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4 COMIDA É IDENTIDADE MATERIALIZADA – COMO CHEFS

4.1 ASSIM NO BRASIL COMO NA FRANÇA

Políticos, empresários e parte da elite artística nacional – sobretudo os atores mitificados nacionalmente pela emissora do dono da casa, responsável por mais de 80% da audiência televisiva do País - sujavam, com suavidade e deferência, os guardanapos de linho alvíssimo bordados com as iniciais dos proprietários daquele casarão no Cosme Velho.

O bairro carioca aos pés do Cristo Redentor já fora mais conhecido como o lugar onde viveu Machado de Assis, considerado o maior escritor de língua portuguesa nascido no Brasil. Naquele momento dos anos 1980, contudo, era afamado como o recanto do Rio de Janeiro onde vivia o equivalente brasileiro da família inglesa Murdoch, a moradia do doutor Roberto Marinho que, em concessões nunca totalmente esclarecidas dos presidentes da ditadura militar brasileira

inaugurada em 1964, passaram a controlar aquela que viria a ser a maior rede de televisão e comunicação de massas do País.

As baixelas e bandejas de prata costumavam ser preenchidas com receitas com sabor, aparência e nomenclatura capazes de sinalizar a sofisticação e o cosmopolitismo dos anfitriões e impressionar um Rio de Janeiro que, se não era Las Vegas ou Paris, tampouco era Timbaúba, pequena cidade do interior de Pernambuco na fronteira com a Paraíba.

O Rio havia se transformado, desde os anos 1950, numa das capitais notívagas do mundo. O tropicalismo e a bossa-nova, solar e apaixonada, já substituíam as verdades cortantes sobre o amor destiladas pelo samba-canção há mais de duas décadas (CASTRO, 2015).

Mas, estrelas do cinema americano e do show biz internacional ainda passavam, literalmente, na antiga capital da República, o saleiro para a entourage artística, econômica e política nacional pelas muitas boates dos bairros de Copacabana ou de Ipanema como na época em que a dor de cotovelo ficou chique na voz de Dolores Duran.

Ali, dos anos 1950 a 1980, grosso modo, certa elite com charme suficiente para ser copiada e mimetizada, comia camarões em cascata, filé a Wellington, salada Waldorff, estrogonofe e lagosta ao Thermidor em lugares onde pudesse ver e ser vista (CASTRO, 2015).

Apenas alguns brasileirismos rivalizam em magnetismo na noite com os clássicos dos livros franceses: o filé à Oswaldo Aranha, alto e coberto com muito alho -, criado, conta-se, a pedido do escritor num botequim da Lapa nos anos 1930; ou Sopa Leão Veloso, também criada por sugestão de um embaixador que, ao pedir que fossem misturados vários frutos do mar numa única tigela, estabeleceram uma versão carioca da bouillabaisse francesa.

Como regra, foi preciso que um estrangeiro – naquele caso, um refugiado vienense de guerra convertido em empresário da noite de nome Stuckart – mostrasse à elite nacional que era possível ser chique se alimentando, em público, de pratos capazes de exalar uma brasilidade quase sempre refutada quando a questão era se distinguir.

Dono de boates como Golden Room e Meia-noite, o estrangeiro Stuckart, segundo o escritor de biografias Ruy Castro (2015), contribuiu para institucionalizar alguns pratos de sotaque brasileiro na vida social noturna da elite carioca, a cidade

de maior prestígio internacional no Brasil e sede da mídia brasileira cuja vida era observada e copiada por meio das telenovelas ali produzidas.

Bourdieu (2008), por exemplo, é enfático em lembrar como, na sociedade contemporânea, a mídia é tão eficiente em divulgar padrões de sociabilidade como a escola e a família. Registra Castro (2015, p. 31), que a criatividade do vienense como empresário da noite:

Não se limitava à iluminação e à música. Estendia-se também à culinária. Por sua inspiração, o (clube noturno) Meia-noite foi o berço de um prato destinado a sacudir a cozinha nacional: o picadinho. Da maneira como Stuckart o concebeu, a carne era sempre de primeira – pontas de filé mingon picadas -, temperada com cebolinha, louro, sálvia, segurelha, alecrim e manjericão, além dos convencionais sal, pimenta, tomates machucados e manteiga. O segredo estava no tempo de refogar este ou aquele ingrediente ou na ordem em que se acrescentavam os temperos. O resultado era servido numa tigela rústica de barro, com arroz, agrião picado, farinha de mesa e um ovo poché por cima. A exemplo da sopa de cebola de Paris, o picadinho revelou-se ideal para salvar vidas em horas mortas e recuperar disposições abaladas por uísque além da conta – principalmente depois que,adotado até mesmo pelos abstêmios e pelos que dormiam cedo, se generalizou pela noite do Rio. Foi o primeiro prato assumidamente brasileiro a dividir cardápios finos cariocas com os indefectíveis Jambonsd’York, Braisesau Madère e Délices de Robalo à La Bonne Femme.

No século 16, o poeta baiano Gregório de Matos justificava seu apelido de Boca do Inferno ao apontar, em suas sátiras sociais, a eterna síndrome de “mazombo” do brasileiro de média e classes. Colonizado, tenderia sempre a mimetizar os hábitos e gestos do colonizador, negando o que lhe fosse mais atavicamente pátrio. Um condenado, portanto, a se sentir um mazombo, um zumbi em sua terra.

Caberia, no Rio de Janeiro, a um estrangeiro informar aos brasileiros que um prato popularmente nacional poderia ser conjugado em público sem denotar representações sociais negativas. Como segue Castro (2008, p. 31):

O sucesso do picadinho, inventado por um vienense, tornou quase inevitável que fosse Stuckart a atentar também para a nobreza da feijoada e defender sua presença em restaurantes de luxo – como o Bife de Ouro, inaugurado por Octávio Guinle no Copa, em 1946, com seus garçons importados do Hotel Savoy, de Londres. Até então, a feijoada só era servida nos restaurantes mais modestos, aqueles com toaletes inabordáveis e moscas que “atendiam pelo nome”. Ninguém a imaginava num menu de pratos em francês, muito menos acompanhada de batida de limão – era a única possibilidade, em todo o Copa, de se servir cachaça. Mas foi o que aconteceu, e logo no Bife de Ouro, cujo nome, dado pelo jornalista Assis Chateaubriand (e malandramente adotado por Octávio Guinle), se referia ao preço dos filés, que ele achava absurdo. Extorsivo ou não, o Bife de Ouro logo se firmou como o restaurante favorito dos ricos e dos políticos para almoços ou jantares de negócios, pela certeza de que poderiam conversar à-vontade a salvo de enxeridos.

Ou seja, o nacional manifesto nas práticas populares de mesa só teria trânsito na comensalidadede de prestígio depois de respaldado por e reconhecido pela autoridade de um estrangeiro – o que não deixa de ser um gesto indicativo da mentalidade do colonizado sempre em busca da aprovação do colonizador.