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5 DISCUSSÃO SOBRE O MATERIAL COLHIDO NAS ENTREVISTAS

5.3 Aspectos Transgeracionais

Para efeito deste estudo, optamos pela utilização dos conceitos “intergeracional” e “transgeracional”, porque caracterizam os dispositivos psíquicos presentes nos relatos obtidos de vitimas, agressores e demais membros de uma mesma família em que ocorreu abuso sexual incestuoso.

A transmissão Intergeracional é a que acontece entre um indivíduo a outro de geração em geração, sendo os conteúdos transmitidos transformados e transpostos, ou seja, existindo um espaço de “metabolização” (CORREA, 2000, p. 65) do material psíquico. As tradições, culturas, sobrenomes, ritos, filiação são exemplos desse tipo de transmissão, a qual preserva a individualidade do sujeito.

A transmissão transgeracional se dá “através” dos indivíduos, de geração em geração, sem uma experiência de separação, quer dizer, os conteúdos transmitidos apresentam lacunas e vazios, pois não foram transformados ou simbolizados. Nesse tipo de transmissão, não há uma separação entre os sujeitos, por exemplo, algo na mente da mãe ou do pai pode ser transmitido ao filho sem passar pela repressão, como um trauma não elaborado ou vivências não significadas.

Empiricamente, a experiência no atendimento de casos de abuso sexual, na família, mostra que algumas mães de crianças vitimadas relatam sua própria vitimização verificada na sua infância, com algum membro da família. Paradoxalmente, a própria vivência de abuso sexual não favorece a proteção dos seus filhos. Ao contrário do que se pode esperar, o trauma não-elaborado prejudica-

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as na identificação de atitudes e alterações no comportamento dos filhos, que sinalizam sua condição de vítimas de abuso. Defensivamente, essas mulheres tendem a minimizar ou a eliminar a evidência traumática, com a negação, a clivagem, a projeção (CORREA, 2000).

Várias situações podem destruir a capacidade e a função parentais: lutos não- elaborados, segredos, histórias lacunares, histórias de violência, vazios, migrações, traumas, enfim, que não puderam ser transformados, simbolizados, historizados. Essas situações podem comprometer dramaticamente a capacidade metabolizadora parental de ansiedades primitivas do bebê (função alfa, rêverie, mãe suficientemente boa). (TRACHTENBERG, 2005, p. 123).

Para Trachtenberg (2005), nesses casos, o trauma não elaborado interrompe a transmissão intergeracional, aquela que é estruturante, que não invade o campo da intersubjetividade (como as tradições, culturas, filiação, sobrenome), no qual cada sujeito pode tomar os elementos necessários para a constituição da sua história individual. Acontece uma transmissão transgeracional, que é invasiva, “numa passagem direta de formações psíquicas de um sujeito a outro, de uma geração a outra, sem a preservação de espaços subjetivos e intersubjetivos” (p. 123).

A transmissão transgeracional está diretamente relacionada aos segredos vergonhosos (crime, incesto, suicídio, violência, entre outros), que envolvem as vivências traumáticas, ou seja, o medo de que a sua revelação possa levar à repetição do ato traumático gera lacunas, gera o vazio irrepresentável, que torna “a presença desses objetos como a de um corpo estranho ou, citando a imagem dada por N. Abraham, uma ’alma penada’ que, sem energia própria, persegue em silêncio [...]” (KOPITTKE, 2005).

Alguns segredos de família provocam nitidamente influências nas gerações seguintes, como se fosse um “fantasma” agindo como um “ventríloquo, como um estranho em relação à tópica própria do sujeito” (MELLO, 2005, p. 114).

Para Corrêa (1999), os segredos e silêncios no âmbito familiar são transmitidos transgeracionalmente, basicamente pelo não-verbal, podendo ser difundidos por rituais familiares, por meio de comportamentos, palavras, manifestações corporais ou em uma cena da vida familiar em que cada membro desempenha um papel de favorecimento daquilo que está oculto, sem questionamentos, contribuindo para que o psiquismo individual e a continuidade geracional estejam apoiados no defeituoso e no deficiente da transmissão.

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A nova geração, portanto, torna-se herdeira, receptora dessa transmissão defeituosa, não-elaborada. Em muitos casos, há um único herdeiro selecionado, isto é, um indivíduo da família narcisicamente selecionado, o qual viverá uma história que em parte não é sua, está alienada a ele e se prestará a pôr em ato tudo aquilo que foi repudiado pelos que o precederam.

Nas famílias analisadas, pudemos notar a abolição dos limites entre os indivíduos e as diferentes gerações, com a ocorrência de diversas situações de violência. Essas vivências traumáticas, que não foram expressas, mantidas em segredo, apropriaram-se do espaço psíquico dos filhos, os herdeiros:

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FAMÍLIA ASPECTOS TRANSGERACIONAIS

Família Silva Mãe: histórico de rejeição, abandono e abuso sexual. Quebra de fronteiras intergeracionais: avós assumem os papéis e funções dos pais.

Pai: histórico de violência física e de abuso sexual na família. Filhos: houve a confirmação que três deles foram vítimas de abuso sexual, posteriormente passaram a se relacionar incestuosamente.

Família Ferreira Mãe: histórico de rejeição materna, abandono, abuso sexual e violência física.

Pai: histórico de violência física e de suspeita de abuso sexual na família.

Filhos: ambos foram vítimas de abuso sexual, violência física e posteriormente passaram a se relacionar incestuosamente. Família Oliveira Mãe: há o indicativo de um lar incestuoso, assumiu o papel e

função de “esposa” do pai, provocando uma rivalização entre mãe-filha. Presença de violência física na família.

Pai: histórico de violência física e suspeita de abuso sexual na família.

Filhos: houve a confirmação de que a filha foi vítima de abuso, perpetrado pelo irmão mais velho e primos da família paterna. Família Souza Mãe: há indicativo de uma educação rígida, com a presença de

violência física na família. Assumiu o papel e função de “mãe”. Pai: há indicativo de uma educação rígida na família, com a presença de violência física. Presença de lutos mal-elaborados, com a perda de dois irmãos e da ex-esposa.

Filhos: um dos filhos foi vítima de abuso sexual perpetrado pelo primo (da família materna) e, posteriormente, passou a se relacionar incestuosamente com sua meia-irmã.

Em situações traumáticas não elaboradas, como foi constatado em todas as famílias, portanto, as transmissões psíquicas ocorrem defeituosas entre as

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gerações, inaugurando uma cadeia traumática transgeracional (TRACHTENBERG, 2005).

A função de contenção e de elaboração do grupo familiar é comprometida nas diversas situações de violência:

x Intrafamiliar (em grau extremo: agressões sexuais e de ordem diversa);

x Violência político-social (guerras, genocídios, ditadura, miséria) [...] O silêncio

da violência ou ruptura dos diversos vínculos geracionais são o denominador comum que percorre a falta de inscrição do sujeito na sucessão das gerações [...] limitando ou impedindo o acesso aos processos de simbolização que organizam uma cadeia de significantes. (CORREA, 2000, p. 65).

No âmbito intrafamiliar, observamos características peculiares da família incestogênica (AZEVEDO; GUERRA, 2005b) em praticamente todos os casos examinados. As entrevistas revelaram indícios de figuras incestuosas até a terceira geração, como no caso da família Silva, na qual o avô abusou da enteada, cujos filhos abusaram de seus primos, filhos de senhora Maria, a qual tinha igualmente, em sua história de vida, a marca do abuso sexual.

Diante do exposto, fica fácil compreender a situação de desamparo de uma criança ou adolescente, que não encontram na “mãe suficientemente boa”, de que nos fala Winnicott (2007, p. 56), com a capacidade para oferecer o holding necessário para assegurar-se e denunciar sua experiência. A “preocupação materna primária”, a sensibilidade aliada às necessidades do seu filho está atravessada pela própria vitimização que ela (mãe) ainda não superou e, por conseguinte, não recebeu apoio e segurança suficientes, para, agora, oferecer à criança (WINNICOTT, 2005, p. 21).

Dessa forma, pudemos constatar a devida relevância de uma intervenção terapêutica com esses tipos de casos, para que o ciclo transgeracional seja interrompido definitivamente, nessas famílias.

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