC, 2013.98

Visto pelo ângulo das aprendizagens coletivas, da implantação do conselho deliberativo e de políticas setoriais voltadas para a melhoria das condições de vida das “famílias beneficiárias”, podemos supor que a implantação da Resex e sua atual recomposição territorial poderiam ter tornado este território mais atrativo. Porém, restam dúvidas sobre essa questão, quando vista a partir dos moradores que têm deixado a Resex para habitarem em municípios próximos, o que demanda a necessidade de novos estudos.

98A respeito de sua legitimidade, lembramos que a formação do Conselho Deliberativo está prevista no

SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza) com base nas diretrizes da Lei 9.985/2000 e tem as suas diretrizes, normas e procedimentos para formação e funcionamento, disciplinadas pela Instrução Normativa IN no 02, de 18 de setembro de 2007.

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