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Regina Polo Müller Nos últimos vinte anos realizei pesquisas que foram propostas para se compreender o movimento da dança nos rituais dos Asuriní do Xingu, no campo da Etnologia Indígena e Antropologia Estética, pois a atividade de investigação encontrava-se relacionada ao ensino e orientação de pesquisa em Dança, no Departamento de Artes Corporais da Unicamp. Desse modo, em minha prática acadêmica, a integração entre Antropologia e Artes desenvolveu-se em torno do tema do “corpo em movimento como fenômeno expressivo”. O corpo do ator/bailarino, seja dos espetáculos de dança contemporânea brasileira (MÜLLER, 1995), seja nos rituais xamanísticos e cosmogônicos nas sociedades indígenas, foi sendo assim abordado como elemento expressivo em linguagens artísticas e como discurso não verbal de sistemas de representações sensíveis (MÜLLER, 1998).

A dança e a música indígenas são linguagens artísticas indissociáveis que devem ser compreendidas sempre no contexto da performance ritual. A dança é a linguagem do corpo em movimento, realizada no ritmo da música, executada pelo canto ou instrumento musical ou por ambos. Em geral, a palavra para a música vocal e a dança é a mesma: não há dança sem canto e por isso, voz e movimento constituem a materialidade dessa expressão. E esta, reafirmo, encontra- se contextualizada nos rituais.

Oforahai é cantar/dançar na língua dos Asuriní do Xingu, Amazônia, Brasil, povo Tupi-Guarani, sobre o qual venho desenvolvendo pesquisa desde os anos 1970. Trata-se do nome genérico dado às práticas rituais realizadas para promover a experiência do encontro cósmico entre o mundo dos humanos e o dos espíritos. O objetivo é garantir a vida, seja através da transmissão da substância vital que cura os pacientes, no ritual xamanístico mbaraká, seja através da ação propiciatória que garante a caça e a boa colheita.

Ao lado dos rituais xamanísticos, ciclos de cerimônias e rituais cosmogônicos, isto é, performances cênicas dos mitos de origem, instauradores da ordem do cosmo, completam o repertório da vida ritual

dos povos indígenas e dos Asuriní em particular. A dança, linguagem do corpo em movimento, organizado esteticamente pela coreografia e pelo canto vocal, ocupa lugar fundamental no desempenho desses rituais.

A dança/música nas sociedades indígenas deve ser entendida no contexto da performance ritual e os rituais, por sua vez, como experiências sensíveis da ética e visão de mundo de um povo, sistemas expressivos através do qual se revive, recria, reconstrói, remodela, reelabora e reinterpreta uma cultura. Seus conteúdos dizem respeito a valores éticos e estéticos, constitutivos das cosmologias (visão de mundo) e mitologias, bem como às relações sociais e contexto histórico.

Estudei a dança no ritual xamanístico dos Asuriní como manifestação estética e discurso construído no contexto histórico, considerando sua enunciação num determinado momento da história. Na década de 1990, vinte anos após o contato e as minhas primeiras pesquisas de campo, pude verificar os rituais xamanísticos sendo executados com a mesma exigência estética de então, a qual conjuga a dança-canto-cenografia-ornamentação corporal numa performance exemplarmente catártica de sua experiência histórica.

Os Asuriní viviam nessa época, nova situação de relacionamento com os brancos e outros índios em comparação à situação em que se encontravam, até 1985, quando sua aldeia se localizava às margens do igarapé Ipiaçava. Nessa década, com o incentivo do chefe do Posto Indígena, os Asuriní passam a organizar expedições para expulsar invasores, embargar o produto da pesca de brancos em seu território e participar de reuniões promovidas pelo Conselho Missionário Indigenista, órgão do Conselho de Bispos do Brasil, do movimento católico de defesa dos direitos das populações indígenas. Reivindicações junto à sociedade nacional, enfrentamento de inimigos locais e atritos com índios de outras etnias que convivem agora com eles, através de casamentos realizados, passaram a fazer parte da experiência social Asuriní. A ameaça de invasões e exploração de seu território era elaborada e expressa no discurso verbal, na situação dialógica com o interlocutor branco. Por outro lado, a experiência de convivência com seres diferentes, perigosa e ameaçadora, no plano sobrenatural e social se atualizava com a incorporação, na performance ritual, da experiência histórica do contato amistoso e ameaçador com o branco e outros índios. Em 1993, pude observar um mbaraká no qual foram invocados os espíritos karowara e apykwara que habitam as grutas do céu, muito mais ferozes que espíritos de domínios cósmicos mais próximos. Os Asuriní me explicaram que diante de uma situação de muito perigo e

morte iminente, os xamãs trazem espíritos mais perigosos para a defesa e cura dos pacientes. Foi assim quando, em 1979, pude observar que os karowara e apykwara ferozes compareceram para tratar o xamã Tamakini, numa situação extrema que o levou finalmente à morte. Os Asuriní compararam as duas situações, dizendo que “assim como se chama helicóptero para retirar o doente da aldeia como último recurso” os xamãs apelam para esses espíritos distantes e bravos.

Os Asuriní tinham no ritual que invocou os espíritos ferozes em 1993, uma assistência formada por brancos e outros índios que vivem na aldeia: os funcionários da FUNAI, missionários católicos e evangélicos, a antropóloga, índios Arara e Kararaô. O significado do enfrentamento e convivência, do contato amistoso e agressivo emergia na performance, “da união do script com os atores e audiência num dado momento e no processo social em curso” (TURNER, 1988). A ameaça da irreversibilidade de convivência com outros seres, os akaraí (brancos) e outros índios é vivida, nesse caso, na ação ritual que lhe dá sentido através da experiência.

No início de minhas pesquisas no âmbito das Artes Corporais, a dança foi entendida como discurso historicamente produzido e, tendo a Análise do Discurso como referencial teórico, foram fundamentais para este entendimento as noções de produção de sentidos e dialogia. Meus trabalhos de interpretação de montagem cênica de dança contemporânea brasileira (MÜLLER, 1995), da dança nos rituais Asuriní (MÜLLER, 1998) e de danças de religiosidade popular no interior de São Paulo (MÜLLER, 2001) estavam apoiados na Análise do Discurso da escola francesa.1 Eu estava preocupada, nessas pesquisas,

com a noção de persistência do significado da ação em geral (GEERTZ, 1983, p. 31). E através de um enfoque interdisciplinar, passei a cotejar as formulações desse autor às da Análise do Discurso, no caso, a fixação de sentido e a tensão constitutiva entre o novo e o tradicional, entre a variação (polissemia) e o sedimentado (paráfrase), na produção do discurso. A proposta metodológica da Análise do Discurso está inscrita na perspectiva da enunciação (na Linguística) e, dessa perspectiva, a natureza da linguagem é fundamentalmente dialógica, ou seja, a linguagem é enunciação e a enunciação é basicamente social. Ou seja, a susbtância da língua é o fenômeno social da interação verbal (dialogia) realizada através da enunciação (BAKHTIN apud MÜLLER, 1998, 1 Estou me referindo particularmente a teóricos da Análise do Discurso como Michel Pêcheux (1975), Dominique Maingueneau (1984, 1989) e Eni Orlandi (1996).

p. 274). O processo da enunciação é uma atualização temporal e espacial do sujeito em seu discurso. Pela teoria da enunciação não se analisa, pois, o texto realizado, como um produto, mas se procura refletir sobre o ato de produção desse texto. O caráter experiencial e processual da “performance cultural” (SINGER apud TURNER, 1982) adveio como resultado desses trabalhos, conduzindo questões das pesquisas subsequentes.

Pode-se definir o ritual, segundo Turner, como o modo pelo qual um complexo de ações performáticas e meios de comunicação sensorial, visual e sonora, de grande variabilidade, faz emergir significados que permitem o exercício da reflexividade sobre a experiência social. A dimensão estética do ritual se encontra, deste ponto de vista, no entendimento de que sua relação com um sistema social ou configuração cultural não é a de meramente refleti-los ou expressá-los, unidirecionalmente, mas sim de reciprocidade e reflexividade. A grande variabilidade de ação e de meios de comunicação produz um conjunto de mensagens sutilmente variáveis, resultando numa “parede de espelhos- espelhos mágicos, cada qual interpretando bem como refletindo as imagens lançadas nela, e emitidas de um para outro” (TURNER, 1988, p. 24).

Na Antropologia Interpretativa de Geertz e na Antropologia da Experiência de Turner encontrei a perspectiva interdisciplinar entre Ciências Humanas e Ciências Sociais que considera a dimensão estética e sensível da experiência social e permite a contextualização cultural do significado. Suas obras examinam justamente a performance teatral e a do ritual. Do diálogo entre os dois, sobre dilemas da analogia do drama para a vida social, como referência teórica para as questões metodológicas da pesquisa em Artes Cênicas, fui me direcionando, conduzida por Turner, a aprofundar a teoria da performance e a metodologia de criação artística de Richard Schechner (1985, 2003) como diretor teatral. A pesquisa desenvolvida junto à East Company of Artists (New York) enfocando um processo de criação e encenação de espetáculo dirigido por esse autor, tratou de questões como a relação entre o texto dramatúrgico e o texto perfomático no teatro experimental americano e o lugar do corpo e da ação corporal no treinamento e criação dos atores (MÜLLER, 2003). Esta pesquisa sobre ritual e performance em processos de criação em Artes Cênicas, centrada na experiência do intérprete criador com o “Outro”, dizia respeito à metodologia de Schechner baseada em estudos interculturais e à de Graziela Rodrigues, coreógrafa brasileira. E esse tema se desenvolvia como desdobramento de um projeto de pesquisa

mais amplo sobre o processo de criação em dança desenvolvido a partir da pesquisa de campo em sociedades indígenas. Um dos resultados desse trabalho foi o aprofundamento dautilização de dois conceitos da teoria da performance de Richard Schechner (2003), o de “comportamento restaurado” e o de “estado subjuntivo” e, ao mesmo tempo, a comparação entre essas metodologias, debruçando-se sobre a performance ritual na sociedade Asuriní, a performance artística apoiada na metodologia do bailarino-pesquisador-intérprete (BPI) de Graziela Rodrigues e a arte da performance como linguagem nas artes cênicas contemporâneas.

A pesquisa de campo realizada com Graziela Rodrigues entre os Asuriní do Xingu focava inicialmente as práticas xamanísticas que compreendem a dança através da quais divindades e espíritos se fazem presentes na metamorfose dos xamãs (RODRIGUES; MÜLLER, 2006). Nesse período, entretanto, nenhum ritual foi realizado e só a meu pedido, as “tauyva” Moteri e Marakawa conduziram, com seu bastão avai’ip, uma dança do ritual feminino Tauva. O contexto dessa performance foi a relação dos Asuriní com as pesquisadoras, construindo-se então um discurso em dialogia, sobre persistência e tradicionalidade. Já o mbaraká, ritual xamanístico para a cura de doenças teve sua frequência muito reduzida nos últimos 15 anos, tendo em vista o pequeno número de xamãs e o declínio de sua ascendência política sobre o grupo. Nesse quadro, no desenvolvimento de nossa pesquisa em campo, uma realidade se fez presente na experiência do corpo a corpo, de modo a instaurar o que Rodrigues chamou de um “estado interno no qual somos invadidos por uma paisagem-lugar onde se desenvolvem experiências de vida que tocam o nosso corpo sensível de memórias”. Esse estado se constitui no que chama de “Inventário do Corpo”, “uma fase da pesquisa na qual a memória do corpo é ativada, possibilitando que ao longo do Processo ocorra uma autodescoberta quanto às próprias sensações, sentimento, história cultural e social” (RODRIGUES, 2003, p. 73).

A estadia na aldeia e o trabalho de campo consistiram na vivência de um cotidiano marcado fortemente pela presença de mulheres, notadamente as velhas e crianças, despertando nossos sentidos e olhar para seus corpos. Esse trabalho2 abordou o corpo nu das mulheres mais

velhas e os corpos vestidos das jovens e crianças, o contraste entre o entrelaçamento do corpo das primeiras com a terra e suas atividades 2 Um dos resultados desse trabalho é o vídeo As mulheres das cócoras (RODRIGUES; MÜLLER, 2006) , apresentado no congresso No Performance’s Land?, CRIA/Lisboa,15-17 abr. 2011, IUL/Lisbon University Institute/Culturgest.

cotidianas com a mandioca, o barro ou o algodão e o das jovens em sua grande maioria, com seus filhos, sendo o cuidado destes a principal atividade de seu cotidiano nos dias de hoje.

Desde meados dos anos 2000, minha observação era a de que os rituais xamanísticos e o sistema xamânico Asuriní se modificavam, apresentando menor frequência e menor número de xamãs. O desinteresse dos jovens pelas práticas religiosas vem comprometendo desde então a formação de novos xamãs e a própria realização dos rituais. As moças, hoje cuidando de filhos pequenos, não apresentam mais a disponibilidades das jovens nos anos 1970 e 1980, e as danças do mbaraká escassearam. Por outro lado, o ritual cosmogônico das flautas Turé que homenageia visitantes e, principalmente, seus mortos e guerreiros, passou a ser regularmente realizado, seja promovido por pesquisadores ou por agentes de programas de ação social (Fundação Ipiranga). Os Asuriní passaram a realizar performances rituais para um público não indígena e seus rituais xamanísticos se tornaram mais raros. Eu começava também a pensar que o contexto de profundas transformações que vinham ocorrendo nessa sociedade passava a demandar um enfoque da Antropologia da Performance sobre a relação entre performance e política, redirecionando a abordagem da performance ritual como um sistema de significação e expressão estética para o entendimento da performance, enquanto expressão artística, como sistema de ação, “com o objetivo de mudar o mundo mais do que codificar proposições simbólicas sobre ele” (GELL, 1998, p. 6).

Os Asuriní do Xingu foram contatados em 1971, com a abertura da rodovia Transamazônica, quando “frentes de atração” da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão governamental indigenista, foram enviadas ao seu território para a devida “pacificação” e “limpeza” da área para a construção da obra viária.

Sofrendo redução demográfica desde antes do contato oficial, por conta dos ataques dos Kayapó-Xikrin e Araweté, a população Asuriní no ano da “pacificação” (1971), era de aproximadamente 100 pessoas. Entretanto, as epidemias trazidas pelo contato quase dizimaram os Asuriní, pois reduziram essa população indígena em mais de 50%. Já em 1974, três anos após o contato, a população era de 58 indivíduos. Em 1982, os Asuriní chegaram a um patamar mínimo de 52 pessoas. Só a partir de meados de 1980 é que o grupo começou a se recuperar demograficamente.

É também desde o início da década de 1980 que podemos apontar diversos fatores simultâneos que vinham contribuindo para a

transformação da organização social, dos espaços políticos na aldeia, das práticas econômicas e, consequentemente, da reprodução cultural indígena. Entre os fatores principais podemos citar:

– número pequeno de adultos e idosos e elevado de jovens; – o incremento da relação intertribal através de casamentos;3

– a atuação da FUNAI, principalmente através dos Chefes de Posto na aldeia;4 a atuação de missionários;5

– o maior contato com a população regional;

– a relação com a economia de mercado (RIBEIRO, 2009).

Nesse período, houve uma grande aceleração da taxa de natalidade. Se antes as mulheres geravam um filho apenas depois dos 20 anos, atualmente ganham bebês todas as meninas púberes. O padrão de casamento poligâmico e intergeracional foi praticamente abandonado, assim como a regra de residência matrilocal, sendo observados apenas alguns casos remanescentes. Hoje em dia os casais jovens têm criado proles de 6, 7 ou até 8 filhos. Além disso, poucos jovens têm se interessado pela atividade xamanística ou pelos rituais iniciatórios ou propiciatórios. Influenciada pela “moral branca”, a juventude Asuriní parece se espelhar atualmente no padrão sociocultural da população regional.

A essa mudança estão associados, logicamente, novos padrões de sociabilidade: famílias influenciadas por padrões não indígenas de casamento, fraca participação de jovens nas atividades rituais,consumo de bebida alcoólica (cachaça), status social e político determinado pela capacidade de acesso e acumulação de produtos industrializados, individualismo e enfraquecimento da transmissão da história oral e de 3 No pós-contato, os Asuriní realizaram casamentos intertribais com indivíduos Arara (Karib), Parakanã (Tupi-Guarani), Kararaô (Jê) e, em 2005, Munduruku. No caso dos Parakanã, o contingente populacional entre os Asuriní chegou a 10 indivíduos, cuja entrada e saída da aldeia Koatinemo aconteceu na primeira metade da década de 1990. Atualmente, verificam-se apenas dois casamentos intertribais, com índios das etnias Munduruku e Arara.

4 A atuação da FUNAI na aldeia Koatinemo, iniciada no período posterior ao contato, teve como resultados imediatos a aglutinação dos dois grupos locais em uma única aldeia, a sedentarização do grupo e a intensificação do contato com a população regional (RIBEIRO, 2009).

5 Na aldeia Koatinemo, atuam dois missionários da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM) desde o início da década de 1990, tendo um deles bom domínio da língua nativa. A ALEM é uma associação civil sem fins lucrativos, de cunho científico, caráter assistencial e objetivo religioso. Através do aprendizado das línguas dos povos indígenas, os missionários da ALEM têm por objetivo traduzir a Bíblia para as respectivas línguas indígenas. Disponível em: <www.missaoalem.org.br>.

conhecimentos tradicionais como a atividade ceramista e outros itens da cultura material, as técnicas agrícolas e de caça e os repertórios rituais. A monetarização da economia Asuriní, com o recebimento de salários de aposentadorias do sistema previdenciário do Estado brasileiro, obtidos através do órgão de assistência indigenista, de salários dos funcionários indígenas do Posto de Saúde e da comercialização do artesanato, transformou as relações econômicas e sociais, o fluxo de bens e as relações de poder. Os assalariados são jovens e os salários dos aposentados são administrados pelos jovens, interferindo e modificando o fluxo de bens, as relações de poder, as relações da sociedade Asuriní com a sociedade envolvente.

Como argumenta Silva (2005, p. 26), “[...] diferentemente das velhas gerações, os jovens e as crianças vêm convivendo intensamente com o mundo branco, deparando-se com novas realidades e tendo que construir sua identidade a partir desta situação de intenso contato”.

Nas reuniões realizadas no pátio, prevalece a opinião dos mais velhos. Nessas ocasiões, os jovens atuam como tradutores (por dominarem o português), obedecendo à hierarquia dada pelas relações geracionais de chefia. No entanto, em reuniões na cidade, os jovens falam em nome do povo indígena, diante de outros grupos indígenas e dos não indígenas, que os tomam como “representantes” dos Asuriní. São rapazes na faixa dos vinte anos que passam a ocupar posição importante em relação à sociedade envolvente por dominarem os saberes dos “brancos” (leitura, escrita, comunicação em português), cada vez mais importantes para a vida dos Asuriní. Como observa Ribeiro (2009), o poder de auferir renda monetária assim como o bom relacionamento com chefes de posto da FUNAI e a habilidade de falar a língua portuguesa são os fundamentos das lideranças jovens, em contraposição ao poder religioso dos velhos xamãs. Tenho afirmado que essa transformação na configuração política e econômica indígena corresponde à passagem de uma sociedade indígena gerontocrática para outra “infantocrática”.

Mudanças no âmbito econômico e social, notadamente a monetarização da sua economia, como já se disse, alteraram o fluxo de bens e o quadro das relações de poder. A divisão de trabalho, as unidades de produção e o fluxo econômico e social transformam seus princípíos e tomam outras dinâmicas. Os assalariados são jovens, enquanto o principal bem artesanal são os objetos cerâmicos produzidos pelas mulheres. A renda dessas fontes, nas mãos de jovens e mulheres, é totalmente investida no consumo de bens industrializados, com a consequente dependência da sociedade Asuriní com relação à

sociedade envolvente, alteração da dieta alimentar e transformação das relações econômicas e sociais intragrupo.

Com a possibilidade de se acelerar o ritmo dessas mudanças, aproximadamente quatro décadas após o “desastre” que representou a abertura da rodovia Transamazônica, com a drástica redução demográfica e desestruturação de sua organização social, a sociedade Asuriní sofre atualmente outra ameaça à sua sobrevivência física e cultural enquanto povo. Trata-se da construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, no rio Xingu, cujas obras foram iniciadas em 2010. O projeto de engenharia dessa usina compreende alterações físicas significativas na região da cidade de Altamira e na Volta Grande do Xingu (reservatório e trecho de vazão mínima do rio, respectivamente) que não atingem o território Asuriní (Terra Índigena Koatinemo). Entretanto, estudos de impacto ambiental realizados para o processo de licenciamento da obra (IBAMA, 2009) descrevem impactos na economia e no ordenamento territorial devido principalmente ao fluxo migratório e aos impactos associados, além do impacto psicológico que já se faz sentir com o temor de que suas terras sejam inundadas, pois projetos anteriores previam grandes reservatórios atingindo quase todas as terras indígenas da região. De acordo com os estudos, prevê-se