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ASPECTOS VERBAIS

No documento O cinema como educação do olhar (páginas 189-200)

Na sequência da cena, após a bolinha quebrar- se e a mãe de Mirco reclamar, seu pai diz “Deixa- o fazer (...). Assim ele vai aprender como são feitas as coisas”.

Mirco mantém o olhar fixo na tela. A luz, vindo de trás dele, reflete-se nos seus olhos. Tais olhos – e o brilho deles – são o centro da cena. Há como que um êxtase, um arrebatamento em sua fisionomia. Ao mesmo tempo, porém, todos os outros espectadores são desfocados pela câmera. Não podemos ver senão esboços de corpos. Quando a câmera abre, percebemos que é noite. As roupas das pessoas são em sua maioria de tons escuros. A cena termina com o escurecimento da tela, como num cinema. Enquadramento: primeiríssimo plano, contra- plongée, 3/4.

AUSENTES

Mirco olha para a arma como quem olha para o céu. Ele segura a bolinha vermelha e branca, outra vez quebrada. Metade do seu corpo é sombra, metade é luz. Do lado vermelho da bolinha, há luz; do lado branco, há sombra. Na sequência, há o jogo de movimento e toque entre o olhar de Mirco, suas mãos e a arma. A música é instrumental; começa bem sutil, mas à medida que a queda se aproxima, o volume aumenta, e para após o disparo da arma. Enquadramento: primeiro plano, normal, frontal.

Mirco está envolto num cenário de luz e de ascensão, que agora parece se completar: de início, o centro era seu olhar, que se elevava; agora ele está de frente para a arma, e não vemos mais seus olhos; depois, a subida na escada; posteriormente, no primeiro plano, a aparece a lâmpada da cozinha, e, em segundo plano, a centralidade do fuzil.

AUSENTE

Dos olhos de Mirco, escorre o sangue, que também está em suas mãos e no chão. A luz parece entrar de uma janela, bem como da porta, e se projeta sobre Mirco e seu pai. Da arma, ainda sai fumaça. Parece-me haver um excesso de formas geométricas na cena: a porta, a perna da mesa, a caixa de ferramentas, o piso. Enquadramento: plano médio, ponto de vista de uma barata, frontal.

Cenário quase predominantemente branco e preto. O médico e a sua assistente têm a fisionomia angustiada, tensa. O pai de Mirco começa a conversa com o rosto aliviado, pois seu filho escapou da morte. À medida que escuta as recomendações do médico e de sua assistente, seu rosto mistura angústia e raiva, pela diagnóstico quase sentencial recebido: “são as Leis”. A mudança de câmera mostra a porta batendo e, ao lado da porta, um desenho do corpo humano. Naquela sala, é o organismo enquanto máquina que é analisado. Enquadramento: meio primeiro plano, normal, frontal.

- Médico: “Seu filho só consegue ver sombras.” - Assistente do médico: “Não é culpa nossa. São as Leis. Seu filho não pode frequentar uma escola normal. É proibido. Ele deve frequentar uma escola para meninos como ele .”

- Médico: “É preciso encontrar um instituto adaptado, e eu posso sugerir um que, para mim, é o melhor: o Instituto Cassoni.”

Após a cena no hospital, os amigos de Mirco jogam, enquanto ele está sentado. Suas roupas são em tons de azul, como a cor do céu. Seu rosto não demonstra mais emoção. A câmera toma o lugar da visão de Mirco: ele só vê esboços, sombras, vultos. Deita-se na relva; o vento sopra e balança as plantas. Olha para o céu e não vê mais o azul, só uma espécie de bola branca (provavelmente o sol), rodeada por um tom de cinza. A música é instrumental e triste, e continua até a cena da saída de seus pais do Instituto Cassoni. Enquadramento: plano americano, plongée, frontal.

No início da cena, o som é formado pelo alto volume do barulho dos talheres nos pratos. O som passa a ter um lugar mais forte no filme a partir de então. Felice toca Mirco para conhecê-lo. Conhecer passa pelo corpo, pelo toque, pelo rosto. Enquadramento: primeiro plano, normal, frontal.

- Freira: “Aqui é o seu lugar.” (cada aluno com o seu lugar específico).

No início da sequência, Mirco anda lentamente no parque. Há barulho das folhas, dos pássaros e das vozes dos meninos. Sobe a escada para encontrar com Felice. Este explica a Mirco como é a vida na escola. Mirco, por sua vez, explica a Felice como são as cores, fazendo uso do corpo, dos sentidos, do movimento e da natureza para as suas comparações. Leva a mão de Felice à árvore, para “sentir o marrom”. O foco é nas mãos. Pode-se estabelecer um paralelo com a saída da caverna (Platão). Felice é o primeiro que começa a sair da caverna, graças a Mirco.

Ouvidos atentos. As mãos tocam o gravador com curiosidade, com energia, com entusiasmo. Trata-se da última parte da cena na qual Mirco é posto de castigo no dormitório, e sai bagunçando o mesmo, até encontrar o gravador. A partir deste encontro, começa uma reconfiguração – mesmo que tímida de suas relações com a cegueira e com o próprio corpo. Ele começa a gravar sons sobre uma gravação já existente – a do Evangelho. É como se o determinismo presente na religião fosse, a partir de agora, superado pelo corpo de Mirco. Ironicamente, seu corpo será “transubstanciado” (conceito cristão). Doravante, ele será carne do mundo (Merleau-Ponty). Enquadramento: primeiro plano, normal, frontal.

Mirco começa, junto com Felice, a experimentar os outros sentidos. Transforma a tabuinha da escrita em braile, utilizando a fita com os sons que ele gravou. Reconfiguração de sua limitação. Uma reinvenção a partir da norma. Explora espaços que não são seus. Vai à sala dos professores e rouba uma fita. A norma o leva a produzir – mas fora daquilo que ela esperava que ele produzisse.

Na primeira imagem, Mirco começa a usar o gravador dado pelo professor. Seu rosto manifesta empolgação, e suas mãos se movimentam rapidamente, para produzir o som, como as mãos de um pianista; na segunda imagem, que vem logo após a cena da aula de piano com o professor, ele toca as notas fá-sol-la no piano – como o professor havia ensinado mas que, na aula, ele não havia tocado. Fica pensativo e depois sente o som de suas cordas. Na terceira imagem, ele maneja as cordas do tear, formação obrigatória da escola. Nesta cena, a trilha sonora é de uma peça de piano. É mais um sinal de que, pelo corpo, sobretudo pelo som, Mirco começa a transformar a sua relação com a cegueira. Produz para além da norma. Atenção para os enquadramentos em plano detalhe, normal, perfil.

Tons escuros e sombras contrastam com a clareza que emana do gravador. Após ganhá-lo, Mirco começa a gravar com Francesca e, depois, por necessitar de outras vozes, outros sons, com os outros meninos. Todos se reúnem ao redor do gravador e estão surpresos pela beleza dos sons gravados. Há clareza ao redor do instrumento. Enquadramento: plano médio, plongée.

- Como você teve essa ideia?

- Mirco: É assim que fazem nos filmes. - Menino: Eu também gostaria de ir ao cinema. - Fellice: Mas não dá pra entender nada. - Mirco: Todos podem ir ao cinema, mesmo se não podem ver. Você entende o filme, mesmo assim, por causa dos sons e das palavras.

Alternam-se imagens da apresentação dos meninos para os pais e imagens dos espaços da escola. A escola corresponde ao castelo no qual eles estão presos, e as imagens dos espaços da escola correspondem ao bosque assustador pelo qual eles têm de passar para conseguir fugir. As imagens sucedem-se do interior ao exterior: dormitório, salas de tecelagem, corredores e porta de entrada do colégio; do interior do castelo (da história) para fora. Cada vez mais, há mais luz. A porta da escola, na última cena, abre-se e deixa a luz entrar. No fim da o filme, é em torno do espaço – de seus corpos reinventados e do espaço escolar – que o foco se centra. Uma parte das falas corresponde a uma adaptação do diálogo que Mirco e Francesca tiveram com Ettore, no dia em que eles fugiram da escola. O dragão, provavelmente, corresponde ao diretor, “com sua expressão terrível”. O branco/luz que toma conta progressivamente da cena, no fim do filme, se contrapõe ao negro/escuridão do início do filme, quando Mirco chegou na escola.

- Narrador: Havia rumores misteriosos. Tudo, no bosque, lhes dava medo. Os irmãos mais velhos não dava atenção ao que o mais novo dizia. Crianças não podem voar – ele disse. Mas o irmão menor começou a tentar todo dia, enquanto os outros pensavam sobre como podiam fugir do castelo.

- Menino: Poderíamos usar uma corda e descer pela janela.

- Menino 2: Mas se o dragão nos vir enquanto escapamos? Ele vai nos atacar.

- Menino 1: Mas como faremos para enfrentar o dragão, se só de olhá-lo nos paralisamos de medo?

- Irmão menor: Fechamos os olhos, assim não

o veremos.

- Menino 1: De fato, porque conhecemos muito b em o caminho deste bosque, mesmo sem olhar. Se usarmos vendas, o dragão não nos fará mais medo com sua expressão terrível.

- Narrador: Só o irmão pequeno não teve medo. Pegou Elisa pela mão e abriu a janela da torre. Os dois pularam no espaço, e se transformaram em duas belíssimas gaivotas brancas.

- Menino 2: Vocês viram? Eles podem voar. Não é impossível!

- Narrador: Todos decidiram segui-los. E um após o outros tornaram-se, através da mágica, em gaivotas brancas.

- TODOS: E foi assim que os 15 meninos e a sua irmã voaram para muito longe, e viveram felizes pelo resto de suas vidas.

Novamente, a claridade dos campos da Toscana, como na primeira cena. Contra as expressões e corpos paralisados de seus amigos, que não sabiam como reagir à nova situação de seu velho amigo, Mirco mostra o movimento e a habilidade que adquiriu.

- Mirco: Regras são regras. Eu cheguei por último, então está comigo [a venda]. Mirco “obedece às regras”, mas agora ele

modificou o modo de relacionar-se com elas, graças à nova relação que ele criou com seu próprio corpo.

Aflição no rosto da mãe de Mirco. Alguma esperança nos frágeis sorrisos do pai. Apatia completa da parte do diretor. A escuridão se completa nas vestes das freiras e do próprio diretor. Movimentos calculados. Quadrados no armário, na porta, na mesa: uma espécie de gradeamento no cenário. O que Mirco poderá fazer está limitado, gradeado. Enquadramento: plano médio, normal, perfil.

- Pai: “O importante é que ele possa terminar a escola elementar, depois ele poderá escolher o que ele gosta de fazer.”

- Diretor [sobre a futura profissão de Mirco]: “O problema não é mais o que ele gosta de fazer, mas o que ele pode fazer. (...). A coisa mais importante é que vocês procurem aceitar o que aconteceu. De outro modo, não poderão ajudá- lo.”

- Mãe de Mirco [com voz hesitante]: “Mirco gosta de uma luz acesa ao lado da cama, pois tem medo do escuro... Mesmo agora. Uma luz acesa não vai incomodar os outros meninos, vai?”

Cena quase monocromática. O diretor e a principal freira ao centro – esta, de mãos postas; aquele, com as mãos juntas – ladeados pelos alunos. Os corpos dos superiores são rígidos. Os únicos corpos bem delineados são os seus. Todos os meninos estão desfocados, e suas cabeças demonstram uma postura de submissão. Cada um ocupa o seu lugar no espaço. Os superiores assumem a responsabilidade de traçar aquilo que eles devem ser, o seu destino – já que se trata de meninos cegos, sem muitas oportunidades no que diz respeito às escolhas para o futuro.

Primeiro dia de aula de Mirco. Aula de Geografia. O professor demonstra empatia, toca na sua mão para ajudá-lo a usar a tabuinha de escritura para cegos, ensina-o a sentir o espaço. Mirco empurra a tabuinha. Ele se nega a fazer a atividade de toque nas plantas, para aprender sobre as estações, pois, segundo ele, ele vê. O professor se aproxima novamente, e conversa de modo afetuoso com Mirco. Abaixa-se. Os enquadramentos revelam isso (de primeiríssimo plano na segunda imagem, de primeiro plano na primeira e na terceira).

- Mirco: Eu não preciso. Eu vejo.

- Professor: Eu também vejo. Mas não é suficiente.

(Fala sobre os outros sentidos: cheirar a flor, tocar a neve, escutar a música).

- Professor: Você tem cinco sentidos, Mirco. Por que usar só um?

No documento O cinema como educação do olhar (páginas 189-200)

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