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O ato de dispensa nas empresas estatais: ato administrativo típico ou ato de gestão

A principal argumentação daqueles que negam a necessidade de motivação do ato de dispensa de empregado público é a natureza do ato. Arrazoam que o ato de dispensa é ato privado, e não ato administrativo típico. Decorrem do entendimento que o ato é privado em virtude da natureza das empresas estatais, sugerindo o inciso II do §1º do art. 173 da Constituição Federal como justificativa para este juízo.

Assim, para eles a rescisão do contrato de trabalho do empregado público é ato de gestão, pelo qual o empregador manifesta seu legítimo direito potestativo de dispensa imotivada. Neste ato a Administração se despe do seu jus imperium30, igualando-se ao ente privado. Desta forma, o dirigente estatal não estaria agindo naquele momento como administrador público e tão somente como empregador equiparado ao privado.

Constatou-se que não são poucas as razões e contrarrazões apresentadas nos processos judiciais, nas quais o ente estatal, após afirmar que o ato de dispensa decorre do direito potestativo do administrador, assevera que este é um ato discricionário da administração, não se exigindo qualquer outra vinculação em lei a não ser aquelas decorrentes dos princípios que norteiam o ato administrativo.

Cabe primeiramente apresentar o conceito de ato administrativo.

Para os doutrinadores do Direito Administrativo, não existe um conceito singular do ato administrativo. Cada qual, sob seu ponto de vista expõe características consideradas imprescindíveis para a definição do instituto. Não é diferente a expressão de Cretella Júnior:

Noção incerta, reclamando, por esse motivo, ampla indagação que lhe delimite o campo exato, a definição do ato administrativo tem sido motivo dos maiores desencontros por parte dos doutrinadores a tal ponto, que não é exagero afirmar serem as definições propostas em número quase igual ao dos autores que as formularam. (CRETELLA JÚNIOR, 2001, p. 190)

Para Justen Filho (2005, p. 185), utilizando-se do critério objeto no qual independe o ente que emana o ato, diz que o ato administrativo é “uma manifestação de vontade funcional apta a gerar efeitos jurídicos, produzida no exercício da função administrativa”.

Definição clássica na doutrina é a de Hely Lopes Meirelles:

Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria. (MEIRELLES, 2008, p. 145)

Na mesma linha é o conceito de Diógenes Gasparini:

Do exposto, podemos conceituar o ato administrativo como sendo toda prescrição unilateral, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no exercício de suas prerrogativas e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade ou na compatibilidade da lei, sob o fundamento de cumprir finalidades assinaladas no sistema normativo, sindicável pelo Judiciário. (GASPARINI, 2008, p. 61)

Já para Carvalho Filho (2011, p. 16.22) o ato administrativo é “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público”.

Não obstante a diversidade de conceitos na doutrina atenta-se para elementos mínimos que caracterizam o ato administrativo, a saber: a vontade emanante da Administração Pública ou de agentes delegados atuando em nome da Administração; visam produzir efeitos jurídicos sobre seus administrados; o interesse público como fim primário; regidos pelo Direito Público; a sujeição ao ordenamento jurídico e a possibilidade de apreciação posterior pelo Poder Judiciário.

Dado o conceito de ato administrativo, a doutrina também o classifica segundo diversos critérios.

Os atos de gestão, para Bandeira de Mello, decorrem de uma velha distinção “em desuso desde o final do século passado por imprecisa, inexata e haver perdido sua função primordial (excluir a responsabilidade do Estado pela prática dos primeiros – atos de império - e admiti-la para os segundos – atos de gestão)”. Para ele, a doutrina e jurisprudência invocam esta distinção erroneamente para separar atos administrativos de atos de Direito

Privado da Administração ou de suas entidades auxiliares que tem personalidade de Direito Privado. (MELLO, 2009, p. 423)

Nesta classificação quanto à posição jurídica da Administração, para Bandeira de Mello:

(1) Atos de império – os que a Administração praticava no gozo de prerrogativas de autoridade. Exemplo: a ordem de interdição de um estabelecimento.

(2) Atos de gestão – os que a Administração praticava sem o uso de poderes comandantes. Exemplo: venda de um bem; os relativos à gestão de um serviço público. (MELLO, 2009, p. 423)

Ainda segundo Bandeira de Mello, hoje, com certa similaridade, porém maior precisão, fala-se em atos de Direito Privado praticados pela Administração, e atos regidos pelo Direito Público. Exemplifica o autor, citando Oswaldo Aranha Bandeira de Mello31 que a Administração pratica diversos atos que não interessa considerar como atos administrativos, entre eles os atos regidos pelo Direito Privado, como por exemplo, a locação de uma casa para nela instalar-se uma repartição pública. Nestes atos, o Direito Administrativo só regula as condições de emanação, mas não disciplina o conteúdo e os efeitos do ato. Por opção sistemática, tendo em vista que o conteúdo destes atos não é regido pelo Direito Administrativo e que não possuem a força jurídica inerente aos atos administrativos, o autor os exclui da categoria “ato administrativo”. (MELLO, 2009, p. 379)

Em nota de rodapé, Bandeira de Mello reconhece a existência de autores que ainda assim sustentam que tais atos devem se considerados atos administrativos, visto que é o Direito Administrativo que afirma as condições de validade, impõe as condições de controle, inclusive pela arguição dos mesmos vícios. Bandeira de Mello admite que estes atos em questão submetem-se a um regime misto. (MELLO, 2009, p. 379)

Contudo, Hely Lopes Meirelles estabelece a distinção entre atos de império, atos de gestão e atos de expediente. Para o autor, os atos de império ou de autoridade são todos aqueles que a Administração pratica usando de sua supremacia sobre o administrado ou servidor e lhes impõe obrigatório atendimento. Por exemplo, nas desapropriações, nas interdições de atividade, nas ordens estatutárias. Tais atos podem ser gerais ou individuais, internos ou externos, mas sempre unilaterais, expressando a vontade onipotente do Estado e seu poder de coerção. São, normalmente, atos revogáveis e modificáveis a critério da

Administração que os expediu. Ainda para o autor, essa conceituação não revive a abandonada teoria da dupla personalidade do Estado, que ora atuaria como pessoa pública, expedindo atos de império, ora agiria como pessoa privada, praticando atos de gestão. Hely Lopes Meirelles afirma que o Estado só atua com personalidade de Direito Público, mas, se em certos atos impõe sua autoridade, tornando-os coativos para seus destinatários, noutros, seus efeitos são facultativos ou dependentes de solicitação do interessado, ou não vinculantes para a Administração e administrados.

No conceito de Hely Lopes Meirelles, os atos de gestão são os que a Administração pratica sem usar de sua supremacia sobre os destinatários. São exemplos nos atos puramente de administração dos bens e serviços públicos e nos negociais com os particulares, que não exigem coerção sobre os interessados. Esses atos serão sempre de administração, mas nem sempre administrativos típicos, principalmente quando bilaterais, de alienação, oneração ou aquisição de bens, que se igualam aos do Direito Privado, apenas antecedidos de formalidades administrativas para sua realização (autorização legislativa, licitação, avaliação etc.). Tais atos, desde que praticados regularmente, tornam-se vinculantes, geram direitos subjetivos e permanecem imodificáveis pela Administração, salvo quando precários por sua própria natureza.

Ainda, para o mesmo autor, os atos de expediente são todos aqueles que se destinam a dar andamento aos processos e papéis que tramitam pelas repartições públicas, preparando-os para a decisão de mérito a ser proferida pela autoridade competente. São atos de rotina interna, sem caráter vinculante e sem forma especial, geralmente praticado por servidores subalternos, sem competência decisória. Os agentes designados "para responder pelo expediente" só estão autorizados a dar continuidade ao serviço interno da repartição, pois não dispõem de competência legal para expedir atos de império, nem atos de gestão, e muito menos para praticar atos com fundamento político, por exemplo a promulgação ou veto a projeto de lei, ou vincular a Administração em outorgas e contratos com administrados, nomear ou exonerar funcionários e demais atos que onerem o orçamento ou criem encargos ou direitos para os particulares ou servidores. (MEIRELLES, 2008, p. 161)

Para Hely Lopes Meirelles, a diferenciação destes atos leva em consideração a supremacia da Administração perante o administrado e o poder de coerção que lhes são impostos. O Estado sempre atuaria com personalidade de Direito Público, não se admitindo a teoria da dupla personalidade estatal. Porém em determinadas situações a Administração

imporia sua autoridade, tornando-se coativos aos seus destinatários; em outras seus efeitos seriam facultativos ou dependentes da solicitação do interessado; ou ainda, não vinculariam a Administração e os administrados.

Ainda quanto ao critério das prerrogativas, Carvalho Filho traz sua classificação:

Atos de império são os que se caracterizam pelo poder de coerção decorrente do

poder de império (ius imperii), não intervindo a vontade dos administrados para sua prática. Como exemplo, os atos de polícia (apreensão de bens, embargo de obra), os decretos de regulamentação etc.

O Estado, entretanto, atua no mesmo plano jurídico dos particulares quando se volta para a gestão da coisa pública (ius gestionis). Nessa hipótese, pratica atos de gestão, intervindo frequentemente a vontade de particulares. Exemplo: os negócios contratuais (aquisição ou alienação de bens). Não tendo a coercibilidade dos atos de império, os atos de gestão reclamam na maioria das vezes soluções negociadas, não dispondo o Estado da garantia da unilateralidade que caracteriza sua atuação. (CARVALHO FILHO, 2011, p. 16.173-16.174) (grifou-se)

O autor realiza as mesmas críticas de Bandeira de Mello, visto que esta classificação serviu para delimitação da responsabilidade estatal no caso de ação culposa de seu agente, sendo uma atenuação da antiga teoria da irresponsabilidade do Estado. Nela, se o Estado produzisse um ato de gestão, poderia ser civilmente responsabilizado, caso contrário, na hipótese de ato de império não haveria responsabilização posto que o fato fosse regido pelas normas de direito público, naturalmente protetivas da figura estatal. Na prática nem sempre era fácil distinguir os atos de gestão dos atos de império, proporcionando um sem número de dúvidas e confusões.

Por fim, Di Pietro classifica os atos administrativos em atos de império e atos de gestão segundo as prerrogativas com que atua a Administração:

Essa classificação vem do direito francês e foi também desenvolvida pelos autores italianos; atos de império seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes, a não ser por delegação do poder público.

Atos de gestão são os praticados pela Administração em situação de igualdade com

os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não diferem a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum. (DI PIETRO, 2010, p. 219-220) (grifou-se)

Di Pietro também enfatiza que esta distinção foi idealizada como meio de abrandar a teoria da irresponsabilidade do monarca por danos causados a terceiros. Passou-se a admitir a responsabilidade civil quando decorrente de atos de gestão e afastá-la nos prejuízos resultantes de atos de império. Alguns autores, para esse fim, distinguiam a pessoa do Rei

(insuscetível de errar - the king can do no wrong, le roi ne peut malfaire), que praticaria os atos de império, da pessoa do Estado, que praticaria atos de gestão através de seus prepostos. A distinção servia também para definir a competência da jurisdição administrativa, que somente apreciava os atos de império, enquanto os atos de gestão ficavam a cargo do Judiciário.

Ainda segundo Di Pietro:

Surgiu, no entanto, grande oposição a essa teoria, quer pelo reconhecimento da impossibilidade de dividir-se a personalidade do Estado, quer pela própria dificuldade, senão impossibilidade de enquadrar-se como atos de gestão todos aqueles praticados pelo Estado na administração do patrimônio público e na gestão de seus serviços. Em um e outro caso, a Administração age muitas vezes com seu poder de império. Por exemplo, quando fiscaliza a utilização de bens públicos, quando celebra contratos de direito público tendo por objeto o uso de bens públicos por particulares ou a concessão de serviços públicos, quando fixa unilateralmente o valor das tarifas, quando impõe normas para realização dos serviços concedidos. (DI PIETRO, 2010, p. 211)

Enfim, a autora afirma que essa distinção hoje foi substituída por outra: atos administrativos, regidos pelo direito público, e atos de direito privado da Administração. Para ela somente os primeiros são atos administrativos; os segundos são apenas atos da Administração, justamente pelo fato de serem regidos pelo direito privado. (DI PIETRO, 2010, p. 213)

Portanto, em consonância com o pensamento dos autores citados, não resta dúvida que está ultrapassada a distinção dos atos administrativos em atos de império e atos de gestão.

Analisando as características e atributos do ato de dispensa no seio da Administração Pública conclui-se que este se aproxima mais das características dos atos administrativos em sentido estrito e afasta-se das características dos atos de gestão segundo a malfadada classificação.

O ato de dispensa no âmbito da Administração, primeiramente decorre da vontade unilateral do ente estatal, com o objetivo primário de consecução de um interesse público. Tal fato é evidente, posto que se fosse diversa a finalidade, haveria desvio de poder32.

32 Desvio de poder ou de finalidade, conforme descrito na alínea “e”, do Parágrafo único, do art. 2º da Lei nº

4.717/1965, que regula a Ação Popular, “se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”. Deste modo, mesmo atuando nos limites de sua competência, quando o agente pratica ato por motivos ou com fins diversos daqueles que a lei estabelece ou o interesse público exige, configura-se a conduta ilegítima. (ALEXANDRINO e PAULO, 2008, p. 252)

O dirigente estatal age, portanto como administrador público, pois o motivo que enseja a dispensa do empregado público é um interesse coletivo, ou para o direcionamento de meios e esforços para consecução de objetivos públicos, ou para a proteção do patrimônio e de recursos públicos em razão de ameaça externa (desequilíbrios econômicos) ou ameaça interna (ineficiência, falta grave cometida pelo empregado, improbidade administrativa, entre outras). Não age e nem lhe é admitido agir com intuitos particulares, como a preterição do empregado “A” pelo empregado “B”, sob pena de configurar-se o desvio de poder citado anteriormente.

Nesse sentido é o pensamento de Ney José de Freitas:

O Estado empregador jamais se equipara ao empregador comum. Vale dizer: não se despe, em momento algum, da sua condição de poder público. Esse modo de observar atrai a conclusão de que o ato de despedimento do empregado público é

ato administrativo, absorvendo todo o aparato normativo e doutrinário criado para

envolver essa espécie de ato jurídico, sob pena de desacato à lógica e, o que é mais grave, não oferecendo ao ato de despedimento uma qualificação jurídica adequada, o que não se compadece com a visão sistemática do Direito. (FREITAS, 2002, p. 160) (grifou-se)

O ato de dispensa, também, visa produzir efeitos jurídicos a seus administrados, ou seja, visa extinguir uma relação jurídica pré-existente, de forma não negocial. A negociabilidade é característica típica dos atos de gestão, distintamente do ato de dispensa.

Distinguem-se ainda dos atos de gestão pelo fato da Administração e dos administrados não se porem em pé de igualdade. O ato de dispensa independe da vontade do administrado, é coercitivo para estes.

Por fim, o ato de dispensa emanado pelas Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, objeto central do escopo deste trabalho, insere-se, conforme já foi visto, em um regime jurídico híbrido ou misto. Em tal regime, regras de direito privado são derrogadas por princípios e normas de direito público, uma vez que a tais atos também se aplicam as condições de validade, as condições de controle e inclusive a arguição dos mesmos vícios.

Portanto, não procedem as alegações que o ato de dispensa nas empresas estatais está exclusivamente submetido ao regime jurídico próprio das empresas privadas. Como foi visto, o ato de dispensa nestas empresas é ato administrativo em sentido estrito, e logo, deve ser informado pelos princípios administrativos explícitos no caput do art. 37 da Constituição Federal e por outros que decorrem naturalmente do ordenamento jurídico pátrio. Tais princípios serão objetos de estudo da seção seguinte.