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CAPÍTULO 3. A CORRESPONDÊNCIA SOBRE A RECEPÇÃO DE SAGARANA

3.1 Assuntos das cartas

O apreço de Guimarães Rosa pelo leitor já se faz notar logo em sua primeira entrevista (BORBA, 1946, Arq. JGR. IEB/USP R2), quando ao narrar a metamorfose dos Contos para Sagarana, ele explicita que ao assumir o papel de leitor crítico de sua própria obra, estabelece uma relação de empatia com o leitor que ele presume o seu livro irá encontrar.

Voltando ao Brasil, mal pude passar umas poucas semanas no Rio, seguindo depois para a Colômbia, de onde voltei em fins de 1944. Foi um custo para achar um apartamento! E só depois, então, é que tornei a pegar o livro. Fiz-lhe pouquíssimas alterações de forma ou estilo, limitando-me a suprimir em uma ou duas histórias, parágrafos que me pareceram supérfluos para o público, embora tivessem para mim uma grande importância.

Avesso a entrevistas, em outro raro depoimento a periódico, Guimarães Rosa exprimiu também o quanto prezava o sentido que o leitor atribuía à sua obra literária: “fazer um livro é como bordar um tapete: cada um vê e acha uma coisa. Se o leitor achou isso, é porque ali está: o leitor tem sempre razão” (CONDÉ, 1946, Arq. JGR. IEB/USP R2)

Prova material da importância do leitor e dos sentidos por ele atribuídos à sua obra literária, é o arquivo sobre a recepção de seus livros, organizado pelo próprio escritor, é composto por recortes de jornal e cartas, cujo tema é a leitura de seus livros. Sobre Sagarana, sua obra de estreia, além dos recortes de jornal que registram a recepção dos críticos, há, como já foi dito, oitenta e nove cartas e telegramas de leitores relatando suas impressões de leitura, o que torna esse material bastante significativo para os estudos da recepção e da leitura da obra literária.

O estudo epistolográfico – como já visto – estabelece uma distinção entre carta e correspondência. Para a crítica Jeanne Bem (1999, p.114), enquanto a primeira é pontual, refere-se à carta que está sendo respondida, a segunda pode transformar a sucessão de cartas em uma história, o que a aproxima também dos estudos sócio-históricos.

A partir desta perspectiva pode-se dizer que a correspondência sobre a recepção de Sagarana conta uma história: a história da recepção do livro de estreia de Guimarães Rosa,

narrada por alguns de seus leitores diretamente ao escritor. O período coberto pela correspondência de que aqui nos ocupamos é de 31 anos, e vai desde a publicação do livro em 1946, até o ano da morte do escritor em 1967, o que demonstra um contínuo interesse tanto do público pela obra, como do autor pelas impressões de leitura desse público, principalmente ao levar-se em conta que a obra prima do escritor não é Sagarana, mas o Grande Sertão: veredas.

A distribuição das cartas por ano é a seguinte:

Tabela 3. Distribuição das cartas por mês e ano

1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1963 1966 1967

45 06 03 01 01 05 07 02 02 02 01 01 02 01 04

Fonte. Elaborada pela autora.

Mais da metade das cartas, quarenta e cinco, são datadas de 1946, ano da publicação de Sagarana. Isso confere a esses relatos de leitura o sabor de comida recém saída do forno, o que de maneira alguma desqualifica as demais cartas, pois elas contam outros capítulos da recepção da obra, além de continuar atualizando sua leitura. É da década de 1950 por exemplo, uma carta (Cx4cp67) que sonda a possibilidade de o texto rosiano ser traduzido para a língua espanhola, e um telegrama (Cx4cp55) do produtor/diretor de cinema Franco Zampari relembrando Rosa de seu interesse em filmar Sagarana. Da década de 1960, é carta (Cx4cp77) de Vasco Leitão da Cunha, parabenizando o autor por uma crítica de Sagarana no prestigiado The York Times, e a carta do cineasta Gerson Tavares (Cx4cp77), que, apaixonado por um conto de Sagarana, quer filmá-lo a qualquer custo.

Observe-se também que a diminuição do número de cartas relativas a 1958, 1962, 1964 e 1966, coincidem com a publicação respectivamente de Corpo de Baile e Grande Sertão: veredas em 1956 e Primeiras Estórias em 1962, que deslocaram a atenção do leitor para essas obras, diminuindo portanto os relatos de leitura de Sagarana.

Se nessa correspondência, cada um dos leitores têm um papel significativo na tessitura da história da leitura de Sagarana, não menos significativo é o papel dos “não leitores”, ou melhor, daqueles que em suas cartas declararam ainda não ter lido Sagarana. Mesmo esses missivistas no contexto da correspondência revelam suas práticas de leitura e revelam-se como sujeitos históricos.

Tal é o caso da carta datada de junho de 1946, remetida por Getúlio Vargas, que tão somente agradece o recebimento de um exemplar de Sagarana. Fugindo à convenção epistolar, a assinatura manuscrita vem logo após o vocativo. O restante da carta é datilografado, sugerindo que o corpo da mesma, talvez não tenha sido escrito pelo remetente, talvez sequer lido, apenas assinado junto a outros documentos. Entretanto, o timbre do papel da carta, “Assembleia Nacional Constituinte”, revela a imagem como Vargas agora queria ser visto: não o mais o ditador, mas o democrata. Para tal, associa seu nome à elaboração da nova constituição. Aqui, o remetente Getúlio Vargas, assemelha-se a Janus, deus grego representado por duas faces que olham para direções opostas: o passado e o presente, a ditadura e a democracia.

Há ainda uma outra carta (Cx4cp01), ou melhor, um pequeno bilhete, que também não relata impressões de leitura do remetente, mas que ganha relevância, dentre outros aspectos, por ser o primeiro texto do conjunto, aquele que abre a correspondência sobre a recepção de Sagarana. Datada de 4 de abril de 1946, dia do lançamento do livro de estréia de Rosa, essa carta pode fazer as vezes de folha de rosto, ou mesmo de epígrafe desta correspondência, uma vez que, nessa abordagem preliminar, considera-se a correspondência como um livro que conta a história da leitura de Sagarana ao longo de três décadas. Outro detalhe que torna essa carta bastante singular é o fato de ela ser a única que guarda também o envelope. Isso ocorre porque o endereçamento faz as vezes de vocativo, tornando o conjunto, envelope e papel de carta, indissociáveis.

Brevíssima, essa carta não contém impressões de leitura da obra de estreia de Rosa, mas revela percepções do remetente sobre a literatura, que dialogam respectivamente com Antonio Candido e Jauss: “Triunfo e felicidade pelo nascimento do ‘Sagarana’” (Cx4cp01), são seus dizeres. Pode-se estabelecer aí, uma relação entre a expressão “nascimento de Sagarana”, e o sistema literário proposto por Antonio Candido

[...] a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tios de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos outros (CANDIDO, 1975, p.23-25).

Sagarana começara a configurar-se nove anos antes quando o volume intitulado Contos, concorrera ao prêmio Humberto de Campos, restringindo-se portanto o número de exemplares, aos leitores especializados que compuseram o júri. Logo, o público não teve

acesso ao livro, que na visão desse remetente nascerá apenas quando entrar no mercado para ser li(consumi)do, ou seja, quando o circuito do sistema literário efetivamente fechar-se, o que sinaliza a importância dada ao público leitor pelo remetente.

Alusão indireta às práticas de leitura do remetente é a assinatura Sag-XXXX-na. Ao inserir seu nome no meio do título do livro, misturando-se, confundindo-se a ele, o remetente mostrou dois aspectos da leitura de textos literários. O primeiro, remete ao postulado da estética da recepção formulado por Jauss (1976, p.178) que diz que é o leitor quem atualiza a obra literária através de sua leitura, injetando-lhe vitalidade, perpetuando-a através dos tempos. O segundo, é o caráter de espelho, os mecanismos de identificação que a obra literária faculta, e que serão bastante explicitados em algumas cartas, desta vez por leitores que efetivamente leram Sagarana, e relataram suas impressões de leitura.

A análise da correspondência sobre a recepção de Sagarana comporta vários recortes. Na tabela a seguir apresentada (Tabela 3) – para posterior discussão –, elencam-se temas recorrentes na correspondência, observando-se que os mesmos podem entrelaçar-se em uma mesma carta.

Tabela 4. Temas

Temas 1. Crítica literária

2. Releituras

3. Dialogismo com literatura 4. Memórias

5. Leitura filosófico/metafísica 6. Identidade do escritor

7. Dialogismo com música, pintura e cinema 8. Relatos de leituras de terceiros

9. Linguagem/estilo

10. Escolha dos melhores contos 11. Verossimilhança

12. Brasil desconhecido

13. Língua brasileira e língua portuguesa 14. Regionalismo e universalismo Fonte. Elaborada pela autora.

A tabela 4 indica o tema (1ª coluna), sua incidência ao longo da correspondência (2ª coluna), e o código IEB das cartas que o manifestam (3ª coluna).

Tabela 5. Incidência dos temas na correspondência

Tema Incidências Código das cartas

Crítica 21 cp7, cp12, cp14, cp23, cp24, cp26, cp28, cp29, cp33 cp34, cp36, cp37, cp39, cp41, cp46, cp50, cp51, cp72, cp77, cp82 Releituras 15 cp2, cp5, cp8, cp14, cp22, cp23, cp26, cp41, cp54, cp60,cp63, cp70, cp80,cp83, cp85

Dialogismo com literatura 13 cp12, cp15,cp27, cp28,cp33, cp37, cp38, cp41, cp48, cp53, cp68, cp70

Memórias 10 cp2, cp21, cp22, cp24, cp40, cp46, cp48, cp52, cp63, cp73

Leitura filosófica/metafísica 09 cp04, cp14, cp26.cp39, cp47, cp48, cp52, cp63, cp75 Identidade do escritor 09 cp7,cp13, cp12, cp16, cp17,cp26, cp33, cp39,cp41 Dialogismo com música, pintura e

cinema 07 cp7, cp16, cp23, cp36, cp38, cp41, cp48

Relatos de leituras de terceiros 08 cp2, cp27, cp35, cp36, cp47, cp53, cp71,cp84

Linguagem/estilo 06 cp5, cp7, cp12, cp47, cp48, cp88

Escolha dos melhores contos 06 cp17, cp5, cp33, cp70, cp71, cp80

Verossimilhança 06 cp2, cp22, cp46, cp48, cp52, cp73

Brasil desconhecido 06 cp15, cp20, cp24, cp38,cp69, cp83

Circulação 06 cp7,cp14, cp26, cp27, cp47, cp48

Língua brasileira e língua portuguesa 05 cp5, cp15, cp22, cp24, cp27 Regionalismo e universalismo 03 cp27, cp41, cp48

Fonte. Elaborada pela autora