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2. REVISÃO DE LITERATURA

2.3 Atenção em saúde mental para crianças no Brasil

No Brasil, a partir de meados dos anos 2000, houve a redefinição da posição do Estado quanto ao seu papel para com o cuidado da saúde mental de crianças e adolescentes. Essa mudança decorreu dos Movimentos da Reforma Sanitária, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, ocorridos no final na década de 1970, e da promulgação da Carta Constitucional de 1988 e da Lei nº 8.069 em 1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Tudo isso resultou na criação de uma política de saúde mental inclusiva, comprometida com o bem-estar desses cidadãos e com o compartilhamento da responsabilidade do cuidado com as famílias e a comunidade (BRASIL, 2005a).

O Estatuto da Criança e do Adolescente promulga o resguardo das crianças e adolescentes no artigo 5º, determinando que:

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (BRASIL, 2013).

Em respeito a essa determinação, a política de saúde mental para a infância e adolescência passou a fazer parte de um plano específico, integrado à política geral de saúde mental do SUS, cuja principal finalidade é a construção de uma rede de cuidados capaz de responder com efetividade às necessidades de crianças e adolescentes (COUTO; DUARTE; DELGADO, 2008).

57 Alocados em posição estratégica para dar suporte e articular os diversos serviços e setores da sociedade que constituem essa rede, tais como educação, serviço social, justiça e saúde, os Centros de Atenção Psicossocial infantis são os principais equipamentos públicos de saúde mental responsáveis pelo atendimento da população infanto-juvenil (REIS et al., 2010), com o suporte de diferentes profissionais direcionados à integralidade da assistência da saúde mental dos indivíduos em tratamento e seus familiares.

Os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), pautados no cumprimento da Lei nº 10.216 de 06/04/01 (BRASIL, 2002), surgem como um dispositivo para alcançar as mudanças necessárias nas intervenções e avaliações do modelo de atenção centrado na doença, voltando-se para uma abordagem individualizada, com respeito às singularidades da criança e de sua família (FROTA et al., 2010). Inauguraram assim, na história do Brasil, a primeira experiência generalizada e pública de acolhimento e cuidado para com adolescentes e crianças com transtornos mentais, dando uma visibilidade até então desconhecida ao sofrimento mental que as afeta.

Concomitantemente, a fim de apoiar a organização da assistência à população infantil e oferecer condições para que ela possa crescer e desenvolver todo o seu potencial, o Ministério da Saúde estabeleceu diretrizes que devem ser seguidas no desenvolvimento de políticas de atenção à criança, identificando a Atenção à Saúde Mental entre as linhas de cuidado integral que devem constar no cardápio básico para o funcionamento adequado dos serviços e de toda a rede de ações de saúde da criança. A Atenção à Saúde Mental deve ser foco de ações imprescindíveis para o alcance de resultados mais positivos para população infantil nos diversos níveis de organização do SUS (BRASIL, 2004). Tais ações devem levar em conta como fatores fundamentais para a saúde mental:

[...] os cuidados com a mulher e mãe, antes mesmo do nascimento do bebê, bem como a forma como assiste à família, sua relação com o neném, a maneira como essa família se dispõe a cuidar da criança, seu percurso escolar desde os primeiros anos, enfim, como essa criança é recebida e endereçada ao mundo (Brasil 2004).

Assim, os profissionais que se relacionam com a família, com a criança e com a escola são responsáveis também pela saúde mental das crianças a quem prestam cuidados (BRASIL, 2004). Eles devem dispor de formação específica e permanente para a detecção de sinais de risco para o desenvolvimento psíquico, bem como o acompanhamento que se fizer necessário, como disposto no §3º do artigo 11 do Estatuto da Criança e do

Adolescente conforme a Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, o Marco Legal da Primeira Infância (BRASIL, 2016).

Conforme disposto em Brasil (2016), a elaboração de uma lei especial para a primeira infância sustentada pelas descobertas da neurociência, que comprova que as experiências vividas pela criança nos primeiros anos de vida têm um impacto duradouro sobre a arquitetura do cérebro em desenvolvimento, diz respeito à:

• Valorização da família e à maior inserção da mulher nos vários campos da atividade econômica, social, cultural e política, que carece de apoio do Estado para auxiliá-la no cuidado e educação de seus filhos pequenos; • À efetivação da justiça social a fim de oferecer a todas as crianças um

ambiente estimulante de desenvolvimento na família e em instituições; • A promoção de uma educação de qualidade, a fim de que as crianças

aprendam melhor, formem valores, desenvolvam a iniciativa, reforcem a criatividade e tenham maiores facilidades no prosseguimento dos estudos nas etapas seguintes da educação básica.

• Ao fortalecimento do rol de direitos fundamentais que devem ser assegurados com absoluta prioridade pelos corresponsáveis e que possibilitarão às crianças viverem uma infância, em que suas necessidades são atendidas e seus sonhos respeitados, e, de outra parte e na mesma dinâmica, criando condições adequadas para que elas alcancem progressivos graus de desenvolvimento em vista da vida adulta.

Assim, as inovações trazidas pelo Marco Legal da Primeira Infância são a garantia do direito de brincar das crianças, a priorização da qualificação dos profissionais sobre as especificidades da primeira infância, o reforço da importância do atendimento domiciliar, especialmente em condições de vulnerabilidade, a ampliação da a licença paternidade para 20 dias nas empresas que aderirem ao programa Empresa Cidadã e o envolvimento das crianças de até seis anos na formatação de políticas públicas (ANGELO, 2016).

No âmbito da atenção primária, o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, por sua posição privilegiada no cuidado da criança, deve possibilitar aos profissionais a identificação de necessidades especiais que merecem abordagem oportuna e deve ser realizado pela equipe de saúde (BRASIL, 2004; BRASIL, 2016).

Os serviços de atenção básica mais acessíveis à população brasileira são responsáveis por oferecer:

59 [...] um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades (Brasil, 2012, p.19).

Esses serviços constituem-se como a porta de entrada preferencial do SUS e também para as ações em Saúde Mental (SINIBALDI, 2013), como o trabalho de prevenção ou detecção precoce de transtornos mentais em crianças e adolescentes (RIBEIRO; PAULA, 2013; SINIBALDI, 2013),

Entre eles, a Estratégia da Saúde da Família (ESF) configura-se como a principal modalidade de atuação da atenção básica. Tem como princípios: atuação no território através do diagnóstico situacional, enfrentamento dos problemas de saúde de maneira pactuada com a comunidade, buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao longo do tempo; buscar a integração com instituições e organizações sociais e ser espaço de construção da cidadania (BRASIL, 2012).

Os profissionais da ESF respondem pelas famílias de um território delimitado através de um contato próximo e cotidiano, o que, do ponto de vista sistêmico, os torna parte do sistema familiar, tanto nos momentos de visita quanto como referência para as questões de saúde (SCHLITHLER; CERON; GONÇALVES, 2012).

A ESF pode estar sediada em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), que por sua vez é a porta de entrada do usuário no sistema de saúde, onde são desenvolvidas ações de promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde.

Por suas características intrínsecas, as unidades básicas de atendimento ou aquelas ligadas a programas de atenção integral a famílias podem servir como locais de alerta e sentinela na detecção de eventos violentos que ocorrem no âmbito populacional (BRASIL, 2001), bem como de outros agravos à saúde física e mental de crianças e adolescentes.

Todavia, estas e outras ações que visam a atenção integral à criança têm ocorrido de forma fragmentada e centrada no modelo biológico, com privilégio de práticas curativas em detrimento das preventivas ou direcionadas à promoção da saúde infantil, com prejuízo na integralidade da atenção (CURSINO; FUGIMORI, 2011; SILVA et al., 2015), entendida como

um cuidado inteiro, total, voltado à criança e sua família, considerando todos os aspectos relacionados à vida da criança e também às relações com o meio

em que vive” [...] “um cuidado para além da questão física e do tratamento do corpo doente; está sim envolto em uma abordagem que considera o sujeito como ativo e cidadão, com direitos a serem respeitados (FURTADO et al., 2012, p. 63).

No tocante à inclusão do cuidado da saúde mental como prática que compõe a integralidade do cuidado da criança, estudos apontam que não somente o tema é pouco abordado, mas também sua população tem pouca visibilidade no âmbito da ESF (CAVALCANTE; JORGE; SANTOS, 2011).

Embora realizar o acolhimento de saúde mental na Atenção Básica seja considerado um desafio para os profissionais, em muitos casos este é o único serviço disponível para essas crianças e suas famílias, como acontece na grande maioria das cidades do Piauí, que não contam com serviços especializados para a demanda de saúde mental infantil, sendo necessário que a família se desloque para municípios distantes quando compreendem que necessitam do cuidado.

É sabido ainda que nestes casos, grande parte das crianças que chega aos serviços de saúde mental, é encaminhada pela escola (D’ABREU; MARTURANO, 2011)o que comprova a dificuldade dos pais e profissionais da Atenção Básica identificarem ou reconhecerem problemas de saúde mental em suas crianças.

Estudo recente realizado em escolas públicas no Amapá utilizando uma escala desenvolvida por enfermeiros identificou um pequeno número de crianças escolares com problemas emocionais e comportamentais divergentes do padrão da normalidade. Um aspecto importante destacado neste estudo foi que as crianças mais jovens alcançaram pontuações mais altas na escala aplicada, sugerindo que estas podem apresentar maior dificuldade em lidar com os problemas que vivenciam em seu dia a dia do que as crianças maiores. Outro aspecto destacado foi a relação entre os sintomas relacionados a padrões alimentares e a estressores ligados principalmente a questões de saúde familiar e questões socioeconômicas (PAIXÃO et al. 2018).

Tais resultados podem estar associados à maior vulnerabilidade da criança relacionada à sua auto-capacidade devido aos riscos aos quais ela pode estar exposta nos ambientes em que é cuidada, sendo considerado risco, algo que pode vir a acontecer no futuro, a possibilidade de ocorrência de algo que prejudique o bem-estar geral da criança, e segurança, a presença de situações, comportamentos e emoções controladas de modo que não haja ameaça de perigo a ela, seja na família, na casa ou em qualquer ambiente em que se encontre (ANGELO, 2016 ).

61 Considerando que o principal fator protetor da criança são as relações estáveis, protetoras, respeitosas e amorosas dentro da família e em especial dos adultos que cuidam da criança (pais, familiares e profissionais), potencializados pelo vínculo (ANGELO, 2016), e que as crianças e suas famílias comparecem com frequência aos serviços de atenção básica para uma série de intervenções e cuidados, essas ocasiões podem ser utilizadas para abordagens no campo da saúde mental, tais como a detecção precoce e o encaminhamento para tratamento oportuno quando necessário (RIBEIRO; PAULA, 2013; SANTOS; CELERI, 2018).

Tais ocasiões podem ser utilizadas como espaços para promoção da saúde mental infantil oferecendo à família os aportes necessários para o enfretamento das mais variadas situações que vivenciam cotidianamente, inclusive a de orientar e estimular seus filhos, com vista ao atendimento das suas necessidades humanas e ao melhor desenvolvimento das relações familiares e do campo biopsicossocial infantil (TAVARES et al., 2010).

Embora timidamente, é possível perceber um olhar para a saúde mental de crianças na atenção primária em saúde. Estudo publicado em 2018 que apresenta resultados sobre um inquérito, identificou que crianças pré-escolares podem apresentar problemas de saúde mental clinicamente importantes. Neste estudo o uso do SDQ foi efetivo na identificação de problemas internalizantes e externalizantes, funcionando como um bom instrumento de triagem, comprovando que profissionais de saúde da atenção básica podem fazer uso de diversos instrumentos para auxiliá-los a identificarem e monitorarem problemas de saúde mental em crianças, qualificando as decisões terapêuticas (SANTOS; CELERI, 2018).

Diante da necessidade de estudos que confirmem a potência do cuidado em saúde mental na atenção básica utilizando recursos acessíveis como escalas de fácil aplicação e entrevistas com a criança e com a família, este estudo se propôs a identificar sintomas psicopatológicos em escolares cadastrados em uma equipe Estratégia Saúde da Família e, tomando como parâmetro o referencial teórico das Necessidades Essenciais das Crianças, conhecer o que as famílias acreditam ser necessário para que suas crianças se desenvolvam emocionalmente saudáveis.

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