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3 DELINEANDO O OBJETO DE ESTUDO

3.3 A ATENÇÃO À PESSOA EM CRISE NO CAPS: UM DESAFIO

O que fazer quando a noite vem? Continua o manicômio no imaginário coletivo como o abrigo seguro para as situações críticas? (PITTA, 2011, p. 4580).

A partir das questões expostas até aqui, considero importante situar o cuidado à pessoa em crise nos CAPS como um dos desafios estratégicos para o campo da Atenção Psicossocial, entendendo que as próprias contradições que habitam, coexistem e atravessam as propostas e entendimentos de CAPS são forças fundamentais para a compreensão do movimento contraditório da Atenção à pessoa em crise. Diante disso, esses serviços comunitários constituem-se em espaços potentes, legítimos e em disputa sendo dispositivos importantes para o processo de mudanças e superações paradigmáticas das práticas de cuidado.

Antunes (2007) aponta que determinados processos de trabalho no campo da saúde mental ainda mantêm práticas cristalizadas, de tutela, culpabilização e exclusão da loucura, típicas do modelo manicomial. Ao encontro disso, nos estudos de Pinho (2010a) é possível visualizar que há uma coexistência entre discursos e práticas psicossociais e manicomiais nos serviços de saúde mental, que tem se concentrado, muitas vezes em dinâmicas de processo de trabalho polarizadas, frutos da própria transição entre os modelos assistenciais e que na perspectiva do autor não são vistas como retrocessos, mas ao contrário, oportunidades de transformação e mudança.

Assim, a partir desses aspectos é possível perceber que os avanços que tivemos em relação ao entendimento e os modos de cuidado na perspectiva psicossocial se produziram e se produzem a partir de processos, aspectos e elementos contraditórios que coexistem e atravessam as práticas de cuidado. É importante ressaltar, no entanto, que esses processos não ocorrem de maneira natural, mas são, sobretudo, sociais, econômicos e culturalmente construídos a partir de um campo permanente de mudanças, disputas e tensões.

Portanto, quando situo o cuidado a pessoa em crise nos CAPS, estou justamente me referindo a situações em que as demandas do usuário são mais intensas e onde esses aspectos e elementos contraditórios do cuidado podem também ser expressos com maior intensidade. Nessa perspectiva, conforme apontam Amarante (2007) e Dimenstein (2012), a Atenção à pessoa em crise, tem sido uma das questões mais conflituosas, intrigantes e estratégicas para a Reforma Psiquiátrica brasileira, sendo também um dos pontos mais complexos do processo de mudanças paradigmáticas que envolvem a reestruturação da Atenção em saúde mental no

Brasil, já que muitas vezes, de acordo com Souza (2010), as manifestações de crise, acabam justificando a entrada da pessoa no circuito médico-psiquiátrico, caracterizado, principalmente, pelo seu silenciamento por meio de isolamento, contenções mecânicas e químicas, além de diferentes formas de exclusão e segregação da pessoa do espaço social.

Nesse contexto, mesmo os serviços comunitários, como os CAPS, que pretendem superar/desconstruir as práticas manicomiais, podem reproduzi-las quando ainda, mantém uma lógica de cuidado em torno do hospital psiquiátrico, realizando ações especializadas, fragmentadas, não coordenadas e impermeáveis entre si (DELL’AQUA; MEZZINA, 1991). Conforme apontam os autores, a complexidade de existência do sofrimento da pessoa em crise, nesses cenários, passa a ser reduzida e simplificada a um sintoma em que o próprio serviço já se equipou para perceber e reconhecer apenas esse sintoma. Ou seja, a partir dessas perspectivas a relação que se estabelece com a pessoa em crise pressupõe a sua “objetalização”. Sua vida, seu corpo e sua história são simplificados à psicopatologia do diagnóstico/transtorno mental e mortificados pela lógica do isolamento, tornando- se uma relação forçosamente objetual entre quem “cuida” e é “cuidado” (BASAGLIA, 1991).

Jardim e Dimenstein (2007) ao problematizarem as urgências psiquiátricas referem a dificuldade da rede de saúde mental para atender a pessoa em crise, que acabam ainda hoje, delegando esse cuidado aos serviços de emergência, privilegiando o hospital psiquiátrico como seu órgão de maior complexidade, fortalecendo o fluxo de internamentos e caminhando numa lógica contrária aos pressupostos da luta antimanicomial e da própria Reforma Psiquiátrica numa perspectiva Psicossocial.

Ao mesmo tempo, Paulon et al. (2012) ao realizar uma pesquisa em três emergências de Hospitais gerais no munícipio de Porto Alegre com a intenção de investigar os modos de acolhimento realizados no atendimento aos usuários que apresentavam crise em saúde mental traz pistas importantes sobre a invisibilidade do cuidado em saúde mental nas emergências, problematizando o fato de que nesses serviços o atendimento de casos que não são da ordem da sintomatologia usual dos parâmetros da clínica biomédica são rapidamente entendidos como alheios à emergência.

de contradições que se evidenciam na necessidade de superação de uma lógica centrada no tempo da emergência médica que pressupõem sempre esquemas protocolares, ágeis e pré-definidos ao mesmo tempo em que se reconhece nesse momento haver uma emergência, mas que ocorre em outra dimensão de espaço- tempo no qual esses serviços, muitas vezes não conseguem acolher.

O problema aqui, se evidencia, a partir dessas tensões em que a lógica da emergência médico-psiquiátrica, continua como um imperativo na Atenção à pessoa em crise, mesmo nos CAPS, serviços que a priori teriam que trabalhar em uma perspectiva de superação paradigmática desse modelo.

Esses jogos de forças trazem, portanto, implicações e atravessam as práticas de cuidado dos trabalhadores que também são formados e subjetivados por ideais normativo-hegemônicos da sociedade em que se inserem, ao mesmo tempo esses ideais normativos não pressupõem um cuidado em liberdade para a pessoa em crise, o que acaba culminando em ciclos de desassistência à pessoa em crise, em que o CAPS ao não dar conta dessas situações, demanda dos serviços de emergência, onde, por sua vez, o acolhimento desses casos é invisibilizado pela própria característica prevalente dos atendimentos nesses espaços. O que acaba ocorrendo, em suma, é um vazio assistencial à pessoa em crise, em que nem o CAPS, nem a emergência conseguem abranger a complexidade dessas situações, resultando, muitas vezes, na internação psiquiátrica.

É preciso salientar, que a partir da portaria 3088/2011, tanto a atenção de urgência e emergência, quanto a atenção hospitalar são componentes da Rede de Atenção Psicossocial, mesmo havendo críticas ao modelo de cuidado operado nesses espaços, mas ao mesmo tempo reconhecendo a importância de se ter um acesso mais descentralizado e com uma capilaridade maior para o atendimento em saúde mental. Nessa perspectiva é preciso refletir sobre o papel dos CAPS, das emergências, dos hospitais gerais e dos demais componentes na rede no processo de Atenção à pessoa em crise, além disso, considero importante olhar para os entendimentos de modelo assistencial que estão articulados à essa dinâmica, pois pode-se colocar o CAPS apenas como mais um componente da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e não como o dispositivo ordenador do cuidado psicossocial, onde as pessoas em crise e os casos críticos devem ser atendidos. Segundo Souza (2010), essa lógica pode operar em um modelo de CAPS satélites, sem vida e impotentes, que gravitam seus processos de trabalho em torno da lógica hospitalar e

do manicômio. Ou seja, acredito que é preciso não apenas pensar nos pontos de Atenção da RAPS, mas nos modos e nas formas como se desenham as tessituras entre esses pontos. Por isso concordamos com Pitta (2011, p. 4582) ao referir que:

O enfrentamento do “modelo médico hegemônico”, tão decantado, vai significar uma clínica implicada de atenção à (pessoa em) crise e à cotidianidade dos sujeitos desempenhada por todos os integrantes de uma equipe de “serviços substitutivos” ao manicômio.

Nessa perspectiva considero fundamental estabelecer o CAPS como dispositivo estratégico para pensar o cuidado à pessoa em crise, ao mesmo tempo em que o cuidado à pessoa em crise no CAPS se constitui em um importante analisador do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira.

Pensando na complexidade dessas questões, proponho um olhar que supere o conceito de crise como crise em si mesma, como crise/doença, como crise/sofrimento, e possa se perceber na relação que estabelecemos com a pessoa que a vivencia, entendendo que a crise não é uma condição objetiva em si mesma, mas o que a tornamos na relação que estabelecemos. Por isso entendo que as situações de crise da pessoa que utiliza o CAPS não são fatos isolados, pertencentes apenas ao indivíduo e restritos a um conjunto de sintomas relacionados à doença ou transtorno mental, concordando com o pressuposto de que o problema não é a crise em si, mas o tipo de relação que se estabelece com a pessoa que a vivencia. Analogamente proponho olhar para as situações de crise como o que Guattari e Rolnik (2007) se referem aos sintomas:

Os sintomas são como pássaros que vêm bater o bico no vidro da janela. Não há que se interpretar. Antes de tudo, é preciso situar sua trajetória para ver se eles estão em condição de serem indicadores de novos universos de referência, que podem vir a adquirir uma consistência suficiente para provocar uma virada na situação. (GUATTARI; ROLNIK, 2007, p. 323). Entender as situações de crise também como esses “pássaros que vêm bater o bico no vidro da janela” provoca a pensar processos, situar trajetórias, construir alternativas e modos de superação aos formatos já instituídos de lidar com a loucura, além disso, possibilita entender a crise não como um produto determinado por uma doença/sofrimento que é vivenciada por uma pessoa que se torna objetificada e simplificada sob a ótica da patologia, dos sintomas, do transtorno e do diagnóstico, mas como uma pessoa, com direitos, possibilidades de escolha e em uma condição legítima de existência.

É importante ressaltar, que não se está negando aqui a possibilidade de sofrimento e/ou a doença da pessoa que vivencia a crise e a possibilidade de utilizar esquemas da ordem psiquiátrica, mas apostando em uma outra ética de cuidado disponível ao outro. Isso quer dizer que é possível outras formas e outros modos de relação, que trilham os caminhos terapêuticos “junto com” e que sejam capazes de superar as lógicas tradicionais de cuidado, que possuem esquemas pré-definidos, protocolares e sempre sabem o que é melhor para o corpo e a vida do outro.

Por isso compreendo que essa crise não é crise por si mesma, mas que tem relação com a vida, seus contextos e histórias. Falo aqui de uma crise que faz prenúncio, que é habitada, manifesta, faz ver, faz falar, faz calar, faz sentir, expressa, simboliza... Uma crise que não é só do outro, mas nossa, que se faz na relação e com ela enuncia possibilidades nos corpos-potência em experimentação-existência.

Nesse sentido, tenho como primeiro pressuposto de que o CAPS deve ou deveria ser o dispositivo institucional ordenador do cuidado em saúde mental, onde se revelam as contradições no processo de Atenção à pessoa em crise, principalmente pelo fato de que se trata de um cenário estratégico onde modos operantes antagônicos coexistem e atuam entre si. Assim, entendo que o CAPS pode desempenhar um papel intercessor entre as práticas manicomiais e psicossociais no contexto da Reforma Psiquiátrica.

Corroborando a isso, tenho como segundo pressuposto que o cuidado à pessoa em crise está permeado por relações complexas e contraditórias que vão produzindo e constituindo as práticas dos trabalhadores do campo psicossocial. Nesse sentido, as relações contraditórias se expressam em saberes e práticas dos trabalhadores, de formas mais ou menos explícitas no cotidiano do serviço de saúde mental.

A partir disso, tenho como uma das possibilidades que tanto os trabalhadores que cuidam quanto as pessoas que vivenciam uma situação de crise passam por movimentos de recomposição de si na própria vivência e experiência do processo de cuidar e ser cuidado. E são nessas cenas do cotidiano que as contradições dos trabalhadores no processo de cuidado se revelam, o que pretendo descobrir e problematizar em meu estudo.

Assim tenho como terceiro pressuposto que as contradições presentes no processo de Atenção à pessoa em crise nos CAPS se materializam a partir de um conflito entre as diferentes concepções/paradigmas que coexistem no movimento das práticas em saúde mental.

Entendo, portanto, que no campo da saúde mental, por ser marcado por processos de conflitos, disputas e tensões, o processo de Atenção à pessoa em crise é o cenário privilegiado para discutir essas questões. É onde a materialização dos ideais da Reforma Psiquiátrica na perspectiva psicossocial convivem cotidianamente com resquícios de modos tradicionais de operação. É onde é possível que uma prática de cuidado que se proponha psicossocial esteja sustentada ou imersa em um contexto que se organiza a partir de uma lógica e de uma concepção psiquiátrica-manicomial.

Nesse sentido, considero que a contradição não é entre o que o trabalhador “sabe” e o que “faz” mas entre as concepções paradigmáticas entre o modelo manicomial e o psicossocial, que emergem e ao mesmo tempo sustentam, ‘o que deveria ser’ e “o que é feito”, uma vez que não há qualquer prática sem saber associado ou qualquer saber sem prática que o sustente, como afirma Costa-Rosa (2012).

Para Yasui (2008) e Costa-Rosa (2012), o conflito entre proposta e prática, intenção e gesto nos serviços de saúde mental produz uma tensão permanente, revelando as contradições entre os paradigmas psicossocial e psiquiátrico que sustentam os diferentes modos de cuidado existentes, que ao mesmo tempo também fundamentam os saberes-práticas dos trabalhadores em saúde. Para Costa-Rosa (2012), é possível afirmar a hipótese de que a contradição essencial das instituições de saúde mental no atual contexto político-social se expressa nesses dois paradigmas básicos: o psiquiátrico hospitalocêntrico medicalizador e o psicossocial, configurados e diferenciados a partir dos modos de organização de seus parâmetros constitutivos, de suas funções produtivas e de seus modos de produção.

Sobre esses aspectos, Pinho (2010b) refere que a constituição das equipes de saúde mental está permeada de desafios, contradições e potencialidades que vão conferindo o caráter dialético das práticas dos trabalhadores e construindo nesses processos uma cascata de possibilidades capazes de trazer à tona (ou não) novos discursos e resituar (ou não) o louco e a loucura na sociedade e no cotidiano dos serviços de saúde mental. Nesse sentido, para nós, falar sobre a saúde mental no processo de Atenção à pessoa em crise nos CAPS implica justamente situar esse campo de conflitos, contradições, tensões, escolhas e possibilidades que perpassam o cotidiano de práticas dos trabalhadores dos serviços de saúde mental.

Nesse contexto, considero que o processo e movimento de Reforma Psiquiátrica brasileira, cumpre um papel fundamental não apenas na mudança dos

modelos assistenciais de Atenção à saúde mental, mas principalmente no processo de mudanças paradigmáticas que visam superar o modelo tradicional de cuidado baseado no princípio de doença-cura e na visão orgânica do processo saúde-doença. Seria dar um salto no sentido de encontrar um caminho de coexistência e de superação, de modo a confrontar processos hegemônicos e reposicionar o lugar do sujeito nessas situações.