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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.3 Concepções dos trabalhadores de enfermagem

4.3.1 O olhar dos trabalhadores sobre o indígena cuidado

4.3.1.1 A atitude retraída do indígena

As falas analisadas evidenciaram que os trabalhadores de enfermagem entrevistados enxergam o indígena assistido como um ser tímido, desconfiado, que chega à CASAI retraído.

[...] como eles vivem nas aldeias muitos deles ainda são bastante tímidos, né, são bastante retraídos, né [...] (E.4). [...] eles chegam aqui bem retraídos, até conhecer bem as pessoas a gente vai conversando [...] (E.5).

Na seguinte fala, é possível perceber que os indígenas se sentem acuados por se encontrarem em um ambiente diferente de sua habitualidade.

[...] Como eles saem do habitat deles, né, eles já sente aquela diferença [...] (E.10).

Os atos cuidadores são instituídos processualmente em um espaço relacional. Nesse processo, os atores envolvidos constroem uma visão/percepção uns dos outros, permeada pelas subjetividades envolvidas. Com relação aos atores trabalhadores, o trabalho em saúde se ancora em um olhar social desses(deles ?) sobre o sujeito do cuidado (MANDÚ, 2004).

A percepção dos profissionais está relacionada com a visão do índio como/ em termos de um estereótipo passivo e simplificado reproduzido pela historiografia mais tradicional. As ideias profundamente inculcadas na história brasileira criam um universo imaginário em que os indígenas são aqueles povos imutáveis, alheios e objeto de preconceito (LIMA, 1995). Estas percepções parecem ser compartilhadas pelos trabalhadores.

No entanto, é importante frisar que na instituição são assistidos indígenas que apresentam algumas particularidades apontadas pelos entrevistados. E este aspecto da percepção dos trabalhadores pode ser confirmado em um trecho do diário de campo, que se refere a uma situação de fragilidade que os usuários da CASAI apresentam.

[...] Entraram hoje, trazidos pelo motorista, uma indígena de 46 anos e seu bebê de dois meses. Ela veio trazer seu filho para fazer o segundo teste do pezinho. Em conversa entre a técnica de enfermagem e a mãe, a mesma não soube dizer certamente o motivo de estar aqui. Quando eles chegaram já percebi as mesmas características que os indígenas menos urbanizados (que ficam em menos contato com a sociedade envolvente) normalmente apresentam: trajes humildes, aspecto de medo e expressão de desconfiança [...] (Diário de Campo).

Os indígenas possuem um forte sentimento de pertencimento a um espaço e a um grupo social determinado. Quando chegam à CASAI, eles se sentem retraídos porque estão em um contexto institucional, em um centro urbano. Embora seja elemento constituinte do modelo de atenção à saúde dos povos indígenas (BRASIL, 2002a), a Casa de Apoio não pertence à realidade deles e a estrutura organizacional institucional parece reforçar esta ideia. Eles se encontram afastados de sua casa, de seus costumes, de seus pares e familiares. Estes mesmos indivíduos podem ser na sua aldeia pessoas ativas, imponentes e respeitadas, porém, por estarem distante de sua comunidade, se sentem descolados destes status, não pertencentes àquele ambiente.

Todavia, mesmo que os trabalhadores possuam uma visão parcialmente condizente com a realidade dos índios, há a visão conservadora de uma figura romântica do indígena por parte dos entrevistados, que reproduz uma visão arcaica em que os ameríndios

são seres primitivos e incapazes de ter opinião. Este ponto de vista pode ser evidenciado na fala acima citada, em que um participante se refere, mesmo que sem intenção, ao contexto de vida do indígena como um “habitat”. A perspectiva dos trabalhadores é produto de um contexto e de um processo histórico, em que os indivíduos não-indígenas estão inseridos, no qual as heranças culturais de preconceito e de valorização da cultura ocidental não foram superadas.

O sujeito e suas vivências compõem uma estrutura sociocultural global que expressa, em uma contemporaneidade, as condições vitais, as trajetórias e os códigos em que o indivíduo aprende e estabelece sensações, desejos e sociabilidades (MANDÚ, 2004). Isto é, nesta estrutura, o sujeito consegue estabelecer os seus “modos de andar a vida” (MENDES GONÇALVES, 1994, p. 59) e ver a vida.

Deste modo, o trabalhador da CASAI, que é uma estrutura sociocultural global, reproduz o pensamento da sociedade na qual está inserido. No Brasil, a menor aceitação das divergências culturais está subjacente à maior tolerância às diferenças físicas (SHWARTZMAN, 1999). Isto é, o estereótipo do indígena como incapaz, preguiçoso ou selvagem é revelador de um desconhecimento cultural que o país possui sobre os ameríndios (VIANA; LIMBERTI, 2010).

Os seguintes excertos reforçam, por partes dos trabalhadores, a perspectiva de um ameríndio desamparado e reiteram um desconhecimento sobre a maneira como ele vive e pensa.

[...] A gente imagina que lá eles tenham uma outra rotina de vida, e chegam aqui eles ficam assustado [...] porque vive lá no meio do mato lá. Não tem contato com a gente [...] (E. 3).

[...] Às vezes eles chegam aqui e ficam perdidos, que às vezes eles não sabem, [...] É, [eles não tem] esclarecimento. Muitas vezes, eles nem sabem em que cidade eles estão [...] (E. 10).

Mediante as ações provenientes de tais concepções dos trabalhadores, que se situam inseridos no contexto institucional da CASAI, os indígenas apresentam um comportamento protetivo. Para se protegerem, muitas vezes, eles negam sua própria identidade (VIANA; LIMBERTI, 2010). As noções culturais do índio são suprimidas pelo medo ocasionado por estar fora de sua aldeia e pelo próprio ambiente que a Casa de Apoio significa para eles. Assim, boa parte dos ameríndios na CASAI se mostram passivos, retraídos.

Esta conjuntura é enfatizada pelo fato, sinalizado nas falas dos entrevistados, de que os indígenas que chegam à CASAI já esgotaram todas as possibilidades de tratamento espiritual nas aldeias.

[...] eu acho que eles têm, né, os cuidados da tribo, da aldeia, né. Eles costumam fazer as medicações deles, mas também é, aqui com a gente não [...] (E.4).

[...] Na verdade, eles chegam da cidade já com alguma esperança de tratamento, que o próprio ritual deles lá não resolveu. Aqui seria o último [...] (E.5).

Sem soluções conhecidas para o seu problema de saúde, os indígenas partem para os serviços de saúde de grande complexidade dispostos a aceitar o que receberem, expressando uma certa passividade dentro da desconhecida e complexa rede biomédica de atenção à saúde.

[...] muitos indígenas eles não falam, se você pergunta alguma coisa, eles só balançam a cabeça, tudo eles vão falar que tá bom [...] (E9).

Todavia, é válido ressaltar que, na concepção dos trabalhadores, não são todos os indígenas que são inertes neste processo:

[...] a gente tem alguns (indígenas) que são bem esclarecidos, outros não [...] (E3).

Haja vista que o olhar do ator do cuidado para o usuário possibilita ao profissional se aproximar e/ou entender o universo do sujeito, a perspectiva que o trabalhador de enfermagem possui sobre o individuo com quem construirá o cuidado está intimamente ligada à qualidade e à finalidade do processo de cuidar.

Salienta-se que os trabalhadores de enfermagem vivem em um panorama histórico de concepções racistas de superioridade e inferioridade. E os mesmos, como uma estrutura sociocultural global, reproduzem práticas e percepções semelhantes ao que lhes foi proporcionado enquanto experiência particular e vivência interrelacional em um contexto histórico específico.

Ademais, o conhecimento/saberes específicos sobre o cuidado ao indígena e o tecnicismo procedente da modernidade, gênese da valorização da leitura de sinais orgânicos (biológicos, fisiológicos, químicos) que descaracteriza o sujeito da relação (MACHADO; COLVERO, 1999), reforçam a visão generalizada dos trabalhadores.

E, como já referido, foram poucos os entrevistados que tiveram alguma formação a respeito da saúde indígena e sobre os aspectos culturais destes povos. Também não lhes foi proporcionado, pelo menos para a maioria, momentos de capacitação sobre atenção à saúde indígena.

Isto posto, os trabalhadores de enfermagem, de maneira geral, não conseguem considerar os saberes e concepções diferentes daqueles estabelecidos pela biomedicina inerentes ao modo de andar a vida indígena. Na sociedade indígena, a explicação de uma necessidade em saúde está vinculada às regras sociais e culturais, por isso é importante relativizar o olhar sobre o cuidado (GONÇALVES, 2011; OLIVEIRA, 2004).

A construção do olhar relativizado diz respeito à postura de ver e ouvir o outro, de considerar os aspectos culturais, experienciais, sociais subjacentes ao processo de adoecimento e/ou necessidade de saúde que o individuo sinta. A doença demanda uma interpretação e atuação no meio sociocultural, ela não é uma situação estática (LANGDON, 2003). É também definida pelo

Padrão cultural, que informa a percepção dos sujeitos e traça os limites para a conceituação da doença e a determinação da forma como as intervenções curativas vão ser concebidas e operacionalizadas (CARDOSO, 1999, p. 43).

Construir um olhar relativizado/sensível a estas questões no contexto de assistência à saúde indígena é fundamental, sobretudo devido às diferenças culturais existentes, por exemplo, na CASAI, um local onde geralmente quem cuida não é indígena. A qualificação dos serviços de saúde e da identificação das necessidades de saúde do usuário está profundamente ligada à percepção da diversidade cultural da maneira de ver e vivenciar o processo saúde-doença-cuidado das diferentes coletividades (NOVO, 2011; OLIVEIRA, 2002).

Sendo assim, as redes de símbolos e significados do sistema de cuidado indígena e do sistema oficial devem ser consideradas na construção do olhar relativizado do trabalhador sobre o sujeito do cuidado. É importante frisar, que embora a questão cultural seja marcante neste contexto, o olhar relativizado é também importante nos demais contextos de atenção à saúde; afinal, o modo como cada pessoa sente e percebe a sua dor e o seu processo de adoecimento é individual, singular.

Além disso, a situação de medo e desconforto não é compartilhada somente pelos indígenas da CASAI. Usuários hospitalizados e/ou institucionalizados sentem as mesmas sensações quando estão em serviços de saúde, cujas equipes não respeitam o espaço privativo e nem as necessidades do outro (PROCHET; SILVA, 2008; TRAVERSO- YEPEZ; MORAIS, 2004). Isto porque, “a concepção de sujeito predominante no pensamento sanitário não está em sintonia com os principais valores e pressupostos que o orientam hegemonicamente na atualidade” (AYRES, 2001, p. 65).